Nó de Água por João Valente - Julgar o Julgamento (Parte 1) WSL / Sloane sexta-feira, 28 abril 2023 09:01

Nó de Água por João Valente - Julgar o Julgamento (Parte 1)

Mais do que os critérios aplicados é todo o sistema de julgamento do surf que precisa ser revisto.

 

 

Quando nem o absoluto é suficiente

 

Revolta! Fúria! Ultraje! Apesar da virulência a reação online dos fãs brasileiros ao resultado da etapa do World Tour em El Salvador não foi diferente do que tem sido norma sempre que um surfista do lado de lá do Atlântico não vence. “El Salvador?!” indigna-se o leitor atento. “Mas a última etapa não foi em Bells?!” Sim, foi. Acontece que a ideia de escrever esta crónica vinha desde o ano passado, e quando abri documento entretanto interrompido, deparando-me com esta introdução, resolvi mantê-la para efeitos de reforço de argumentação. Substitua-se El Salvador por Bells, e a atualidade e pertinência mantêm-se intactas.

A discordância sobre notas de ondas e resultados de baterias ou campeonatos é tão antiga quanto as próprias competições. Num desporto suportado em critérios arbitrários e disputado num meio instável e diferenciado a cada oportunidade (leia-se onda), parece inevitável que assim seja. Mas vamos recordar o caminho percorrido até chegarmos ao ponto onde estamos.

 

 

Italo Ferreira. WSL / Dunbar

 

 

Objectivar o subjectivo

 

As tentativas de ler o surf segundo critérios objetivos de avaliação vêm de longe. Como se disse antes, todas elas apoiadas em processos arbitrários e em consensos fabricados. É preciso que todos os participantes concordem, por exemplo, que ultrapassar uma secção oca de uma onda por dentro do tubo é mais “valioso” que atravessar a mesma secção por fora, num longo floater ou numa linha de bottom imaculada. Ou que desenhar um percurso sinuoso, feito de múltiplos ataques ao lip, representa um surf de maior “qualidade” do que traçar uma pura e simples trajetória de aceleração no topo da onda, com máxima economia de movimentos e mínima disrupção de linha.

 

 

 

Ethan Ewing. WSL / Dunbar

 

 

"Ao contrário de desportos onde as metas são definidas por unidades mensuráveis - velocidade, distância, metas -

o surf é um desporto interpretativo, com desempenhos avaliados por um júri segundo critérios convencionados."

 

 

Fora de um consenso fabricado, não há como sustentar a superioridade de uma opção funcional perante outras igualmente funcionais — sendo que por “funcional” entende-se aproveitar a onda no seu máximo potencial. Ao contrário de desportos onde as metas são definidas por unidades mensuráveis — velocidade, distância, metas — o surf é um desporto interpretativo, com desempenhos avaliados por um júri segundo critérios convencionados. A esse nível, estamos na mesma família que a ginástica rítmica ou artística, os saltos ornamentais, o nado sincronizado ou as danças de salão, entre outras.

No entanto, quando chega a altura de proceder à avaliação, sobressaem diferenças fundamentais. A primeira e mais evidente é que, ao contrário da nossa, as outras atividades interpretativas são disputadas em meios estáveis e com igualdade de oportunidades, ao passo que no surf, todas as oportunidades — leia-se “ondas” — são fundamentalmente distintas umas das outras e o número delas que cada competidor terá é variável. Sendo assim, a disputa pela melhor “oportunidade” acaba por ser, em si, um critério de avaliação. Daí que desempenhos tecnicamente mais complexos realizados em ondas de menor qualidade sejam muitas vezes alvo de pontuações mais baixas que performances de execução técnica mais simples ou menos arriscadas, efetuadas em ondas maiores ou mais bem formadas.

Outra diferença tem a ver precisamente com a forma como a avaliação é feita. Em todos os desportos de interpretação, a pontuação final é resultado de um somatório de elementos distintos, apreciados por painéis de juízes com diferentes atribuições. Por exemplo, em termos muito genéricos (ao detalhe a coisa é bastante mais complicada) na patinagem artística a nota final é resultado da soma entre os elementos técnico e artístico para um grupo de figuras executadas, considerando cinco componentes calculadas individualmente: técnica de patinagem, transições, desempenho, composição e interpretação da música recebem notas individuais que depois são somadas. Também na natação sincronizada, elementos técnicos (execução, sincronização, dificuldade) e elementos artísticos (coreografia, interpretação musical e forma) são avaliados individualmente. Ambas as modalidades contam com painéis de juízes dedicados a cada um dos elementos ou componentes.

 

 

Getty Images

 

 

"No entanto, com todas as suas evidentes omissões e falhas, o sistema atual

não deixa de ser o mais funcional dentre todos os já testados e aplicados."

 

 

No surf, os diferentes elementos identificados (comprometimento e grau de dificuldade; manobras inovadoras e progressivas; combinação de grandes manobras; variedade de manobras; velocidade, força e fluidez), são avaliados por um único painel e de forma globalizada, sintetizando tudo numa nota só. E apesar de os livros de regras da WSL e da ISA serem ambos omissos em explicações sobre o significado de conceitos como “comprometimento” (é, por exemplo, aqui que se inclui a justificativa para pontuar a qualidade da onda apanhada, embora nada o refira) ou “progressivo”, não duvido de que cada um desses elementos/componentes é esmiuçado ao detalhe nas formações de juízes levadas a cabo pelas duas entidades que regem o desporto a nível global.

