ILHA DO SAL, A MORABEZA DAS ONDAS

Crónica de João 'Flecha' Meneses

 

 

Esta ilha pode ser odiada ou amada. Eu a princípio odiei-a, e com passar dos dias, ao conhecer as ondas, dei comigo apaixonado.

 

Este pedaço de lua na terra não é de perto nem de longe uma ilha típica de cabo verde.  Quem conhece bem o arquipélago diz-me que não tem as baías de Santiago nem a vida cosmopolita de S. Vicente, não tem a beleza do Fogo nem o verde de S. Antão. Mas tem as ondas! Ai se tem!

 

Hoje, já não sei se a minha relação seria de paixão. Dizem que está diferente, a caminho do desenvolvimento... Não sei se isso é bom ou se é mau, depende do ponto de vista... Só sei que há 14 anos esta ilha de morabeza tinha gente simples e ondas perfeitas. E guardo-a como uma das melhores recordações de sempre!

 

É difícil não me lembrar daquele calor estático, da areia branca que se faz ver e sentir, da música que nos enche a alma, da sensualidade das mulheres, dos livros de Germano de Almeida, da Canção de Cesária Évora, do pontão sobre o mar espelhado, dos teus olhos verdes. Lembro-me da paisagem lunar, das caminhadas inconscientes de prancha às costas até ao cimo do Monte Leão, da sensação de boiar nas salinas como se estivesse no Mar Morto, dos sorrisos tímidos das crianças, dos tubos na Ponta Preta, dos dropes na esquerda da Palmeira, dos mergulhos nas grutas da Buracona, dos passeios de pick up para chegar a algumas ondas. E aqueles deliciosos bifes de atum, as danças de corpos colados e a rapidez de escolher outro par quando a música avisa pelo seu fim, o sabor amargo do grogue e a alteração que causa em mim, o receio dos tubarões que nunca vi e os amigos que sei que não perdi. 

 

Terra em que o mar traça memórias e faz-nos voltar!

 

Voltei! Uma pequena visita à Ilha da Boavista, e desde então tenho vindo a adiar a minha temporada de sonho pelas ilhas de Cabo Verde, onde quero percorrer pelo menos 6 ilhas e, claro, voltar a reviver as ondas e os amigos do Sal. Ainda não voltei por variadíssimas razões. Dinheiro e vontade de conhecer outras terras são algumas delas. Mas, talvez não tão importantes como o medo. Medo de ver demasiados hotéis sem alma, medo de ver o choro da areia branca que viaja desde o Saara quando esmagada por betão em demasia, medo de já não poder comer os deliciosos bifes de atum a não ser que pague um balúrdio num “típico” restaurante cabo- verdeano onde tenho que falar outra língua que não é o português ou o crioulo. Medo de não encontrar meninos de carapinha a brincar nos passeios porque já é comum alguns atropelamentos por turistas mais distraídos, medo de ter que vestir uma camisa para poder entrar num bar onde outrora entrava de calções e em tronco nu, medo de beber um grogue importado, medo que as receitas do turismo não cheguem sequer a entrar na ilha. Medo que o olhar amigo e hospitaleiro das gentes da terra seja substituído por a ânsia do dinheiro e que me vejam como mais um turista rico.

 

Como surfista tenho outros medos. Medo de trazer na bagagem zero tubos na onda da Ponta Preta! E não vou tentar encontrar justificações no fortíssimo vento ou na prancha pequena demais, ou mesmo no azar de não ter apanhado swell. 

 

Se aquela onda deixar de existir, perde-se a morabeza do surf, e os segundos que percorremos dentro dos tubos perfeitos serão coisas do passado, fazendo parte de uma lembrança perpétua, porque já não podem deixar de o ser.

 

Apenas, mais uma lembrança.

 

João “Flecha” Meneses

 

 

 

 

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