"HÁ UMA CRISE NO ENSINO DO SURF EM PORTUGAL"
A Associação surgiu devido à falta de representação sentida pelos fundadores...
A Surftotal tem aproveitado esta fase em que há mais tempo para reflectirmos, sobre nós mesmos e importantes assuntos que nos rodeiam, para colocar em debate temas do interesse comum na realidade do Surf Nacional e Internacional. Esta entrevista com o Afonso Teixeira, Director executivo da Associação das Escolas de Surf em Portugal, visa dar o mote para um debate sobre o presente e o futuro deste sector que representa, quer queiramos quer não, a base da pirâmide do Surf !
"A falta de regulamentação, as divergências nos processos de licenciamento
nas diferentes Capitanias
e o crescimento turístico contribuíram
para um crescimento absolutamente desregulado da nossa atividade"
O ensino do surf está na base da pirâmide da cultura do surf - Click por Tó Mané
Surftotal: Conta-nos como, porquê e quando surgiu a Associação de escolas de Surf de Portugal?
Afonso Teixeira - A Associação de Escolas de Surf de Portugal foi fundada no final de 2013, fruto da união de 10 operadores de norte a sul do país - os membros fundadores - e em 2018, começou a funcionar de forma profissional, a tempo inteiro, momento em que abriu à adesão de novos associados. A Associação surgiu devido à falta de representação sentida pelos fundadores, que se revelou ser muito mais abrangente à medida que novos associados se foram juntando. A falta de regulamentação, as divergências nos processos de licenciamento nas diferentes Capitanias e o crescimento turístico contribuíram para um crescimento absolutamente desregulado da nossa atividade, que já era claro em 2013 e se estava a tornar insustentável após o verão de 2017, sem que nenhuma entidade estivesse a solucionar o problema a nível nacional. Por isso, decidiu-se fazer o esforço de relançar e profissionalizar a Associação, com a criação de um posto de trabalho e grande envolvimento dos membros da Direção.
Surftotal:O objetivo da associação de escolas de surf em portugal passa por?
Afonso Teixeira - O nosso objetivo é muito claro: que esta atividade se torne sustentável e que as praias sejam um espaço onde todos os utilizadores - free surfers, escolas, banhistas, etc. - tenham espaço e condições para poderem usufruir do sol e do mar de uma forma positiva e sem conflitos. Muitos acreditavam que este sector se iria autorregular e que, com base no bom senso, este objetivo se iria atingir naturalmente. Atualmente cada vez menos pessoas acreditam nisso, e tem-se tornado claro que não podemos simplesmente depositar a nossa confiança no bom senso global e que a situação subitamente apareça resolvida. Este sector está, de facto, cada vez mais insustentável e é absolutamente determinante que se criem determinadas regras para se ajudar a ordenar a atividade. Ao mesmo tempo, essas regras não deverão ser demasiado rígidas e deve-se deixar alguma margem para promover a dinâmica das várias atividades e dos espaços que ocupam na praia. Mais concretamente, neste momento um dos objetivos maiores da Associação é uma definição legal clara e objetiva daquilo que é um operador de ensino de surf, para que tal não continue a ser fruto da interpretação de quem licencia.
O ensino do surf deverá estar em total harmonia com o meio envolvente - Click por Tó Mané
"Queremos que esta atividade se torne sustentável e que as praias
sejam um espaço onde todos os utilizadores tenham espaço e condições"
Surftotal: Durante estes anos de existência quais são aquelas que consideras as grandes conquistas da Associação?
Afonso Teixeira - A grande conquista foi sem dúvida a adesão dos operadores. Contamos hoje com mais de 150 associados e continuamos a assistir a uma crescente união das escolas e treinadores, o que prova que a Associação é essencial e tem um lugar no desenvolvimento do surf em Portugal. A união destes operadores é essencial para que se atinjam os objetivos, antes da Associação este era um sector muito fragmentado e as escolas não dispunham de uma plataforma na qual pudessem participar ativamente e em que tivessem uma palavra a dizer na definição do seu próprio futuro. Com esta demonstração de união, outras conquistas foram surgindo naturalmente, tanto ao nível da participação na definição de regras locais junto das Capitanias, como na atuação a nível nacional com as diversas entidades que regulam a atividade (Turismo de Portugal, IPDJ, FPS, Autoridade Marítima, etc.), junto das quais os operadores de ensino surf estão hoje formalmente representados.
