Crónicas de um Surfista de meia idade- O Surf enquanto elemento constante da vida
Estávamos a meio da década de noventa quando fiz dezoito anos...
*Por Rafael Amorim
... entrei para o ensino superior, tirei a carta de condução e comecei a morar sozinho em Vila Nova de Gaia. Mesmo assim, a presença do mar continuou a ser um elemento constante da minha vida. Só tinha de me adaptar seguindo um velho ditado:
"Se a vida dá limões, faz uma limonada"
Morava perto da estação das Devesas, o que facultava uma boa mobilidade, seja pelo acesso à ferrovia, que me permitia chegar aos Aliados ou a Espinho, apanhar o 33, o 37 ou o 78 dos STCP para Coimbrões, Foz e, depois, Matosinhos, como, sobretudo, utilizar as camionetas da Espírito Santo para chegar às Praias de Lavadores ou Canidelo.
Numa primeira fase de adaptação à nova vida, enquanto jovem adulto, não obstante o conforto que os meus pais me forneciam, tinha de tratar da casa, das refeições, chegar a horas às aulas e habituar-me a viver sozinho. O Bodyboard teve um papel importante nesta etapa, pois permitiu-me continuar a ter contacto com o mar.
A portabilidade do material de Bodyboard é incomparavelmente mais fácil do que uma prancha de Surf (por muito pequena que seja) e permitia, sem incomodar ninguém, colocar o saco ao meu lado no comboio, autocarro ou camioneta.
De qualquer forma, apercebendo-se da quantidade de quilómetros que ia fazendo, quer para a minha vida do dia a dia, quer para a faculdade, quer para quando retornasse a Ovar aos fins de semana, os meus pais ofereceram-me um carro que me permita muito mais mobilidade e, quase em ato contínuo, passar do BodyBoard para as Malibus, Shortboards e, por aquelas pranchas que me acompanham nestas últimas décadas, as Longboards.
Mesmo com alguns anos de BodyBoard, tinha todo aquele fervor de quem tinha começado a surfar há meia dúzia de dias.
"Não olhava a meios para, sempre que possível, conseguir escapar para a Praia."
São desse tempo sessões memoráveis em finais de tarde em Matosinhos, horas infindáveis em Espinho, as surfadas matinais em Vila Nova de Gaia, na Praia da Sereia (Salgueiros) ou no Paredão (Canide Norte), e quando aproveitava a maré cheia para surfar na Praia do BPA ou do Rocky Point (Valadares).
Trocava correspondência com surfistas de outros países, ajudava amigos e conhecidos a comprar material – algum já provindo da Objetos Modernos Não Identificados (OMNI) - a iniciarem-se no surf, a conhecerem pessoas, a escolherem escolas de surf, a darem os primeiros passos nesta vida e a enamorarem-se, sobretudo, pelo Longboard.
Inúmeras vezes, a minha prancha de Longboard acompanhava-me para a Universidade, provocando a minha ausência, e de alguns colegas, a algumas aulas práticas de final de tarde para irmos surfar, passar umas horas numa esplanada junto à praia ou em Surf Shops como a Surf Local, em Leça, a Waimea, em Matosinhos, a WestCoast, no Porto, do José Manuel Lucas, a OMNI, em Gaia, do Miguel “Cebola” Ferreira ou, quando estava em Ovar, na Animal Surf Shop, do João Carlos Paulo. Curiosamente, estes últimos, todos longboarders.
João Carlos numa das suas lojas no Furadouro
Foi também nessa altura que comecei a sentir a necessidade de intervir na sociedade com base no velho lema “Think Global, Act Local”. Embora o Surf seja um desporto de prática isolada, um bom surfista tem de estar atento à sociedade em que se insere, proteger a natureza e lutar pelo que acredita. Mas isso será um assunto para falarmos numa outra crónica.
Com o virar do século, o fim da Universidade, o início da minha vida profissional e a expansão do Surf em Portugal, especialmente na zona Norte, comecei a dar um pequeno contributo para a criação de escolas, lojas, núcleos/associações, organização de eventos e a participar, com artigos e intervenções em revistas, fóruns ou grupos de amigos.
Artigo sobre Surf Music publicado na Surf Magazine n.º 68, a 16, Dez_Jan 2003
Tinha tirado o curso de júri de competições de Surf – numa ação de formação da Nazaré - e, durante alguns anos, andei por campeonatos locais e regionais a olhar, horas e horas a fio, para dentro de água. Nunca colocaram em causa as pontuações que dava ou as decisões que tomei em conjunto com os outros membros do júri. Era uma atividade exigente e, muitas vezes, pouco valorizada.
Campeonato na Praia do Furadouro, em Ovar, em 2001, com Pedro Barat a Rocha, Francisco Malafaya e João Paulo, da Animal Surf Shop
Alguns dos longboarders do Campeonato da Praia da Luz: Pedro Barata Rocha, Hugo Taipa, Miguel Ferreira e Rui Figueiredo
Campeonato na Praia da Luz, em 2000, com David Mourão e Nuno Beleza Andrade
Preferi, até porque o tempo era escasso, fazer como os surfistas que trabalhavam para o Bear no “Big Wednesday” e ocupar esse tempo a surfar. De qualquer forma, guardo com carinho o meu cartão de federado pelo, já extinto, clube de surf do Sport Comércio e Salgueiros.
Cartão de Federado pelo Sport Comercio e Salgueiros
Nunca fui atleta de competição, nem tinha perfil para tal, mas, especialmente nos circuitos de Longboard que acompanhei, sempre senti existir uma sã camaradagem e um bom ambiente de festa. Fiz inúmeros amigos nesses circuitos, o que me possibilitava comprar pranchas semi usadas a preços mais baixos, aconselharem-me praias, viagens ou, até, receber guarida quando pretendia ir para a Costa Vicentina ou Lisboa.
Das pranchas cuja quantidade perdi memória, restam as saudades de uma das minhas primeiras Longboards – Nalu - uma Lufi Model de tons arroxados e que me foi vendida pelo Rui Monteiro - a preço da chuva e partida em dois – e que depois de arranjada pelo histórico shaper de Gaia, Abílio “billy” Pinto, serviu, com muito carinho, durante dois/três anos e, tanto quanto sei, ainda apanhou muitas ondas depois disso nas mãos de outros surfistas.
Abílio Pinto a shapear há 25 anos
Num registo diferente, recordo uma Takayama/Slater Surftech Longboard, que, num dia de algum respeito no Furadouro, penso que por volta dos anos 2010 ou 2011, se transformou em duas metades porque não soube ser humilde para perceber que as condições estavam muito agrestes.
Temos de ser humildes e cautelosos nas nossas ações e, no Surf, tal como na vida, os erros pagam-se caros. Não tenho recordação de onde li, ou ouvi, este pensamento do Laird Hamilton em que ele dizia que o mar tinha o sistema de justiça mais perfeito que alguma vez tinha tido contacto.
"Se te portares bem e fizeres tudo direito, o mar recompensa-te, se fizeres o oposto, o mar castiga-te"