Nó de água - Requiem pelo nosso pai comum (Pedro Martins de Lima - 14/09/1931- 20/02/2023)
Por João Valente
“Eu queria viver deliberadamente e sugar todo o tutano da vida.
Para quando morrer, não descobrir que não vivi.”
Depois de 92 anos de uma vida intensamente vivida, Pedro Martins de Lima deixou-nos na última terça-feira gorda. Curiosa simetria... No preciso dia em que se celebra a existência em toda a sua abundância, a inevitável frieza da morte priva-nos de alguém que encaixa sob medida na célebre confissão escrita pelo filósofo norte-americano Henry David Thoreau: “Eu queria viver deliberadamente e sugar todo o tutano da vida. Para quando morrer, não descobrir que não vivi.”
Conheci o Pedro em 1994, após anos de histórias contadas por amigos de São Pedro do Estoril que com ele tinham convivido nos seus primeiros tempos de ondas, já o “pai do surf português” era um experiente surfer, designação anglófona que precedeu a hoje estabelecida versão braso-lusitana, surfista. Referiam-no como sendo o grande pioneiro, espécie de paciente-zero de um vírus, na altura a alastrar em Portugal, embora ainda longe da incontrolável pandemia da última década. Relatos carregados de superlativos sobre explorações por ondas nunca dantes navegadas, descrevendo uma personalidade enérgica e cativante, de infatigável espírito aventureiro. Descrições difusas, cheias de pontas soltas e com escassas pistas sobre o seu paradeiro, muitas vezes mencionado simplesmente como “o pai do Pipas”, alcunha do seu filho, Pedro, o segundo de uma linhagem de quatro surfistas, divididos por ambas as margens do Atlântico. Tempos outros, quando tudo era mais resguardado, onde sítios e pessoas pareciam mais distantes e o tempo corria de outra maneira. Uma pista demorava meses a aparecer, e se esta, por algum motivo, não levava ao destino desejado, o assunto tendia a cair no esquecimento até que surgisse novo indício.
A oportunidade de conhecer o Pedro Lima concretizar-se-ia por via de um amigo mútuo, o Zé Pedro “Madi”, surfista da velha guarda do Porto. Pedi-lhe que organizasse um encontro, com o objetivo de fazer-lhe uma entrevista. E assim, numa fria noite de inverno, fui pela primeira vez recebido em Miramar, Vila Nova de Gaia, por um par de sorrisos que se tornariam familiares ao longo das três décadas seguintes: o do Pedro e o da sua encantadora esposa, a Mané. Nos escassos metros percorridos entre o portão da rua e a porta de entrada da cozinha, tive um preâmbulo do que viriam a ser todas as minhas posteriores conversas com o Pedro: em menos de um minuto ouvira a fascinante descrição de um acidente recente na sua última temporada de neve e, tal como vim a escrever anos mais tarde, aprendera a primeira lição para entrevistar o Pedro: ligar o gravador antes do “olá” e só desligá-lo a seguir ao “adeus”.
A moradia de piso único, torneada por um discreto mas bem arranjado jardim, não destoaria numa viela de Hossegor, em França, ou abrigada entre palmeiras e arbustos de alena ao longo da praia de Pupukea, no Havai. De aparência simples, não apresentava sinais de ostentação além da sua privilegiada localização, próxima da mística Capela do Senhor da Pedra. Os luxos do Pedro eram de outra ordem. A verdadeira riqueza daquele lar estava no interior, meticulosa e carinhosamente mantido pela Mané. Conforme descreveria aquando da publicação da entrevista iniciada nessa noite, “nas estantes, cada livro, cada fotografia, cada objeto parece encerrar alguma das muitas histórias que compõem uma existência carregada de aventuras, convivências com personagens lendários, situações perigosas, momentos únicos de prazer.”
"A conversa ao serão correu solta, por entre copos de gin tónico,
(...) gargalhadas (...) e histórias, muitas histórias..."
A conversa ao serão correu solta, por entre copos de gin tónico, sua bebida de eleição, gargalhadas, talvez a característica mais marcante do seu discurso, e histórias, muitas histórias... Da relação com Alain Bombard e Jacques Cousteau, duas figuras “maiores que a vida” da exploração marítima; das experiências com o mergulho subaquático nos Açores da década de 1940 (“era como ir à lua”, descreveu-me o seu filho no telefonema de condolências que lhe fiz); das hilariantes descrições de tropelias vividas no primeiros tempos de surf; dos mergulhos com tubarões (“uns bichos obscenos na sua capacidade de matar”, conforme os descreveu uma vez, para minha perplexidade); das aventuras pelas montanhas cobertas de neve e dos galanteios pelos salões das mais cobiçadas festas da alta sociedade portuguesa e europeia; da amizade com o fotógrafo e distribuidor de cinema Gérard Castello Lopes, da fundação do Hot Clube de Portugal e das jam sessions partilhadas com algumas das lendas do jazz que passaram pela mítica sala da Praça da Alegria (“eu era um nabo, mas os outros eram tão bons, que disfarçava. O gin ajudava”, recordava, entre risos).
