Nó de Água por João Valente - Castelo Sólido Sobre Areias Movediças
A gigantesca estrutura do Meo Rip Curl Pro Portugal faz jus à solidez da etapa portuguesa do Tour mas ilude quanto à instabilidade que afeta o surf profissional.
Mais um campeonato do World Tour, mais um êxito.
Não deixa de ser impressionante olhar para estes 15 anos.
15 anos... mesmo considerando o hiato covidista de 2020-2021, trata-se de uma efeméride digna de celebração. Afinal, são várias e diversificadas as histórias despoletadas na esteira do Rip Curl Pro Search 2009, o evento original que, não será exagero afirmá-lo, foi um divisor de águas no surf em Portugal.
A Captação quase compulsiva de momentos durante a edição 2023 do CT em Peniche - Click por Alexandre Bettencourt
Tudo começou num golpe de oportunidade. Em 2008, Francisco Spínola era um surfista de Lisboa que, após uma estadia na Austrália para um MBA em comunicação empresarial, candidatara-se a uma vaga no marketing da Rip Curl em Portugal. Na altura, a marca australiana aplicava o conceito “The Search”, criado por Derek Hynd nos anos 90 do século passado, aos eventos de surf, realizando todos os anos uma prova do WCT num sítio surpresa, de preferência inédito no circuito. O Rip Curl Pro Search já tinha, por exemplo, recuperado a Ilha Reunião, revelado Barra de La Cruz, desafiado Arica e entubado em Bali. Em 2009, as baterias estavam apontadas a Gnaraloo, uma desafiadora esquerda num canto inóspito do Oeste australiano. Ao ouvirem falar sobre os planos, os frequentadores habituais da onda largaram um fuck-off em direção a Claw Warbrick, lendário fundador da Rip Curl, Brodie Carr, CEO da então ainda ASP, e todos os que regozijavam com a peregrina ideia. Nah happening, mate!
O surf em Portugal não nasceu em 2009, bem longe disso, mas o Rip Curl Pro Search aproveitou as condições favoráveis de então para assumir-se como pináculo do momento que o surf passou de atividade semimarginal a desporto reconhecido.
Ao saberem da nega e com a marca aflita à procura de um novo destino para o The Search, o recém-contratado diretor de marketing teve um daqueles momentos que, numa banda desenhada, daria direito a lâmpada acesa por cima da sua iluminada cabeça: “e se fizéssemos o The Search em Peniche?” Dito e feito. Em outubro de 2009 o circuito mundial de surf profissional regressava a Portugal depois de sete anos de ausência — o último tinha sido o malfadado e cancelado Figueira Pro 2002, vítima de um festival de incompetência e amadorismo generalizado que agora não vem ao caso...
O surf em Portugal não nasceu em 2009, bem longe disso, mas o Rip Curl Pro Search aproveitou as condições favoráveis de então para assumir-se como pináculo do momento que o surf passou de atividade semimarginal a desporto reconhecido. Ao final da primeira década do novo milénio, o surf fervilhava no retângulo. Escolas surgiam por todo o litoral como alforrecas nas marés quentes de outono. A indústria vivia ainda sob a influência dos loucos anos de abundância, apesar dos primeiros sinais de que isso iria acabar. Só em revistas especializadas tínhamos cinco (!) títulos em publicação regular; sites e blogues disputavam o ainda jovem espaço digital; o negócio estava em alta. A enchente de público em Peniche despertou a atenção dos sempre distraídos governantes, alheios a um fenómeno evidente desde 1989, ano do Buondi Instinct Pro, primeiro evento da ASP realizado em Portugal. A recém-qualificação de Tiago Pires para o WCT fora o mote para o envolvimento da Portugal Telecom, um dos maiores investidores em publicidade do mercado português. E, como se sabe, atrás do dinheiro da publicidade vem o interesse dos media. E assim, de um momento para o outro, o surf passava de fait-divers a notícia.
