"Surf como um ritual de sobrevivência - na época Covid 19..."
Se não fosse o surf...
Francisca Campos a nova cronista Surftotal, tem 29 anos, nasceu e cresceu na cidade do Porto, onde se licenciou em Ciências do Desporto (FADEUP). Faz parte de uma família de velejadores e por isso, fez parte da sua educação o amor e respeito pelo mar.
Aos 10 anos apaixonou-se pelo surf e nunca mais parou.
Jogou rugby durante a adolescência e entrada na vida adulta, pelo CDUP, Sport Club do Porto e na Seleção Nacional.
Profissionalmente a sua paixão é a hotelaria, sobretudo leisure resorts. Em qualquer um dos campos da sua vida gosta de falar abertamente, bem como de escrever, sobre a saúde mental e emocional. Sente que é importante combatermos o estigma.
SE NÃO FOSSE O SURF:
*Por Francisca Campos
"O Surf é detox dos ecrãs, das redes sociais e da media
que são os catalisadores da ansiedade e do stress..."
”Lembro-me de numa tarde de sol, há cerca de 4 anos atrás,sair da água porque o mar estava grande. Já tinha surfado duas ondas boas e custava-me regressar para o outside. Quando o set entrava ficava aterrorizada, o meu “patinho” não era suficientemente fundo e acabava por ser enrolada na rebentação,tempo suficiente para ser dominada pelo medo de não conseguir voltar à tona a tempo de respirar. Então saí da água de cabisbaixo e,já com os pés na areia seca parei, olhei para trás e fiquei ali imóvel a fixar as ondas. O medo continuava bem presente,mas sentia vontade de voltar a entrar. Não queria acabar a sessão frustrada. Na altura tinha 25 anos, tinha concluído recentemente a minha reabilitação e tinha acabado de resgatar tanto a minha autonomia como a minha auto estima. Foi precisamente o lugar feliz e emocionalmente pleno onde me encontrava,que me me impulsionou para voltar a entrar e desfrutar de mais uma hora de surf. Nunca o tinha feito antes, nunca tinha sentido aquela confiança, aquela forma de coragem e resiliência. Hoje compreendo que naquele momento estava a devolver ao desporto o que ele me deu a mim.
"A depressão é considerada a doença do século XXI e agora,
como efeito colateral da pandemia, alastra-se velozmente..."
Cada modalidade desportiva coloca em práctica diferentes potenciais individuais, tanto físicos como psicológicos,mas se a linguagem desportiva for correcta,é sem duvida um espaço privilegiado para a formação das crianças e jovens, bem como um suporte para a vida adulta.Eu fui provavelmente dos piores exemplos enquanto atleta rugby de alto-rendimento–tinha o potencial, mas tinha sobretudo um sem fim de maus hábitos – no entanto,dos melhores a retirar enquanto jovem atleta. O rugby e o surf foram e serão sempre os meus pilares. Foi no desporto que desenvolvi e desfrutei das minhas melhores e essenciais características como ser humano, conectada comigo – psqiue e fisiologia – com a natureza e com os outros. Talvez por isso e por ter crescido a extrai-las para a minha vida pessoal e profissional, procuro continuamente alcançar uma forma de viver consciente. Pelos hábitos, competências e valores que me foram fomentados durante a prática desportiva e que se refletem em softskills.
De destacar a importância de todos os professores, treinadores e colegas que sustentaram a linguagem desportiva correcta. Em Julho, quando fui forçada a regressar a Portugal sem emprego, trouxe comigo uma avalanche de medos e incertezas. Este intervalo forçado na minha vida fez com que me voltasse a virar para dentro e voltasse a surfar todos os dias. E como sempre o desporto, recompensa-me pela dedicação, mantendo-me incólume (mentalmente) durante esta crise mundial e contribuindo para o sucesso na minha procura de emprego. Não tenho qualquer dúvida que foi o surf que me manteve positiva e resiliente durante este período.
"O rugby e o surf foram e serão sempre os meus pilares..."
A depressão é considerada a doença do século XXI e agora, como efeito colateral da pandemia, alastra-se velozmente. Umasolução evidente para a combater é através do desporto. Isto porque o exercício físico faz com que o corpo produza mais serotonina e endorfina, as chamadas hormonas da felicidade,que são responsáveis pela sensação de bem-estar.
O panorama actual não aconselha o desporto em espaços fechados e ainda bem, porque incentiva os desportos ao ar livre, de que tanto sou apologista. São muito claros os benefícios da natureza para a saúde mental e o mar em particular tem um efeito calmante.
Existe um estudo iniciado em 2013, pela Marinha dos EUA sobre os efeitos da prática do surf em militares com stress pós-traumático. De acordo com a pesquisa, durante e depois de um programa de surf ao longo de cerca de um mês, os resultados mostraram que a modalidade levou à diminuição de insónia e ansiedade, atenuou a visão negativa da vida, entre outros sintomas de depressão.
"A biofilia (nome cientifico para o convívio com a natureza),
que de alguma forma nos indica qual o nosso lugar neste planeta..."
No mesmo ano, o Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido, realizou também um programa onde oferecia aulas de surf como forma de terapia. Em2015 foi notícia que alguns médicos franceses começaram a prescrever aulas de surf a doentes com problemas do foro psicológico, como alternativa à prescrição de medicamentos. Recordo-me que nesse mesmo ano, por indicação de um médico, dei aulas de surf privadas a uma criança de 8 anos que sofria de autismo e que se refletiram num estado de espirito mais sereno da mesma. Claro está que o surf não é uma cura milagrosa, pois somos todos diferentes. Para mim é sem dúvida uma forma de terapia e acredito que possa ser para muitos portugueses, já que temos 943 km de costa (Portugal Continental) e a nossa História está indelevelmente ligada ao mar.
Nem que seja como detox dos ecrãs, das redes sociais e da media que são os catalisadores da ansiedade e do stress. Se por um lado temos a dopamina (chamada hormona do prazer), por outro temos a biofilia (nome cientifico para o convívio com a natureza), que de alguma forma nos indica qual o nosso lugar neste planeta.
O surf nunca foi nem nunca será apenasum desporto. Para os que descobrem e se identificam com a sua essência, torna-se num estilo de vida. Agora mais do que nunca, pode ser também um ritual de sobrevivência.
Francisca Campos - Outubro 2020