No entanto, com todas as suas evidentes omissões e falhas, o sistema atual não deixa de ser o mais funcional dentre todos os já testados e aplicados. E não foram poucos! Alguns mais esdrúxulos, outros interessantes, até divertidos, todos um falhanço. Seguem-se os principais.

 

 

 

Cada curva, cada melro

 

Criação de George Downing, lendário diretor do Eddie, o sistema Objetivista ou de Pontos-por-Manobra esteve na base do reinado de Michael Peterson na primeira metade dos anos 1970, antes de Fred Hemmings e Randy Rarick fundarem a IPS e lançarem o circuito mundial. Aliás, o sistema chegou a ser considerado para um projeto de circuito mundial elaborado por Dick Graham, fundador da revista Surfing e executivo das marcas Hang Ten e Lightning Bolt, entretanto abortado pela iniciativa de Hemmings.

 

Michael Peterson. Falzon

 

 

Esta foi a mais clara tentativa de aproximar o surf de outros desportos interpretativos. A coisa funcionava mais ou menos assim: o campeonato era disputado em duas rondas, com todos os competidores a surfarem duas vezes, e a pontuação final resultava do somatório das rondas, tal como funciona o Eddie Aikau Invitational. A diferença é que ao contrário do Eddie, onde somente as três ou quatro melhores ondas são consideradas, aqui contavam todas as ondas. Para complicar, cada manobra dentro de uma única onda era contabilizada, aplicando um conjunto predeterminado de pontos, variável consoante fatores como, por exemplo, o tamanho da onda. Quanto maior, mais a escala subia. Era sempre a somar: da mais insignificante check-turn até manobras principais, a tudo era atribuído um valor específico e somado a seguir.

Utilizado pela primeira vez no Hang Ten American Pro, de 1972, o sistema operou também em algumas edições dos campeonatos de Bells (leia-se MP) e no Coke Surfabout, para só citarmos os mais importantes, antes de cair em desuso. A descrição do efeito do Pontos-por-Manobra, feita pelo historiador Matt Warshaw, é uma relíquia: “o formato objetivo atingiu o surf de competição como o Agente Laranja (N.A: o infame herbicida usado como arma química pelo exército americano na guerra do Vietname). Estilo e fluidez foram enviados de avião, a tossir sangue, para longe, enquanto os juízes caíam palanque abaixo, as mãos em convulsão muscular por tentarem acompanhar com seus lápis o serpentear de Michael Peterson.”

 

 

Sessões e Expressões

 

Muito antes da designação surgir nos anos 1990, para dar espaço às emergentes manobras aéreas e curvas de tail livre que os juízes da altura não conseguiam interpretar segundo os critérios então em voga, Expression Session foi o título que se deu a uma sessão de free surf em Pipeline no longínquo ano de 1970, repetida depois em 71 e 73. Basicamente, o “evento” era composto por 20 surfistas convidados que, depois de surfarem ondas imaculadas em Pipe durante seis horas, iam para casa decidir quem tinha sido o vencedor, “entre garrafas de cerveja Primo e bafos nos bongos”, novamente segundo Warshaw. “Sem lycras, sem troféus, sem prémios, sem comentários, sem cerimónia. Um não-evento, essencialmente”. Interessante cativante no papel, a Expression Session falhou precisamente pela ausência do elemento competitivo. Vinte bacanos a surfarem ondas que surfariam de qualquer maneira e com a mesma postura que teriam em qualquer outra surfada não constitua motivo para cativar nenhum patrocinador digno da sua conta bancária. Ainda não se tinha inventado a internet, nem os live streamings diretos, nem as redes sociais, que hoje tornam possível a também falsa competição Gigantes de Nazaré. Sendo assim, apesar do orelhudo título, a Expression Session desapareceu até ressurgir, duas décadas mais tarde, como enche-chouriços.

 

 

Morey Nosey

 

Em meados dos anos 1960, ainda antes da Shortboard Revolution, o pai do bodyboard, Tom Morey, criara um conceito que ironicamente, dado o papel que lhe estava reservado na história do wave riding, celebrava da mais ereta e caminhante das artes de deslizar: o noseriding. De uma simplicidade absoluta, a prova tinha cronómetros em fez de juízes e contabilizava segundos em vez de pontos. No fim do dia, quem tivesse mais segundos somados na ponta da prancha, ganhava. Durou até Nat Young e companhia enviarem as pranchas longas, de forma quase instantânea, das surf shops para os museus.

Outras variações aconteceram, como o longínquo e esquecido Funtest, baseado na contagem do tempo em pé sobre a prancha; os Air Shows, dos anos 90, condenados a partir do momento em que os aéreos passaram a integrar os repertórios de manobras feitas nos campeonatos normais, e outras variações, mais de formato do que julgamento, como o esquecido The Game, de Brad Gerlach, ou o Skins Contest em Bells, que ficou para a história por ter sido o palco, segundo se diz, do melhor Occy Show da história.

 

 

Filipe Toledo. WSL / Sloane

 

 

 

Fim de história?

 

Em suma, não foi por fata de tentativas e experimentos que o atual sistema continua falho e tão sujeito a críticas, indignações e conjeturas de toda a espécie. E talvez seja exatamente essa a vocação de um desporto nascido de um ato que, na sua essência, nada contém de competitivo. Recorrendo novamente a Warshaw, “o surf é o mais subjetivo de todos os desportos e, portanto, o mais merecedor de um formato de competição subjetivo, com falhas e tudo”. Quer isto dizer que tudo se resume a um resignado encolher de ombros perante uma realidade deficiente, imprecisa e destinada a falhar? Acredito que não, mas isso terá de ficar para a segunda parte deste artigo, a ser publicada brevemente neste mesmo canal.

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