Crónicas de um surfista de meia idade - "Retalhos de uma Passagem de Ano..."
"Direitas escondidas pela colina, uns chapelinhos e muitos amigos..."
"Saímos por volta das 16:30 de Gaia e, como tínhamos quase 600 km pela frente, em vez de passar por Aljezur para pousar o nosso material, decidimos ir diretos à festa no Monte da Raposeira ter com o Miguel...."
*Por Rafael Amorim
Rafael, Pedro e Miguel Cebola(da esquerda para a direita)
"Estava acordado desde as 06h:30, ainda sob o efeito de uma constipação que teimava a não desaparecer, e nem a perspetiva de uma manhã diabólica de trabalho demovia o meu pensamento de tirar 3 dias para surfar, com os meus amigos, em Sagres e na Costa Vicentina.
No dia anterior tinha ido pedir ajuda ao Dr. Olímpio Ferreira, pai de um dos protagonistas desta história, que sempre disponível, já passava das 20h:00 quando o fui chatear a sua casa em Lavadores, la ouviu as minhas lamúrias: “Doutor, amanhã vou passar três dias ao Hostel do seu filho na Raposeira e tenho de estar em condições. Ajude-me senão os meus planos vão todos por água abaixo e não sei quando consigo ter outra hipótese como esta”.
Ele riu-se, sempre bem-disposto, e sobretudo conhecedor das atividades recreativas do filho e dos seus amigos, disse para passar por uma farmácia e comprar uma batelada de medicamentos parar minorar os efeitos da constipação. Quando já estava a chegar à porta, diz, “Espera aí”, e trouxe uma caixa de comprimidos efervescentes Gurosan com um recado “Acho que vocês vão precisar disto”.
A manhã de trabalho que tinha pela frente antes de rumar a sul era muito intensa, como a função que na altura ocupava exigia, mas a tolerância de ponto permitia-me sair à hora do almoço de Gondomar e, numa azáfama tremenda, recolher o meu carro em Matosinhos, ir buscar o Pedro ao Porto e ir correr a casa, a Gaia, para colocar os essenciais na carrinha.
Essenciais, subentenda-se, despir o fato e a gravata, calçar umas calças de ganga, uns ténis, uma camisola e o meu inestimável casaco verde da Element, juntar umas peças de roupa, atiradas ao acaso para dentro de um saco de desporto, pegar no meu Quiksilver Cell azul e branco, enfiar a minha Lufi no saco de viagem e meter pés ao caminho.
O carro – uma carrinha Clio de primeira geração - estava carregada de pranchas, sacos com roupa, encomendas para os nossos amigos, a Reef e nós os dois. As nossas Longboard´s, sem quilhas, iam enfiadas no banco da frente o que obrigou ao Pedro e a Reef a viajarem encolhidos no banco de trás do condutor.
Rafael e a sua carrinha Clio.
Saímos por volta das 16:30 de Gaia e, como tínhamos quase 600 km pela frente, em vez de passar por Aljezur para pousar o nosso material, decidimos ir diretos à festa no Monte da Raposeira ter com o Miguel.
A viagem, embora chata, não teve qualquer sobressalto. Uns croissants mistos, rissóis, fruta e bolachas, música a bombar dos Fat Freddy's Drop – o Pedro andava louco com estes tipos - Dave Pike Seat, Joe Beats e muita, mas muita conversa, fez com que uma viagem de horas transformasse em breves instantes.
Há alguns anos que diversos amigos, e conhecidos, foram de armas e bagagens para o Algarve e fixaram-se em Sagres, Vila do Bispo ou Aljezur. Os que aqui refiro, ainda hoje lá estão. Casaram, tiveram filhos e vivem uma vida de comunhão com a natureza e com o surf. O tempo quente, as festas, a bucólica paisagem da Costa Vicentina e, acima de tudo, ondas de primeira qualidade, foram as razões encontradas para tal decisão quando éramos mais novos.
Chegamos ao Monte da Raposeira, por volta das 21h. Estavam perto de trinta pessoas dentro de casa, com uma aparelhagem de som improvisada, luzes, cães, churrasco, vinho, cerveja e muito mais. Os condimentos necessários para umas boas horas numa Surf Party disfarçada de passagem de ano.
Sentia-me um zombie! Constipado, com cinco horas de condução, uma manhã de trabalho tremenda, mas não queria estar em outro local.
Passado algumas horas, com a animação, estava tudo alegre, com malta a querer fazer uma surftrip para Marrocos no dia seguinte, a dançar feitos loucos ao som dos grandes êxitos dos anos oitenta e noventa quando alguém diz: “Pessoal, estão a ouvir os foguetes, parece que o ano já passou!”. No meio daquela atividade, ninguém se tinha lembrado de ver os relógios. Desatou se tudo a rir e abrimos umas garrafas de cerveja e espumante para comemorar a ocasião.
Estava tudo na onda. Encontrei velhos amigos, conheci novas pessoas, a música era fixe, comia-se um bom churrasco e divertíamo-nos. Foi isso mesmo que o médico tinha mandado. Só me lembrava das benditas pastilhas de Gurosan do Dr. Olímpio Ferreira.
Às 03h00 disse ao Pedro para irmos para casa. Estava, literalmente, de rastos com o cansaço e o Pedro fez a viagem do Monte da Raposeira até Aljezur. Mas mesmo assim, ainda alucinados, berrávamos, em loop, a letra do “King of the Road” dos Fu Manchu. Até hoje, no meu ouvido, surge em volume máximo a frase “King of the Road says you move to slow”.