Surftotal: Qual a posição que a AESDP considera ocupar o ensino do surf na pirâmide do desenvolvimento do surf Português?
Afonso Teixeira - O ensino ocupa, naturalmente, a base dessa pirâmide. Desde o seu aparecimento, as escolas de surf têm desempenhado um papel absolutamente essencial no desenvolvimento de atletas desde a pré-competição ao alto rendimento, na promoção de atividades recreativas, na divulgação do espírito e da cultura de surf, na educação e literacia do mar para a população, entre outros. Ao contrário do que acontecia antes das escolas de surf, em que os surfistas aprendiam sozinhos, as mais recentes gerações de campeões, competidores e surfistas em geral, são fruto e tiveram origem nas escolas de surf.
Surftotal:Neste momento encontra-se nessa posição quanto a ti? porquê?
Afonso Teixeira - Sim, apesar do rápido aparecimento e propagação destes operadores, o ensino continua a ser a base do desenvolvimento do surf e muitas escolas continuam a desempenhar este importante papel. É certo que há vários operadores que se focaram exclusivamente no mercado turístico, mas ao mesmo tempo muitos continuam a prestar um importante contributo para a comunidade nacional, desde a adaptação ao meio aquático até ao mais alto nível de competição.
A transmissão correcta de ensinamentos e valores durante o ensino do surf poderão fazer toda a diferença no futuro comportamento do surfista - Click por Tó Mané
"O ensino do surf ocupa, naturalmente, a base da pirâmide"
Surftotal: Neste momento temos dois tipos de escolas de surf em Portugal, as que se dedicam ao turismo e lazer e aquelas que se dedicam ao ensino e competição, certo? queres-nos contar estas duas realidades? será possivel ambas leccionarem o surf de uma forma qualitativa? porquê?
Afonso Teixeira - De facto, o aumento da procura turística veio abrir novas janelas de oportunidade para os operadores de ensino de surf, trazendo consigo maiores margens e melhores resultados financeiros, permitindo uma sustentabilidade destes negócios que era difícil (ou mesmo impossível, em determinadas regiões) apenas com o mercado interno. São duas realidades distintas, mas temos vários exemplos de que ambas podem ser promotoras de formação de surf de qualidade. Neste campo, temos os operadores que se dedicam exclusivamente ao turismo e aqueles que apenas promovem o desporto, havendo ainda muitos que exploram ambas as vertentes. Há muitas vezes a perspetiva junto da comunidade de surf que os operadores turísticos de surf têm um impacto negativo, porque enchem as praias com praticantes estrangeiros e não contribuem para a economia local. Mas é importante perceber que a causa deste sentimento não é necessariamente a atuação dos operadores, mas sim a total desregulação da atividade. É também importante destacar que há muitos operadores turísticos que prestam contributos muito relevantes para as economias e empregos locais e que prestam serviços da mais alta qualidade a quem nos visita. Dito isto, acreditamos que há espaço para todos os tipos de operadores, desde que o seu ordenamento e regulamentação sejam feitos de uma forma sustentável e que a qualidade seja privilegiada. É possível prestar serviços turísticos com muita qualidade, tal como é possível apostar apenas no desporto e na formação e fazê-lo mal.
"Sabemos que no Turismo de Portugal existem cerca de 900 registos
de operadores que dizem prestar serviços de surf"
Surftotal:Vamos falar de números, Quantas escolas de surf existem em Portugal? quantas pertencem à Associação de escolas de surf de portugal? E quantas é que poderá haver na realidade (legais e não legais)?
