Nó de Água - Uma Onda de Cada Vez
João Valente é o novo cronista Surftotal... faz aqui uma analise ao ano de 2020, projetando também 2021
"É inútil desejar que as coisas mudem para melhor por mero decreto da esperança, pelo que está nas mãos de cada um fazer o que está ao seu alcance, no plano individual e coletivo para tornar realidade o que antes víamos como impossível,..."
*Por João Valente
Confesso que o aproximar do final deste ano deixa-me mais apreensivo que aliviado. A quantidade de novas ocorrências parece querer mostrar um esforço final deste infame 2020 para infligir ainda mais sofrimento do que o entretanto já causado.
A imagem que me vem à cabeça é a de Gandalf, no filme Senhor dos Anéis, depois de enviar o demónio para o abismo — “You shall not pass!” — a ser agarrado e arrastado pelo chicote da besta. Mas no fundo sabia que não havia de ser nada. Mais uma vez, a passagem simbólica do tempo se irá desvanecer em continuidade e teremos de lidar com a reconstrução do que foi perdido e com as certezas que nos movem.
"...se pensarmos bem, nem tudo foi negativo.
Principalmente para nós, frequentadores de ondas...."
Mas eis que chega ao fim o ano de todas as lamentações. Eu devia ter adivinhado, ou intuído o que aí vinha. Já tinha lido as notícias de uma epidemia qualquer pelos lados do Oriente quando, em Fevereiro, estava na Nazaré a narrar o Tow Surfing Challenge. Comentar ao vivo o acidente do Alex Botelho e Hugo Vau foi dos momentos mais desafiantes da minha vida profissional. Até hoje não sei, não me consigo recordar do que disse ao microfone. Só me recordo de pensar para comigo “aguenta-te, não especules, descreve os factos!”, enquanto engolia as emoções como quem ingere uma peça de fruta sem mastigar numa ocasião de grande cerimónia, a lutar entre a sensação de asfixia e a necessidade de manter a compostura. Olho agora para a recuperação plena do Alex, uma das melhores e mais genuínas almas que já tive a oportunidade de conhecer — além de um monstro de surfista —, como sinal esperançoso de que tudo o que correu mal este ano tem a possibilidade de um desfecho positivo. E se pensarmos bem, nem tudo foi negativo. Principalmente para nós, frequentadores de ondas.
"...foi um período negro que me recordou muitas vezes
o livro de Henry Thoreau, Desobediência Civil..."
É claro que os primeiros tempos do lockdown, em março, foram terrivelmente estranhos. Entre os que aceitaram passivamente a proibição sem sentido de se ir fazer surf, os que resolveram agir individualmente e quebrar a recomendação, aproveitando algumas das melhores ondas do inverno passado com pouco crowd, e os que assumiram a pele do denunciador moralista, julgando terceiros imbuídos da virtude que só o mundo digital proporciona, nenhum, tenho a certeza, se sentiu verdadeiramente confortável, recorrendo aos processos de auto justificação mais à mão para se convencerem da justeza e da lógica dos seus atos. Em Portugal, sempre a terra dos costumes, não se passaram as situações que observámos noutras paragens, mas eu que, conscientemente optei por aderir à proibição do surf, mais por solidariedade social que por argumentos “científicos” sobre o contágio, lembro-me de ficar revoltado com as notícias de surfistas em França a serem perseguidos por helicópteros da polícia e terem as pranchas confiscadas sob a ameaça de armas, ou no Brasil, onde a punição de surfistas desobedientes tornou-se norma aplaudida até mesmo por outros surfistas. Igualmente abjeto, foi o vandalismo de que Kanoa Igarashi foi vítima — bem, não exatamente ele, mas o seu carro — por usufruir do estatuto de atleta de alta competição que lhe permitia liberdade para treinar. Enfim, foi um período negro que me recordou muitas vezes o livro de Henry Thoreau, Desobediência Civil: ““Devemos ser homens, em primeiro lugar, e depois súditos. Não é desejável cultivar pela lei o mesmo respeito que cultivamos pelo direito.”
"...As vendas de pranchas, fatos e inscrições em escolas de surf explodiram,
o crowd mais numeroso e presente que nunca,
as redes sociais inundadas por tsunamis de imagens..."
Mas, como tudo, essa fase chegou ao fim e, de forma surpreendente, Portugal revelar-se-ia referência mundial. A campanha “Voltar ao Mar”, um esforço conjunto da Federação Portuguesa de Surf (FPS), da Associação Nacional de Surfistas (ANS) e da World Surf League (WSL), mexeu influências para promover o regresso progressivo e controlado ao surf a partir de Maio. No seguimento, a ANS, num exercício notável de diplomacia e organização, tornou a Liga MEO na única competição de surf a decorrer no mundo, facto mencionado em diversos artigos da imprensa internacional, e a federação conseguiu cumprir todo o calendário estipulado.