O clip promocional 2009 - a primeira das 15 edições sequenciais
O clichê diz que as histórias de sucesso se baseiam na fórmula pessoa certa + lugar certo + altura certa. Ao afortunado (predestinado?) que se encontre em tal conjuntura bastará somente fazer algo a respeito. Bem relacionado, bem-falante e perspicaz, Spínola percebeu o momento propício e decidiu fazer algo a respeito. Maximizou o interesse da então ainda PT, através das marcas Moche e MEO, convenceu o Turismo de Portugal de que o surf era a nova galinha dos ovos de ouro, e transformou um evento destinado a ser one-off, como tinham sido todos os Search até então, numa licença quase permanente. A sequência de episódios posteriores seria um deleite para os crentes das leis da atração universal. Não bastasse o evento de Peniche passar a ser um dos grandes acontecimentos internacionais do calendário desportivo indígena, passado pouco tempo a Ericeira era consagrada como Reserva de Surf Mundial, Garrett McNamara punha a Nazaré no livro dos recordes, o governo anunciava o programa dos Centros de Alto Rendimento, e o surf dava nova vida ao desgastado chavão “sol e praia”. Como ouvi da boca de um governante numa das muitas conferências nessa altura realizadas à volta do tema: “mas vocês agora estão em todo o lado?!” Lembro-me de responder-lhe: “nós já cá estávamos, vocês é que só repararam agora.”
Tubo profundo de Chianca durante a final da edição CT 2023 em Peniche - Click por Pedro Mestre
Portugal, a par do Brasil — coincidentemente, ou não, duas etapas que apresentam operadores de telecomunicações como naming sponsors — permanece como uma das poucas operações rentáveis do circuito e modelo a implementar em toda a Liga.
Mas se a nível nacional a coisa estava em ebulição, a nível internacional tratava-se de uma autêntica erupção. Em 2013, uma empresa de nome estranho — ZoSea — comprava uma ASP moribunda na senda da queda abrupta da indústria do surf. Financiada por um bilionário norte-americano de nome Dirk Ziff, a ZoSea apoderava-se do desporto num golpe de caneta. Em 2014, caía a sigla Association of Surfing Professionals (ASP) e surgia a World Surf League (WSL). O modelo de negócio implementado por Spínola cristalizava a visão dos executivos da ZoSea para a sustentabilidade e prosperidade do surf profissional. Um consórcio de entidades públicas (Turismo de Portugal, Turismo do Oeste, etc) e investidores privados (MEO, EDP, etc) pagam o grosso da fatura, enquanto as chamadas marcas endémicas (Rip Curl, Billabong, Quiksilver, Vissla, etc) estampam o selo de autenticidade. Portugal surgia como uma das poucas operações financeiramente viáveis da WSL, e no processo de reorganização do desporto, Spínola e a sua Ocean Events assumiam a gestão da região EMEA (Europa, Médio Oriente e África) da empresa. Sítio certo, altura certa, pessoa certa e fazer algo a respeito...
Fast-forward para 2023. O MEO Rip Curl Pro Portugal é mais um êxito retumbante. Segundo estimativas fornecidas pela Altice — a proprietária da marca MEO depois da compra da PT — 150 mil pessoas terão passado pela praia de Supertubos entre 8 e 14 de março, e o público online terá gerado 5,3 tb de tráfego. Um assombro! Mesmo levando em conta a febre inflacionária de audiências que afeta a WSL desde os seus primeiros tempos, uma observação a olho nu nos Super permitia concluir que um eventual exagero nos números não o terá sido em demasia. Portugal, a par do Brasil — coincidentemente, ou não, duas etapas que apresentam operadores de telecomunicações como naming sponsors — permanece como uma das poucas operações rentáveis do circuito e modelo a implementar em toda a Liga.
E no entanto...
No entanto, em meio a tanta pompa e circunstância, olha-se para aquela sumptuosa estrutura erguida na praia do Medão, vulgo Supertubos, e é inevitável ser-se acometido por uma sensação de estranheza perante tamanha opulência. Em alguns meios, o valor simbólico é de suprema importância. É a velha história: à mulher de Cesar não basta ser honesta, é preciso parecer honesta. Do mesmo modo, a uma organização — a um desporto, em última instância — que pede milhões, é preciso parecer valer milhões.
Por vezes a WSL lembra a maioria governamental que nos pastoreia, para quem tudo parece estar sempre sob controlo e a correr conforme o planeado, caiam o Carmo e a Trindade.
Desde o princípio, quando surgiu a ZoeSea e seu porta-voz era um todo-poderoso Paul Speaker, que a narrativa adotada parte da premissa do surf de competição como uma mina de ouro mal explorada, ou um castelo a precisar de reforma. Mas não bastava uma demão de tinta. Era preciso uma reforma de fio a pavio. E vai daí, com os milhões de Ziff por trás, toca de investir em estruturas faraónicas, onde diretores de marketing e CEOs pudessem ser recebidos e convencidos a direcionarem parte dos seus mega-orçamentos para este estranho desporto. Dez anos depois, apesar de alegadamente ainda manter interesses no capital da WSL, Paul Speaker anda a pregar noutras paróquias. No seu lugar já tivemos Sophie Goldschmidt, que agora preside à US Ski & Snowboard, e, desde 2020, é Erik Logan, um antigo presidente da Oprah Winfrey Network, a ocupar a cadeira do chefe. Todos eles promoveram transformações na WSL. Todos eles, até ao momento, falharam em concretizar as promessas de fazer do surf profissional num desporto de primeira relevância. Mas a política do verniz imaculado e da pose de fachada, essa, mantém-se.
