Toca o despertador. Lúcio não reage bem ao barulho incessante e desumano do relógio disparado às 6h30 da manhã.

Faz questão de ir ao tratamento pela marginal observando, quase de forma embriagada, os pontinhos pretos na água chamados de surfistas, todos eles em busca das ondas ao nascer do sol.

"São surfistas quando trabalham, quando acordam,

quando remam, quando esperam pela próxima onda...."

Quando era criança, 6 meses após ter começado a surfar foi mesmo ali, num grave acidente, que perdeu os sentidos e quase a vida. Ver os surfistas entre a neblina do amanhecer fá-lo atenuar essa misteriosa dor sem memória dum acidente trágico, pois afinal todos nós esquecemos o que se passou meia-hora antes de um desastre.

Lúcio idealiza a utopia da felicidade nos próprios surfistas e reflete: são surfistas quando trabalham, quando acordam, quando remam, quando esperam pela próxima onda. Passam a maior parte do tempo sem surfar mas não deixam de ser surfistas a tempo inteiro; a felicidade não será isso? Interroga-se.

"Passam a maior parte do tempo sem surfar

mas não deixam de ser surfistas a tempo inteiro;

a felicidade não será isso?..."

Sonha sempre em poder andar, tal como os surfistas passam a maior parte do tempo sem surfar, sente-se sempre em movimento apesar da maior parte do tempo estar imobilizado.

Imobilizado ficou também Dusty Payne numa onda com menos de 6 pés em Backdoor. Ia quase morrendo não fosse o astuto brasileiro hexacampeão de bodyboard Guilherme Tãmega a tirá-lo da água e a reanimá-lo.

"Não há conquista maior do que voltar a surfar

depois de uma lesão..."

A história tem um final feliz e Dusty voltou ainda com mais vontade, mas a fratura no crânio e maxilar demonstra bem como somos frágeis e precários.

O que só prova que podem haver feitos extraordinários no surf desde a Nazaré passando por Teahupo’o mas não há conquista maior do que voltar a surfar depois duma lesão, que o diga Alex Botelho que, após aquele dramático resgate na Praia do Norte, ainda está a procura da sua melhor forma e ninguém mais do que ele merece essa reconquista.

É na sua Citroen Berlingo adaptada que a sua mulher conduz diariamente o seu carro para pessoas de mobilidade reduzida, de piso rebaixado onde Lúcio tem uma vista panorâmica da praia, é a melhor parte do seu dia; recorda quase em lágrimas os dias em que começou a surfar no Veleiro e sente aquele frenesim repentino de que um dia irá voltar à água.

"Pode haver um fim para tudo

mas não para o surf..."

Todos nós já sofremos um pouco do síndrome de Lúcio, confesso ser um dos meus maiores fantasmas, há 6 anos tive uma hérnia discal e nunca senti tanto o surf enquanto não o podia fazer, mesmo nas pequenas mazelas ou contracturas que nos tiram do mar por tempo indeterminado. Há sempre um momento de desamparo, de ficar sem chão, um luto seguido da imensa vontade de voltar. Essa chama inflamada pela esperança de surfar depois duma lesão é das coisas mais interessantes e preciosas da existência de um surfista; não é como voltar a aprender a andar mas é reconhecer a nossa limitação e a sabedoria de procurar encaixar essa redução física num simples drop; mesmo que ainda não haja força nos braços, nas costas ou nas pernas, ficamos felizes com muito pouco. Obriga-nos a ser humildes e conscientes, a dar valor ao que temos de mais precioso. Afinal pode haver um fim para tudo mas não para o surf.

Quando falamos de adolescentes ainda é mais difícil de aceitar, ver o talentoso e especial João Mendonça com dores de crescimento no joelho, após a cartilagem se separar do osso aos 13/14 anos é antinatural.

Lúcio já sabe que não haverá boas memórias quando entrar nos corredores do Hospital Santa Maria que prendem o calor e o frio do dia anterior, ou os elevadores que descem e sobem de forma lenta retendo o odor de urina.

É um dos voluntários escolhidos na transferência de nervos para conseguir movimentar novamente os membros e fazer coisas tão simples como abrir a mão para segurar objetos ou até mesmo escovar os dentes.

A cirurgia irá conectar os nervos funcionais aos lesionados restaurando assim os músculos paralisados dos cotovelos e das suas mãos. Lúcio só imagina como será poder voltar a remar como os pontos pretos que vê da marginal, ou de forma menos ambiciosa como será agarrar na borda da prancha e sentir o movimento das ondas a empurrá-lo.

Deitado na maca Lúcio olha de raspão para a senhora anestesista volumosa e com um ar simpático, e ao sentir a agulha no braço quase na eminência de adormecer sonha numa fração de segundo com a eternidade de voltar a dropar uma onda.

Dusty Payne em Teahupoo - Click por Sloane/WSL