Crónicas de um surfista de meia idade - Os Primeiros Anos
Entre os 14 e 18 anos de idade, vivi distante do mar por isso era necessário ser inventivo.
*Por Rafael Amorim
"Vivíamos, por breves instantes, numa bolha abençoada de ignorância
que nos fazia estar alheados de tudo ao nosso redor...."
Entre os 14 e 18 anos de idade, vivi distante do mar por isso era necessário ser inventivo. Andar à boleia, viajar de comboio, organizar excursões de autocarro, meter-me nas traseiras de camionetas de caixa aberta, andar na pendura de uma Casal Boss ou colar-me às férias de amigos dos meus pais só porque sabia que eles iam para a Costa da Caparica ou para Sagres, tudo era justificável. No Surf, como na vida, quando há vontade tudo acontece.
A famosa Casal Boss
Nesse tempo, anos noventa do século passado, fazer uma pequena Surf Trip a Espinho ou à Torreira era um desafio. Recordo que contávamos com a ajuda de uma loja de produtos desportivos na praia do Furadouro (Ovar) ou de alguns dos meus amigos do Colégio Interno do Carvalhos que, no fim de semana e nas longas férias de verão, davam me guarida ou, simplesmente, orientavam as nossas viagens.
Era uma época de aventuras que, embora controladas, não deixavam de ter os ingredientes da adolescência. Éramos putos, em pequenos grupos parecíamos animais sedentos de mar e sol, algumas vezes com atitudes estúpidas e barulhentas, carregados de areia e sal, sempre com fome, cheios de sono, mas nunca cansados para mais umas horas de Surf.
"A única coisa que interessava
era ir para a Praia e surfar."
O nariz pintado de azul/rosa pelo Zink, as T-shirts coçadas de cores berrantes em calções multicolores e, para alguns, cabelo alourado do sol, contrastavam com casacos de gang cheios de patches de bandas de musicas, mochilas com desenhos e nomes de marcas de Surf e ténis rasgados do uso.
Não tínhamos grande paciência para figuras da autoridade, mas havia algum respeito pelos nadadores salvadores ou por quem trabalhava na Praia. Metíamo-nos em sarilhos, por coisas que não mereciam o nosso tempo ou das quais não tínhamos qualquer necessidade. O dinheiro que nos era entregue, rapidamente, desaparecia em cigarros comprados avulso, cerveja, batatas fritas, dancakes e outras porcarias.
"Uma playlist, do lado B, com músicas dos Ratos de Porão,
X-Acto, Minor Threat, Death Kennedy’s, M’as Foice
e Mão Morta..."
Liam-se revistas brasileiras de surf/bodyboard, víamos o Portugal Radical ou o Sem Limites e cobiçávamos as cassetes de VHS que, de preferência, tivessem o Mike Stewart ou o Ben Severson.
A música era muito importante. Definia quem éramos, onde pertencíamos e o que se esperava de nos. Isso acontecia especialmente com o punk e hip hop. Eram essas as cassetes de áudio que estavam sempre enfiadas no bolso da frente do saco da prancha. Tudo era consumido de forma separada ou em conjunto. Sem preconceitos.
A banda sonora do Judgement Night, que fazia parte do lado A de uma cassete áudio de 90 minutos, e uma playlist, do lado B, com músicas dos Ratos de Porão, X-Acto, Minor Threat, Death Kennedy’s, M’as Foice e Mão Morta, mostravam que éramos “diferentes”.
Éramos uns patetas alegres. Não tínhamos a mínima noção do mundo exterior. Apenas daquilo que nos movia. Vivíamos, por breves instantes, numa bolha abençoada de ignorância que nos fazia estar alheados de tudo ao nosso redor. A única coisa que interessava era ir para a Praia e surfar.
Assim éramos felizes nos anos noventa do século passado.
*Por Rafael Amorim
O Hawaiano Mike Stewart visitava Portugal com frequência naquela altura.
*Conforme podem ler na crónica" Where there's a will there's a wave" o autor começou aos 14 anos por fazer bodyboard.