"...A WSL, sempre errática no comportamento
e omissa nas comunicações..."
Por seu lado, a WSL, sempre errática no comportamento e omissa nas comunicações, cancelou todas as competições e concentrou-se na reformulação do circuito, a mais radical proposta de reforma do surf profissional desde os tempos de transição IPS para ASP em meados dos anos 80. A tradicional perna europeia, evaporada do calendário. A etapa portuguesa do World Tour adiada sine die. As épicas finais havaianas substituídas pelas divertidas mas insípidas ondas de Trestles. Apesar disso, o novo formato apresenta algum potencial futuro, ainda que incerto, e, no mínimo, serviu para alimentar algum interesse em algo — o surf de competição — que parecia condenado à evidência da sua irrelevância no grande quadro do surfista comum: depois de sentirmos na pele o acesso vedado às ondas, o que queríamos era surfar e não ver os outros a fazerem-no. Se estatísticas corroboravam o sentimento geral: vendas de pranchas, fatos e inscrições em escolas de surf explodiram, o crowd mais numeroso e presente que nunca, as redes sociais inundadas por tsunamis de imagens. O surfista anónimo a reclamar de volta o seu desporto, o seu estilo de vida, o seu alimento da alma. A diferença entre o que é essencial e o que não passa de acessório tornada mais evidente que nunca.
"... A Surfer Magazine, a auto intitulada Bíblia do Desporto, fechou as suas portas.
A desilusão dos muitos órfãos da Surfer contrastou com a ligeireza
com que o assunto foi tratado..."
No entanto, a filosofia back-to-basics subjacente a esse retorno às ondas arrastou uma vítima que, se não totalmente inesperada — os sinais de decadência eram claros há alguns anos — a sua materialização não deixou de ser um choque pelo simbolismo representativo do final de uma era: após 60 anos de publicação contínua, a Surfer Magazine, a auto intitulada Bíblia do Desporto, fechou as suas portas. A desilusão dos muitos órfãos da Surfer contrastou com a ligeireza com que o assunto foi tratado, digerido e descartado, e a perceção de que, num mundo em constante transformação, a voragem imediatista do mundo digital não deixa espaço para lamentações sequer de ícones da cultura que, direta ou indiretamente, ainda nos molda a todos. Se o ato de pegar numa prancha e apanhar umas ondas permanece há séculos (milénios?) imutável, aquilo que confere o contexto identitário dos seus adeptos muda à velocidade de um dedo no ecrã de um telemóvel. O resultado dessa transformação é impossível de prever, no entanto, se este ano nos ensinou algo de positivo, foi que as os galhos e ramificações não se sustentam sem raízes. O que é essencial sobrevive. Sempre.
Na imagem acima a tentativa da maior aula do Mundo antes da pandemia, não previa o que iria suceder durante esta.
Em meio à crise, perdemos alguns dos nossos melhores companheiros. Pedro Lima, surfista de coração que tocava o coração de tantos. Derek Ho, campeão havaiano, mestre de Pipeline, embaixador do aloha. John Shimooka, dispensador de stoke, congregador de amizades. O mar salgado de 2020 ganhou muito do seu sal nas lágrimas vertidas por esses três sorrisos que se apagaram das vistas mas cuja memória irá continuar a iluminar as vidas de todos os que por eles foram tocados. Possam suas almas descansar em paz. No seu elogio a Shmoo, na Surfing Life, Sean Doherty foi direto ao ponto-chave: vamos ter que olhar uns pelos outros com redobrada atenção nos tempos vindouros.
..."Em meio à crise, perdemos alguns dos nossos melhores companheiros..."
“Nunca desperdices uma boa crise”. A frase é de Rahm Emanuel, político americano, ex-conselheiro de Bill Clinton, atual prefeito de Chicago, e foi muito citada em alguns círculos de redes sociais que frequento. Curiosamente, porém, o resto da citação nunca vinha no seguimento: “O que eu quero dizer com isto é que (as crises) são oportunidades para fazer coisas que antes julgavas não ser capaz de fazer.” Sabemos que é inútil desejar que as coisas mudem para melhor por mero decreto da esperança, pelo que está nas mãos de cada um fazer o que está ao seu alcance, no plano individual e coletivo para tornar realidade o que antes víamos como impossível, surfando a vida, uma onda de cada vez. Bom ano a todos!