Tropicalização oceânica - um fenómeno mundial que já chegou à costa portuguesa
Contam-nos três biólogos marinhos portugueses...
Ao longo da História da Humanidade, os oceanos e mares têm sido uma inestimável fonte de inspiração, riqueza, alimento e lazer para as comunidades humanas. Esta longa relação de fascínio que temos com o oceano é fruto não só da sua imensa vastidão e profundidade, mas também da sua incrível biodiversidade. Afinal de contas, segundo consta da Convenção da Diversidade Biológica, os oceanos e mares cobrem cerca de 72% da superfície terrestre, e os ecossistemas marinhos representam mais de 95% de toda a biosfera (1).
Talvez menos conhecidas sejam as múltiplas funções cruciais que os oceanos cumprem no nosso planeta. São, por exemplo, uma das maiores fontes de armazenamento de calor do sistema climático global (2). As grandes massas de água salgada que rodeiam os continentes têm por isso servido como uma espécie de tampão ao aquecimento global, uma vez que vão absorvendo a energia térmica em excesso. Mas esta capacidade não é infinita.
“Os biólogos marinhos têm vindo a observar um fenómeno ecológico cada
vez mais prevalente: a tropicalização oceânica. No fundo, trata-se de uma reorganização ou
redistribuição da biodiversidade”
À medida que as alterações climáticas se intensificam, as zonas costeiras, menos profundas, aquecem a uma taxa rápida. Por exemplo, os satélites que fazem a recolha regular de dados da temperatura da superfície terrestre, têm vindo a detetar, não só um aumento gradual de temperatura da água, com uma expressão intensa no Atlântico tropical leste, junto à costa Africana - cuja temperatura aumentou entre 1.2°C a 1.6°C nas últimas décadas (3); mas também uma expansão em área de zonas oceânicas com temperaturas tipicamente tropicais, entre os 29°C e 30°C (em cerca de 2.3 milhões de km2 por década (4)).
Em consequência, os biólogos marinhos têm vindo a observar um fenómeno ecológico cada vez mais prevalente: a tropicalização oceânica. No fundo, trata-se de uma reorganização ou redistribuição - há até mesmo cientistas que lhe chamam homogeneização da biodiversidade (5): as espécies marinhas migram das latitudes equatoriais, que se tornaram excessivamente quentes, para latitudes mais altas, que começam a apresentar regimes térmicos com características cada vez mais subtropicais, como é o caso do Sul da Europa.
“Na região Atlântica temperada, encontramos, a um ritmo cada vez mais acelerado, espécies
vindas das Caraíbas, América do Sul, Macaronésia (Açores, Madeira, Canárias e Cabo
Verde) e África.”
Na região Atlântica temperada, encontramos, a um ritmo cada vez mais acelerado, espécies vindas das Caraíbas, América do Sul, Macaronésia (Açores, Madeira, Canárias e Cabo Verde) e África. Um exemplo tem sido a tropicalização do fito- e zooplâncton (6), que estão na base de toda a teia alimentar oceânica, e são uma fonte de alimento muito importante para os stocks pesqueiros. Curiosamente, existem já estudos científicos de outras partes do mundo, nomeadamente na Austrália, onde este fenómeno também foi observado, que indicam que a tropicalização do plâncton tem vindo a causar alterações no conteúdo nutricional dos peixes que dele se alimentam, como por exemplo, no seu perfil de ácidos gordos (incluindo ómega-3), e que este efeito pode escalar até aos predadores de topo, como o atum albacora (7) e até o Homem.
Outros exemplos, nomeadamente em Portugal, têm sido os avistamentos de espécies subtropicais de peixes e poliquetas (um tipo de minhocas marinhas).
“Existem já mais de uma dezena de espécies tradicionalmente mais associadas a zonas
tropicais ou subtropicais estabelecidas em Portugal, e espera-se que o número continue a
aumentar nos próximos anos”
O projeto NEMA (Novas Espécies Marinhas do Algarve (8)), coordenado pelo biólogo marinho João Encarnação (autor das fotografias deste artigo - e também adepto do surf!) do Centro de Ciências do Mar da Universidade do Algarve, tem-se dedicado à identificação e monitorização de espécies invasoras e espécies que têm vindo a ocorrer na costa continental portuguesa devido ao processo de tropicalização, com a ajuda de cidadãos e pescadores (ciência cidadã). Nos seus mergulhos nos mares algarvios, onde a tropicalização está a ser mais rápida, já descobriu vermes-de-fogo (Hermodice carunculata, Fig. 1), peixes-verdes (Thalassoma pavo, Fig. 2) ou o peixe venenoso rascasso da Madeira (Scorpaena maderensis) (9).