Sem me ter apercebido, o Pedro parou o carro no “L-Colesterol” em Aljezur, para queimar os últimos cartuchos. A festa estava animada, com algumas dezenas de pessoas, dentro e fora do restaurante. Não faço a mínima ideia de quanto tempo estivemos lá dentro. Lembro, muito vagamente, de ter pedido duas garrafas de águas –má escolha- de ter encontrado o meu primo Paulo, o Bruno, a Filipa e algumas amigas do Pedro. Sei que a certa altura, fui para o carro e adormeci.
Chegamos a casa, já deveriam ser por volta das 06h. Acordamos ao meio dia com uma sede imensa (bebemos pouca água durante a noite e como tal estávamos desidratados) a primeira coisa que a minha cabeça se lembra é do “Abracadabra” do Steve Miller. Sim ... Sim… “Abracadabra… I´m Gonna Reach and Grab ya”. Ouço uma voz gutural, que vinha da parte de cima da casa e que dizia, “É pá, oh Rafa, essa não ...”.
Para que os nossos leitores entendam como certas músicas, mesmo que sejam más, pirosas ou sem qualidade, podem marcar a nossa vida para todo o sempre, durante esses dias, não mais falaríamos de outra coisa, não mais queríamos ouvir outra música que não fosse a Steve Miller Band.
Ainda tentamos ir surfar. Mas sem hipótese. Estávamos muito cansados. Como chovia um pouco, fomos passear a Reef, continuávamos na conversa, fizemos o jantar em casa e demos uma volta pelo centro de Aljezur.
Duas vielas abaixo da casa do Pedro, viviam umas amigas do Porto, em que uma delas ia celebrar o seu aniversário dentro de poucas horas, pelo que se impunha cantar os parabéns, à meia-noite, com um bolinho de chocolate caseiro com fósforos em vez de velas.
Estivemos na conversa, mas o cansaço (sempre o cansaço) obrigou a recolher pouco tempo de pois, mas sem que elas, primeiro, nos emprestassem dois edredons para termos uma noite mais quente. Estava um frio desgraçado naquela casa.
No dia seguinte o Pedro tinha de ir trabalhar, pelo que, as meninas do Porto mais uns amigos em comum, acolheram me e andei com eles por todo o lado. Andamos à procura de ondas, sobretudo junto à Praia do Amado, mas, perdidos pela falta de condições, liguei ao Miguel e marcamos um encontro no Miradouro do Castelejo.
Devo confessar que vou para a Costa Vicentina, há muitos anos, e, até esse dia, não conhecia o Miradouro do Castelejo. Situado num alto de um monte, com uma paisagem brutal, podemos ver o perímetro florestal de Vila do Bispo, a panorâmica da costa e a Torre da Aspa, próxima da Praia do Castelejo.
Enquanto eles iam para Ponta Ruiva, nós decidimos ir para a Praia do Castelejo. Direitas à descrição, bom canal para atravessar, pouco agressivo e com alguma piada. Estava tudo cheio de fome de ondas e, com o avançar do tempo, já todo eu era um sorriso. Tinha levantando o cansaço das minhas costas e estava feliz.
Chovia, mas o sol apareceu, o mar ficou verde-claro, o tempo estava “quente” e a natureza brindou com um arco-íris lindo. Enquanto uma das nossas amigas ficava em terra a tirar fotos, o resto da malta aproveitava a ondulação.
Saímos em direção a Vila do Bispo, para umas tostas mistas, uns telefonemas, uns cigarros, umas meias de leite, uns chazinhos, batatas fritas e, sempre, muita conversa. Estava tudo relaxado.
Logo a noite havia festa novamente. Tínhamos de, oficialmente, celebrar o aniversário como devia ser. Com pizza e, novamente, bolo de chocolate!
Pedro, Rafael e Filipa.
Deixaram-me em casa, onde prometi que ia tomar um banho rápido e depois ia ter com elas. Contudo, cheguei a casa, tomei um banho, larguei a “reef” no mundo e adormeci. Acordei com a buzina de um carro e uma voz feminina aos berros “Rafa! Vamos embora! Está tudo à tua espera! É a minha festa de anos!”. Abro a porta, vestido com uma T-shirt e com uma toalha à volta da cintura, e peço “5 minutos”. Fui no carro delas e entre curvas, velocidade, garrafas de vinho e um bolo de aniversário - que quase sucumbia no meu colo - conversa e risos, ainda ouvimos o Rui Vargas na Antena 3.
Atolados com meia (?) dúzia de minis, umas garrafitas de vinho tinto, e branco, e toda a pizza que pudessemos comer, estávamos já em Vila do Bispo, na “Good Feeling”. As pizzas rolavam, voavam e eram comidas por uma cambada de doidos mortos de fome.
“Oh Amuras, esta não é para ti. Tem calma que já te trago mais uma.” dizia o Miguel cada vez que passava pela cozinha enquanto alguém já preparava a discoteca ambulante nos anexos da casa. Ouviam-se os acordes do “Nunca me deixes” dos “Da Weasel”.
Não ficamos até muito tarde porque o Pedro trabalhava de manhã e eu queria surfar cedo. Saímos do Monte da Raposeira, mas sem antes levar umas minis e duas pizzas para o pequeno-almoço. “Oh Barata, leva comida para casa senão esse gajo passa fome”, berrava o Miguel na marquise do Hostel.
Acordei cedo nesse dia, fiz um périplo de telefonemas e disse à malta para irmos surfar porque, ao final do dia, tinha de ir para cima. Fomos diretos à Arrifana, para uma leve surfada, e terminamos no Zavial. Entramos às 12 e saímos por volta das 14. Uma boa hora de almoço. Direitas escondidas pela colina, uns chapelinhos e muitos amigos. Foi uma excelente despedida. Quando estava de regresso, por volta de Fátima, onde já chovia torrencialmente, senti o “No Aljezur Blues!”."