Afonso Teixeira - Em relação à Associação, temos mais de 150 associados, mais de 100 dos quais são escolas de surf. Em linha com o que aqui já foi referido, não é fácil dizer o que é uma escola legal ou ilegal. Em última instância, uma escola legal é aquela que está licenciada pela Capitania ou pelo Município. Contudo, uma vez que não há uma lei que defina o que é uma escola de surf, as regras e requisitos impostos por quem licencia são muitas vezes divergentes. Ou seja, uma escola legal na Costa da Caparica pode ser muito diferente de uma escola legal em Peniche, por exemplo. Por este motivo, é também impossível dizer com exatidão quantas existem. Sabemos que no Turismo de Portugal existem cerca de 900 registos de operadores que dizem prestar serviços de surf, embora muitos deles não o façam nem estejam licenciados. Sabemos ainda que na FPS, no ano passado, houve cerca de 300 registos de escolas de surf, porque esse registo é obrigatório em alguns locais, mas não em todo o país, pelo que podemos estimar que o número real é certamente maior e que andará, provavelmente, entre os 400 e os 500.
"O registo anual na FPS
não o consideramos uma quota, mas sim uma taxa"
Surftotal:Quais as vantagens que uma escola de surf tem em ser associada da AESDP? Sabemos que há uma quota de associado, mas tambem sabemos que há quotas para pagamentos à FPS, ao Turismo de Portugal e Capitanias. Há ainda um certo investimento anual só para estas licenças todas, valem a pena? O que é que as escolas podem contar com estes pagamentos a estas entidades?
Afonso Teixeira - A principal vantagem para uma escola de surf em se associar à AESDP é ter a sua voz ouvida e efetivamente representada, e de ter um espaço para participar ativamente numa solução justa e equilibrada para o futuro desta atividade. Pode soar redutor, mas este é efetivamente o maior contributo que acreditamos dar aos operadores, que sabem que têm uma entidade a funcionar a tempo inteiro, em constantes deslocações e reuniões em representação do sector, e a que podem contactar a qualquer altura para verem os seus problemas resolvidos. Além disso, procuramos constantemente trazer mais vantagens para os associados, nomeadamente através de descontos em software de gestão, serviços de design e marketing, serviços jurídicos, formação, entre outros. Temos ainda a decorrer um projeto financiado pelo Portugal 2020 de formação e consultoria para as empresas do sector turístico, que será uma mais valia para ultrapassar a atual crise. Em relação ao restante, o que os operadores pagam são taxas e não quotas. Importa também destacar que a única licença é a emitida pelas Capitanias ou Municípios, que autoriza a operar em determinadas praias e que tem uma taxa associada que varia de local para local. Os restantes são meros registos, um obrigatório junto do Turismo de Portugal, que tem uma taxa única associada e que é paga apenas no momento do registo. O outro é o registo anual na FPS, que em alguns casos é imposto pelas Capitanias e tem associada uma taxa anual, que dá aos operadores um certificado de escola de surf, mas não lhes dá uma voz ativa e assento nas Assembleias Gerais, razão pela qual não o consideramos uma quota, mas sim uma taxa.
"Este será, provavelmente, o maior desafio que as escolas de surf em Portugal
terão que enfrentar desde que cá existem escolas de surf."
Surftotal:Agora vamos à questão que se põe devido ao difícil momento que atravessamos. Qual ou quais as soluções para uma escola de surf neste momento do Covid 19? Sabendo que é uma actividade sazonal e que acontece principalmente entre Abril/Maio e Outubro, quais as acções que a AESP está a desenvolver com os seus associados? há uma mediação com as diversas entidades existentes? FPS, Capitanias e Turismo de Portugal?