A essa primeira conversa seguiram-se outras, e a publicação da entrevista deu-se na da quinquagésima edição da SurfPortugal, em 1997. Uma das sessões decorreu durante uma etapa do circuito europeu EPSA, em Miramar, e aproveitei para apresentá-lo aos melhores surfistas nacionais, que não esconderam a sua satisfação ao conhecerem tão ilustre e inusitada personagem. Muito mais tarde, salvo erro já nos anos 2000, num daqueles golpes do destino nos quais a vida do Pedro é pródiga, a lendária marca de origem havaiana, Lightning Bolt, foi adquirida pela empresa de têxtil portuguesa, TMG, precisamente aquela onde o Pedro passara grande parte do seu percurso profissional. Daí a alguém lembrar-se de resgatá-lo à sua reforma para a posição de embaixador da marca foi um passo tão óbvio quanto certeiro. A visibilidade adquirida catapultou-o para fora do limitado circuito dos media de surf e o grande aventureiro tornou-se numa pequena estrela involuntária, com aparições regulares em jornais, revistas e canais de televisão generalistas. Sempre que lhe apontava o facto, ele soltava a sua inigualável gargalhada e repetia a mesma anedota: “quando elogiam a minha energia e vitalidade, penso que só o fazem porque não vêm para a cama comigo.”
Não há nem haverá descoberta capaz de destronar o estatuto de Pedro Martins de Lima
como pai (...) da arte de correr ondas em Portugal
Têm surgido em grupos de discussão dúvidas sobre a alegada “paternidade” do surf português, comumente atribuída ao Pedro. Na base dos legítimos, embora, quanto a mim, equivocados questionamentos, está a recuperação recente de outros reconhecidos pioneiros. Há o caso do açoriano Carlos Garoupa Medeiros, nascido em 1936 e falecido no ano passado, que em 1947 terá ordenado uma prancha a um marceneiro da Ribeira Grande ainda na década de 40 do século passado. Na Figueira da Foz menciona-se o misterioso Nuno Fernandes, que em 1942 terá montado um modelo a partir de um kit encomendado por via postal à revista americana Popular Mechanics, tal como o caso do torreense António da Costa Lopes, que brincava nas ondas de Santa Cruz munido de uma tábua de igual origem. E não se esqueça o achado quase arqueológico feito pelo historiador João MacDonald, sobre o luso-descendente havaiano George Cunha, companheiro de Duke Kahanamoku, nem o vídeo dos banhistas registados a deslizarem nas espumas da praia de Leça da Palmeira com pranchas de carreirinhas em 1927. À medida que se escava o buraco da história, é normal que se vão desenterrando tesouros de maior ou menor valor, a disputar o gesto inaugural do surf português. Mas não há nem haverá descoberta capaz de destronar o estatuto de Pedro Martins de Lima como pai, de jure et de facto, da arte de correr ondas em Portugal. Porque a paternidade pressupõe uma descendência, uma linhagem, uma multiplicação. E nesse quesito, o impacto e influência do Pedro não têm paralelo. Quando se trata do surf como hoje o entendemos, onde o lúdico ombreia com o desportivo, o diletante flerta com o expert, a curiosidade leva à exploração, e o estilo de vida é abraçado sem amarras, o Pedro foi o indiscutível primeiro autêntico luso-surfista, mesmo não tendo porventura sido o primeiro curioso das ondas. Esse é o evento histórico a reter. Essa é a herança a respeitar.
“Se construístes castelos no ar, não terá sido em vão o vosso trabalho;
estão onde devem estar. Agora colocai os alicerces por baixo”
No editorial da edição da SurfPortugal com a sua entrevista, pergunto-me a certa altura se, num país com a nossa história, seria produto de uma feliz coincidência ou de uma lógica fatal que Pedro Martins de Lima fosse como era? Ainda não sei a resposta. O mais provável é não haver uma resposta definitiva. A par da pasteurização, institucionalização e banalização do surf em Portugal, temos alguns exemplos de vivência do mar e das ondas que parecem conferir algum sentido ao legado de waterman deixado pelo Pedro. A sua própria descendência de sangue (e de nome!) parece prová-lo. Seu filho, aos 65 anos, continua ativo e a disputar os sets nos dias mais pesados nos Coxos. Seu neto e bisneto, também homónimos, são locais da Guaratiba, uma das ondas mais resguardadas e cobiçadas do Rio de Janeiro. Ao longo das últimas décadas o surf nacional gerou big riders respeitados, pescadores arrojados, competidores de elite, performers de excelência e todo o tipo de variações, comuns às terras onde a antiga prática dos havaianos crie raízes profundas, ramificando-se em galhos abundantes e folhagens verdejantes. Isso foi motivo de orgulho suficiente para o Pedro em vida, como o Pedro deverá continuar a ser um orgulho para os que o têm como modelo. Recorrendo mais uma vez a Thoreau: “Se construístes castelos no ar, não terá sido em vão o vosso trabalho; estão onde devem estar. Agora colocai os alicerces por baixo”. Esta última missão cabe-nos a nós. Que sejamos dignos dela.