“quem connosco se mete, leva”, o exemplo recente do banimento (cancelamento?) de Bethany Hamilton, na sequência da sua crítica pública ao anúncio da aceitação de mulheres transgénero nas provas femininas, beira a limpeza ideológica.
Por vezes a WSL lembra a maioria governamental que nos pastoreia, para quem tudo parece estar sempre sob controlo e a correr conforme o planeado, caiam o Carmo e a Trindade. Vozes demasiado críticas são sistematicamente silenciadas ou afastadas. Números de audiência empolados são debitados sem qualquer pudor. Ações de embandeiramento woke, como a igualdade de prémios entre homens e mulheres, são anunciadas como se fossem aos quatro ventos, enquanto a redução no valor das premiações gerais, em vigor desde 2021,não gera um sopro de brisa. A organização parece perdida entre formatos de circuito confusos e geradores de insatisfação, e vítima da frustrada ambição de controlar o desporto de cima a baixo. E ao melhor estilo “quem connosco se mete, leva”, o exemplo recente do banimento (cancelamento?) de Bethany Hamilton, na sequência da sua crítica pública ao anúncio da aceitação de mulheres transgénero nas provas femininas, beira a limpeza ideológica. Os surfistas que tinham escolhido o nome da surfista havaiana, célebre pela maneira heroica como reagiu ao ataque de tubarão que a deixou amputada de um braço aos 13 anos, para ostentarem nas lycras de competição de Peniche, por causa do Dia Internacional da Mulher, descobriram, para sua surpresa, que o mesmo havia sido substituído de forma arbitrária pelo de outra atleta qualquer. Mais uma vez, nenhuma palavra sobre o assunto.
O nosso Presidente Marcelo também sabe surfar yo - Click por Pedro Mestre
Entretanto, vão sendo feitos todos os esforços para rentabilizar a coisa. Seja através da modificação de formatos de tour, seja através da preponderância cada vez maior dos conteúdos narrativos sobre os aspetos desportivos. Há uns anos, numa entrevista concedida a este mesmo canal, mencionei a necessidade do surf profissional elaborar conteúdos ilustrativos da sua riqueza histórica e humana. No reinado de Erik Logan temos assistido a um crescendo de produção, com a série Make or Break a ocupar lugar de destaque. Mas mesmo esta parece mais comprometida em passar a imagem da empresa contratante, mantendo, claro está, imaculado o verniz e impávida a fachada, do que em retratar com honestidade e transparência os paradoxos, hesitações e desafios que tornam as narrativas aliciantes.
O sumptuoso castelo montado nas dunas de Supertubos revela-se assim uma estrutura singular e destoante, a servir outros propósitos que não somente o de promover e solidificar um desporto ainda à procura do seu lugar no disputado panorama internacional dos grandes eventos desportivos
O sumptuoso castelo montado nas dunas de Supertubos revela-se assim uma estrutura singular e destoante, a servir outros propósitos que não somente o de promover e solidificar um desporto ainda à procura do seu lugar no disputado panorama internacional dos grandes eventos desportivos. Dentro das suas muralhas, todos sentem-se protegidos. Atletas deleitam-se com o fugaz estatuto de micro-celebridades enquanto a realidade da vida pós-Tour, amarga e financeiramente precária na maior parte dos casos, não lhes bate à porta. Convidados mais ou menos VIP, groupies indiferentes a sexo ou idade, e penduras de todos os quadrantes e feitios, aproveitam refeições à borla e bares abertos enquanto acotovelam-se por dois dedos de conversa com os surfistas presentes ou os colunáveis de ocasião. Um Presidente da República não destoa na paisagem. E desengane-se quem somente lê nestas palavras um tom de sarcasmo, pois o sucesso de um desporto também passa por estas ocasiões de pose e circunstância. Patético seria que uma estrutura assim não estivesse a abarrotar, que um evento destes não fosse capaz de atrair mais que o seu público fiel. Nesse aspeto, o aparato que afugenta os mais radicais é, mesmo que de forma paradoxal e com gafes protocolares, uma projeção do seu próprio triunfo. Mas que ninguém se deixe enganar pelas aparências, pois o castelo de Peniche é uma estrutura bastante mais sólida do que as movediças areias do surf profissional onde se ergue.