Suzuki Santana de primeira geração Suzuki Santana de primeira geração quinta-feira, 06 maio 2021 14:58

"Um jovem chegou a enfiar as chaves numa fralda descartável encostada à roda do carro"

"Carro de Surfista", uma crónica de Rafael Amorim 

 

Se é certo que, em regra, um surfista tem uma consciência ambiental profundamente mais desenvolvida do que um qualquer outro ser humano, quando chegamos à utilização do carro, por muito que nos doa, é difícil pensar em contribuir para a redução do consumo de combustíveis fosseis quando precisamos de fazer aqueles quilómetros extra para ver como esta a ondulação numa determinada praia.

Até porque, também em regra, e salvo caso excecionais, a deslocação para as nossas praias não pode ser feita de outra forma que não através de veículo automóvel. Não apenas pelo transporte do equipamento, que para quem faz Longboard ou Surf é um pouco mais complexo do que para quem pratica BodyBoard, mas imaginem deslocarem-se para a maioria das praias da costa atlântica, especialmente no Algarve ou no Alentejo, a pé, de bicicleta, scooter elétrica ou de skate como vimos nos filmes e clips californianos.

Se a minha experiência e memória não me atraiçoam, conseguimos chegar de metro ou comboio às praias de Matosinhos ou Espinho. Mas, as restantes continuam a ser servidas, em termos de transportes públicos, apenas por autocarros.

A mobilidade e a prática do surf, como referi em crónicas anteriores, é uma questão que está muito interligada por esta dicotomia preservação ambiental/prática da modalidade. A qual, diga-se de passagem, não é estranha, nem sequer diferente, da falta de aposta na mobilidade elétrica – cujos preços dos veículos elétricos continuam com valores muito elevados - , na produção de fontes de energia alternativas, na ferrovia ou na utilização de meios alternativos de deslocação que existe quando pretendemos ir para o trabalho, escolas ou usufruir de tempos livres.

Se esta é a realidade do litoral, torna-se ainda mais complexa quando nos dirigimos para o interior em que a oferta de transporte público é cada vez mais diminuta, especialmente em territórios de baixa densidade. Confesso que este assunto é, para mim, particularmente importante porque vivo a 30 km da praia mais próxima o que obriga, sempre que quero ir surfar, a utilizar um veículo automóvel.

Seguindo aquele que é o 12.º Objetivo para o Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas - garantir padrões de consumo e de produção sustentáveis – e as Orientações da União Europeia para a redução do consumo de combustíveis fósseis, tento, sempre que posso, optar por andar a pé, evitar deslocações de carro desnecessárias e, com o meu grupo de amigos, escolher os melhores dias para surfar e as praias mais adequadas de forma a evitar deslocações extra.

Tirando esta nota introdutória que considero importante, queria partilhar convosco algumas notas sobre a relação de um surfista com o seu carro que derivam da minha experiência ou do relato de amigos.

 

Um classico Woody dos anos cinquenta

 

O primeiro carro que tive e que utilizei para surfar era um Fiat Uno Comercial 1.9 TD, de 1989, branco, no qual cometi as maiores atrocidades que possam imaginar. Atenção, em abono da verdade, este carro estava abandonado num processo de insolvência, necessitou de alguns arranjos e foi me entregue - maçarico que era, pois, tinha a carta há meia dúzia de dias – com o objetivo de poder fazer trinta por uma linha com ele.

 

"Desde espetar uma ShortBoard, com o vidro aberto, no lugar do passageiro,

pois tinha deixado as fitas para a prender ao teto em casa” ...

 

... até o atolar na areia da praia do Torrão do Lameiro, em Ovar, ao ponto de ter de pedir a diversos veraneantes ajuda para o levantar e tirar de lá para fora.

Como ainda estava em período probatório, e tendo em conta diversos episódios que tinham surgido com o Fiat Uno, eis que surge um Suzuki Santana vermelho, 1.2, a gasolina, de 1985. O meu pai apanhou este carro no meio de um negócio, mas não se tinha apercebido que ele era um carro de “monte”, tinha uns pneus de todo o terreno maiores que o livrete permitia, estava todo reforçado internamente e vinha carregado de problemas mecânicos.

 

Suzuki Santana de primeira geração

 

Este carro durou pouco tempo na minha mão, mas nunca mais o esqueci. Ele tinha um consumo de 15 litros aos 100, fazia fumo por todo o lado, tinha uma capota de lona cinzenta toda esburacada, o termostato do radiador não funcionava…. Era uma tragédia.

 

"Foi neste jipe que fui apanhado no meio da Mata de Maceda,

em Ovar, a tentar chegar ao Pico 9"

 

Trocamos o jipe por um Renault Clio, também de primeira geração, talvez de 1990 ou 1991, verde azeitona, interiores beges – o carro mais feio que alguma vez tenha tido – de quatro lugares ao qual, imediatamente, coloquei uns racks em ferro preto para transportar as pranchas. Tinha um motor 1.2, a gasolina e consumos relativamente elevados. Contudo, foi com ele que fui surfar, pela primeira vez, à Praia da Lanzada, na Galiza, com uns amigos.

A questão das deslocações começava a ser pesada e os carros a diesel eram uma proposta muito interessante. Surge a oportunidade de adquirir um Ford Fiesta Boss, 1.9, branco, de 1993, que veio a revelar-se uma aposta acertada para o tipo de vida que tinha. Era comercial, supereconómico, com um excelente motor e deve ter sido o carro com o qual mais quilómetros terei feito para surfar. Fiz duas grandes viagens pela costa espanhola até Hossegor, em França, e as primeiras viagens, sozinho sem os meus pais, para a Costa Vicentina também ocorreram com ele.