Afonso Teixeira - Este será, provavelmente, o maior desafio que as escolas de surf em Portugal terão que enfrentar desde que cá existem escolas de surf. São momentos de completa incerteza, a pandemia vai-se desenvolvendo dia-a-dia e com ela vão também aparecendo novas medidas e soluções, não necessariamente ao mesmo ritmo. De momento, as soluções que existem são, de uma forma geral, a de lay-off dos trabalhadores, que já está implementada e disponível para qualquer operador no site da Segurança Social; além dessa, há também linhas de financiamento para apoio à tesouraria que de momento estão disponíveis apenas para empresas, nomeadamente uma linha geral para PMEs através da banca e uma linha através do Turismo de Portugal apenas para microempresas do sector turístico, que tem a vantagem de o reembolso estar isento do pagamento de juros. Podendo haver outros apoios mais específicos para determinadas situações, estes são de momento os mais gerais que se aplicam a estes operadores, faltando ainda soluções para clubes e associações, bem como para os sócios gerentes das empresas. Sabemos ainda que o sector turístico será um dos mais afetados, podendo-se prever que o mercado interno possa estar a funcionar minimamente ainda este Verão, sendo que muito dificilmente as viagens internacionais e, consequentemente, o mercado externo, estarão de volta a algo que se assemelhe à normalidade. Dito isto, cabe-nos acompanhar atentamente os desenvolvimentos e ir definindo estratégias. Temos atualizado constantemente os nossos associados em relação às medidas que vão sendo implementadas e procuramos aconselhá-los da melhor forma, sendo que de momento o mais importante é garantir a manutenção dos fundos necessários à sobrevivência destes operadores. Temos também procurado junto das diversas entidades e do Governo encontrar soluções mais específicas e adequadas à realidade destes operadores, inclusivé a operadores e entidades sem fins lucrativos. Contudo, apesar do panorama estar de facto pintado de negro, testemunhámos no Encontro de Escolas e Treinadores que promovemos na semana passada via vídeoconferência, uma incrível união, força de vontade e resiliência por parte de todos os participantes, o que nos deixa confiantes na capacidade que teremos de, em conjunto, ultrapassar este obstáculo e de voltarmos ainda mais unidos e capacitados. Fica aqui por isso uma palavra de força a todos os operadores, reforçando que a união é, agora, mais importante do que nunca.
"Continuamos a não sentir o reconhecimento e validação no lado desportivo,
nomeadamente da FPS, que tem estado muito afastada das escolas de surf."
Surftotal: Essa mediação, essa representação poderá ser efectuada na integra pela AESDP? e assim o ensino de surf tem finalmente uma associação de classe que represente as escolas de surf em portugal?
Afonso Teixeira - É esse o papel que nos temos proposto a desempenhar. Neste momento, há uma grande discussão em torno da divisão do turismo e do desporto ao nível dos operadores surf, com cada uma destas forças a tentar puxar a si mais poder e autoridade. Nós acreditamos que podemos ser a balança entre estas duas dimensões, por considerarmos que há espaço para ambas e que estão dependentes uma da outra. Por um lado, se nos quisermos orgulhar do surf no nosso país não poderá haver turismo sem desporto, por outro o desporto não seria o mesmo sem as receitas geradas pelo turismo. De momento, sentimos o reconhecimento do lado turístico da importância do nosso papel, estando próximos, entre outros, do Turismo de Portugal e da Associação Portuguesa das Empresas de Congressos, Animação Turística e Eventos (APECATE) na procura de soluções para esta dimensão. Contudo, apesar das nossas tentativas, continuamos a não sentir o reconhecimento e validação no lado desportivo, nomeadamente da FPS, que tem estado muito afastada das escolas de surf e que não nos confere o papel de agente unificador na luta pela conquista de objetivos que são comuns a todos. Apesar disso, independentemente das recentes divergências, mantemos a confiança que esta situação será ultrapassada o mais brevemente possível, o ensino de surf está a atravessar um momento de transformação e é determinante que a federação e as escolas estejam juntas, a trabalhar em parceria e a lutar para que se preserve o espírito e a cultura do surf em Portugal. Fica assim uma mensagem de esperança para as escolas e um apelo à FPS para resolvermos em conjunto os problemas e os desafios que enfrentamos."
"É determinante que a federação e as escolas estejam juntas, a trabalhar em parceria
e a lutar para que se preserve o espírito e a cultura do surf em Portugal."