Certas espécies de peixe-balão, como o Lagocephalus lagocephalus, têm também vindo a ser registados com mais frequência. Na Arrábida, foi observado pela primeira vez na nossa costa o peixe-cirurgião (Acanthurus monroviae), em 2013 (10), e mais tarde, na Ria Formosa, em 2018 (11). No entanto, não são os únicos. Há mais espécies subtropicais que se expandiram até à latitude da Península Ibérica. É o caso de espécies que já cá habitam há mais anos, como as carismáticas garoupas de rolo e pintadas (Serranus atricauda, Fig. 3, e S. scriba), as castanhetas (Chromis chromis, Fig. 4), e as vejas (Sparisoma cretense) (12), originais da Macaronésia e Mediterrâneo, que têm vindo a aumentar de abundância face às condições favoráveis que aqui encontraram (8). Existem já mais de uma dezena de espécies tradicionalmente mais associadas a zonas tropicais ou subtropicais estabelecidas em Portugal, e espera-se que o número continue a aumentar nos próximos anos (8). De forma similar, espécies temperadas movem-se para águas mais a norte, observando-se uma redistribuição da fauna marinha atlântica.
Estas alterações de distribuição de diversas espécies de peixes, conjuntamente com mudanças nas zonas de reprodução, perda de habitat e alteração dos padrões migratórios têm também provocado outro fenómeno, para felicidade dos amantes da Natureza: a atração de grandes predadores marinhos para novos territórios (13) ou ocasionalmente zonas mais próximas da costa (14). Não são, por isso, de espantar, os relatos de observações de grupos de orcas, golfinhos, e até mesmo de diversos tubarões, em novas localidades ou épocas fora do comum. Estas espécies de megafauna sempre existiram nas águas portuguesas (residentes ou de passagem, durante migrações), no entanto, podemos agora observá-los mais de perto e mais frequentemente, em toda a sua magnificência.
Parece pois, que esta tendência para encontrarmos espécies out of place no oceano do Antropoceno, vai prevalecer.
Nós por cá, ficaremos atentos!
Texto: Carolina Madeira, Diana Madeira e João Encarnação
Fotografia: João Encarnação
Carolina (à direita) é doutorada em Biologia Marinha e Aquacultura pela FCUL. Atualmente é investigadora na Unidade de Ciências Biomoleculares Aplicadas (UCIBIO) na FCT-NOVA, onde estuda a evolução e capacidade adaptativa de peixes marinhos a eventos climáticos extremos.
Diana Madeira (à esquerda) fez o doutoramento na FCT-NOVA abordando os impactos do aquecimento global na fisiologia das douradas. É investigadora no Centro de Estudos do Ambiente e do Mar na Universidade de Aveiro, onde estuda a flexibilidade fisiológica de diversas espécies marinhas em cenários de alterações climáticas.
João Encarnação frequenta atualmente o doutoramento em Ciências do Mar, da Terra e do Ambiente pela Universidade do Algarve. Pertence ao Centro de Ciências do Mar (CCMAR), onde desenvolve o seu trabalho com espécies invasoras marinhas, avaliando os seus impactos ambientais e económicos, integrando o contributo da sociedade nesse estudo com projetos de ciência cidadã.
Referências:
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Deser, C., Phillips, A.S., Alexander, M.A., 2010. Twentieth century tropical sea surface temperature trends revisited. Geophys. Res. Lett. 37, 1–6. doi:10.1029/2010GL043321.
Lin, C.Y., Ho, C.R., Zheng, Q., Kuo, N.J., Chang, P., 2011. Warm pool variability and heat flux change in the global oceans. Glob. Planet. Change 77, 26–33. doi:10.1016/j.gloplacha.2011.02.006.
Vergés, A., Steinberg, P.D., Hay, M.E., Poore, A.G.B., Campbell, A.H., et al. 2014. The tropicalization of temperate marine ecosystems: climate-mediated changes in herbivory and community phase shifts. Proc. R. Soc. B 281: : 20140846. doi: 10.1098/rspb.2014.0846.
Ibarbalz, F.M., Henry, N., Brandão, M.C., Martini, S., Busseni, G., et al. 2019. Global trends in marine plankton diversity across kingdoms of life. Cell 179, 1084-1097, doi: 10.1016/j.cell.2019.10.008.
Parrish, C.C., Pethybridge, H., Young, J.W., Nichols, P.D. 2015. Spatial variation in fatty acid trophic markers in albacore tuna from the southwestern Pacific Ocean - a potential tropicalization signal. Deep Sea Res. II 113, 199-207, doi: 10.1016/j.dsr2.2013.12.003.
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e Costa, B. H., & Gonçalves, E. J. (2013). First occurrence of the Monrovia doctorfish Acanthurus monroviae (Perciformes: Acanthuridae) in European Atlantic waters. Marine Biodiversity Records, 6, doi: 10.1017/S1755267213000055.
Vasconcelos, P., Carvalho, A. N., Moura, P., Ramos, J., & Gaspar, M. B. (2018). First record of Acanthurus monroviae (Osteichthyes: Perciformes: Acanthuridae) in southern Portugal, with notes on its recent distributional spread in the northeastern Atlantic and Mediterranean. Marine Biodiversity, 48(3), 1673-1681, doi: 10.1007/s12526-017-0653-z
Abecasis D, Bentes L, Ribeiro J, Machado D, Oliveira F, Veiga P, Gonçalves JMS, Erzini K (2008). First record of the Mediterranean parrotfish, Sparisoma cretense in Ria Formosa (south Portugal). Mar. Biodivers. Rec. 1: e27, doi: 10.1017/S175526720666248X.
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