Os diversos episódios que fui vivendo com estes carros, alguns dos quais irei falar mais adiante, levaram-me a perceber que tinha de ter mais atenção com a escolha do carro, até porque, cada vez mais utilizava longboards e já estava a iniciar a minha vida profissional, o que me obrigava a ter uma carrinha onde pudesse deixar a prancha lá dentro juntamente com o resto do equipamento ou, numa viagem mais longa, ter de dormir lá dentro.

 

Os carros de surfistas e as suas avarias

 

Surgiu uma relação com carrinhas – as comuns Station Wagons, Break ou Station - a diesel que, ainda hoje, mantenho. Para mim, para o tipo de vida que levo e para as modalidades de surf que pratico, continuam a ser os veículos mais apropriados.

Por isso, no momento da compra, era necessário: i) verificar se o material que revestia o interior era de fácil manutenção; ii) verificar se as chaves que a carrinha oferecia, quer a principal, quer a sobresselente, permitiam ir para dentro de água; iii) se tinham racks longitudinais para aplicar as barras transversais; ou iv) pedir aos vendedores de automóveis para deixarem enfiar uma prancha de longboard dentro das carrinhas para ver se elas podiam ser, facilmente, transportadas. Eram exigências tão importantes como verificar se o consumo de combustível era aceitável, se a carrinha era confortável ou se o motor era fiável.

Reparem que tudo isto que aqui referi, se pensarem um pouco, é essencial para qualquer surfista e para o seu carro.

Vejamos, por regra, um carro de surfista está sujo! Tem areia, bocados de parafina e todo o lixo que fazemos fica no carro até sair de lá para a reciclagem. Surfista que é surfista não coloca lixo no chão. Eu sei que isto é um conceito, às vezes estranho, para os/as nossos/as companheiros/as, mas não vale a pena.

 

"Se fazes surf com alguma regularidade, o teu carro vai estar sujo"

 

Outro dos grandes problemas reside em guardar as chaves. Esse é um problema, às vezes, muito chato, porque se calha num dia em que a ondulação está tão boa que tu só queres ir a correr para dentro de água, facilmente te esqueces deste "pormenor" de guardar as chaves.

Recordam-se do Suzuki Santana que referi? O mais caricato naquele jipe é que a chave da ignição era completamente desnecessária. Bastava colocar uma chave de fendas e ele arrancava ou, se estivesse em funcionamento, tirávamos a chave e ele continuava a funcionar. Por isso tinha um problema, sempre que tinha de ir surfar, ou deixar o carro estacionado à porta de casa, tinha de ter algum cuidado e, de preferência, retirar o kit de fusíveis que ficava por debaixo do guiador. Para isso, comprei um mini cofre, devidamente preso e escondido dentro do jipe, onde colocava as chaves e a caixa de fusíveis dado que, como já vos disse, qualquer chave de fendas o punha a funcionar.

Também já deixei as chaves em cafés, em lojas, em casas ou carros de amigos e nunca tive qualquer problema. Confesso que também pedi a pessoas estranhas que estavam na praia para me guardarem as chaves ou um saco onde as deixava, enquanto surfava.

Quando a necessidade é muita, tenho amigos que as colocam debaixo de pedras, nas rodas do carro ou, pasmem-se:

 

"um jovem pai contou que chegou a enfiar as chaves numa fralda descartável encostada à roda do carro.

Pelos vistos, ninguém vai querer mexer naquilo"

 

As soluções mais comuns são levar as chaves ao pescoço, no fato de neoprene ou no pulso. Esta última solução só é possível se não for daquelas chaves com código ou muita eletrónica. Nesse caso, um saquinho completamente impermeabilizado resolve o assunto. Contudo, a melhor solução é sempre entregar a um amigo porque nunca, mas mesmo nunca, surfem sozinhos.

As barras longitudinais são outra questão. O Ford Fiesta que referir, como era comercial, não tinha essas barras longitudinais e tive alguma dificuldade em conseguir colocar umas barras transversais. Numa das muitas viagens que fiz, improvisei uma espécie de surf rack em esponja com uma fita a segurar que, por sorte, não rebentou em plena autoestrada. Com o atrito do vento elas foram ficando completamente desfeitas.

A necessidade de ter uma prancha dentro do carro é fundamental se trabalhas e não tens tempo de ir a casa buscar o equipamento ou se, acordas de madrugada, e não tens cabeça para estar a colocar as fitas. Abres a mala traseira e enfias a prancha la para dentro. Não é uma conduta que aprove até porque o lugar da prancha é no teto do carro em cima das barras transversais.

 

Forma correta de transportar pranchas de surf

 

Contudo, e também no Ford Fiesta, foi nele que, com uma 7.2 da Phenix enfiada no entrepara, fui apanhado pela GNR numa praia penso que em Viana do Castelo ou Vila do Conde. Um simpático agente pediu-me os documentos, perguntou-me o que aqui estava a fazer e respondi, muito humildemente, que vinha surfar pois as condições prometiam. Eis que ele, depois de dar uma volta pelo carro, diz o seguinte: “Companheiro, vou pedir para que tu, imediatamente, tires daqui o carro e te ponhas andar. E isto, digo te já, é porque tenho respeito pela malta do mar. Porque, com seguro desatualizado, pneus carecas, falta de luz de stop e, ainda por cima, com uma prancha dentro do carro… Nem vendendo o carro tinhas dinheiro para pagar as multas! Pira –te”.

 

* Por Rafael Amorim 

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