Igualdade de género no surf em Portugal – o que falta fazer?
por Maria Kopke
Foi o segundo dia da última etapa da Liga MEO, e eu estava ligada à página da ANS, atenta aos resultados para fazer o recap ao final da tarde. Estava prevista uma queda no tamanho das ondas. As mulheres, que não tinham entrado no dia anterior, iam estrear nessa manhã. Lá estrearam, e fizeram o que puderam fazer com as condições que tinham. A surfista Mariana Rocha Assis desabafou a sua indignação com o sucedido num post do instagram, que recebeu comentários de apoio de atletas como Carolina Mendes, Camilla Kemp, e Joana Andrade.
No sábado, as coisas não correram melhor para a categoria feminina. Numa conversa informal, a atleta Carina Duarte contou-me como a organização decidiu não iniciar a competição na manhã desse dia à espera da entrada de um swell, como as atletas, depois de tentarem falar com a organização, resolveram vestir as licras e recusar-se a entrar na água em protesto pela falta de condições, e como o man-on-man feminino acabou por não acontecer por falta de tempo - mas o man-on-man masculino ocorreu como previsto.
Story publicado no perfil de Instagram da Carina Duarte
Terá sido coincidência, os homens terem entrado no primeiro dia e surfado ondas que deram para notas de 9 e 10, enquanto as mulheres ficaram para o segundo dia, para as marés cheias, para as condições que já se sabia de antemão que seriam piores? Talvez. Mas recordo, no curto tempo da minha vida em que surfei e fui a competições, de ouvir as outras mulheres, as mais velhas que eu, que levavam aquele mundo mais a sério do que eu, a reclamar de coincidências deste tipo que aconteciam a toda a hora.
Também me lembro, nos meus tempos de surf, de ouvir de várias bocas: o surf feminino nunca vai atingir o nível do surf masculino. É por causa da anatomia, é por causa da força, da força física, mas da de vontade também, porque elas não querem tanto, treinam menos, desistem mais cedo. E por isso também não vale a pena estar a colocá-las a competir nas melhores condições, nem oferecer o mesmo prize money nos campeonatos, porque se elas não investem no surf, porque é que o surf haveria de investir nelas? Além disso, o surf feminino não vende tanto, então não se deve estar a gastar muito dinheiro nisso.
"há muito caminho a percorrer para atingir de facto a igualdade de género no surf"
Isto foi há muitos anos. Hoje em dia já não se fala do surf feminino nesses termos. A WSL, aliás, que durante muito tempo compactuou com o ambiente patriarcal que ditava que o surf não era desporto para raparigas, tem vindo a tomar várias medidas louváveis para reverter essa ideia, cujos frutos certamente serão colhidos mais adiante.
Mas o discurso tende a mudar antes do pensamento: primeiro aprendemos que o machismo não nos fica bem e vamos alterando a forma como falamos para não passarmos por machistas, e depois, lentamente, vamos começando a acreditar realmente no que dizemos. Com isto quero dizer que há muito caminho a percorrer para atingir de facto a igualdade de género no surf, e falta em muito mudarmos a nossa forma de pensar.
Então, voltando. Falemos da anatomia, da força física e da força de vontade, das surfistas que desistem. Um dia, depois de uma surfada, duas atletas com quem treinava, acabadas de entrar na adolescência e preocupadas com questões que eu ainda não compreendia, me perguntaram: “achas que estamos a ficar com os ombros demasiado largos?”. Na minha opinião não estavam. Mas alguém tinha feito esse comentário, um rapaz, e era um problema porque quanto mais treinassem mais largos ficariam os ombros, e mais os rapazes comentariam, mas não era só isso. Mulheres de ombros largos não eram bonitas, e surfistas que não eram bonitas tinham mais dificuldade em encontrar patrocínios. Era o que dizia Silvana Lima em 2016.
E engana-se quem pensa que ao longo dos últimos anos essa situação ficou totalmente resolvida. Em 2020 tive o prazer de entrevistar a Mariana Rocha Assis para um projecto chamado "Back To The Kitchen", e ela disse-me o mesmo: “Temos surfistas portuguesas com enorme potencial, e como não são giras… não têm marcas a apoiá-las”.
Ou seja, para singrarem nesta indústria, as mulheres têm que manter uma determinada anatomia que implica necessariamente menos força física, o que as impede de elevar o nível do surf feminino. Se, por outro lado, apostarem em fortalecer o corpo para elevar o nível do surf, arriscam-se a não ter quem as apoie, e lá se vai a força de vontade, desistem, e confirmam a premissa inicial: o surf não é desporto para raparigas.
A WSL, como comentei, já compreendeu que esta lógica é falaciosa, e já começou a dar ao surf feminino o valor que ele merece. Já deve ter compreendido também que não é verdade que o surf feminino não vende: entre os 50 atletas mais comercializáveis do mundo, estão apenas dois surfistas. Um homem e uma mulher. O que está em causa não é, portanto, “só” uma questão de justiça social, mas uma questão de marketing.
"Não faltam provas de que as atletas portuguesas merecem ser valorizadas"
Em Portugal, parece que ainda falta iniciar a jornada. Falta a igualdade do prize money, falta a igualdade no investimento por parte dos patrocinadores, e falta não colocar as mulheres a competir nos dias piores, onde naturalmente têm menos oportunidade de brilhar. O que não faltam são provas de que as atletas portuguesas merecem tudo isso – foi esta, aliás, uma das observações da Carina na nossa conversa: na final feminina do Bom Petisco Peniche Pro, já com ondas de qualidade, as atletas brilharam e mostraram estar “à altura de qualquer mar”. A ANS inclusive descreveu-a como “uma das melhores finais de que há memória na Liga MEO Surf”.
E podia fazer uma lista de mais mil exemplos de provas de que as surfistas portuguesas merecem ser valorizadas, mas deixo-vos com apenas um: foram duas mulheres, a Yolanda Hopkins e a Teresa Bonvalot, que realizaram o feito histórico de representar toda a comunidade surfista portuguesa no primeiro ano do surf como modalidade Olímpica. E como se não bastasse, voltaram para casa com um 9º e um 5º lugar – um diploma olímpico, diga-se de passagem, não é pouca coisa.
"Atrás de uma grande mulher há sempre uma série de outras grandes mulheres"
Para finalizar, quero dizer que, ao contrário do ditado, a minha experiência diz-me que atrás de uma grande mulher há sempre uma série de outras grandes mulheres. Falta isso também. A Yolanda, a Teresa, a Carol, a Francisca, a Mafalda, todas elas são a prova de que o surf feminino pode sim atingir o nível do surf masculino. Mas faltam pessoas nos bastidores dispostas a levar esse projecto avante: faltam mulheres juízes, presidentes, investidoras, treinadoras, seleccionadoras, comentadoras. Falta que não tenham que ser as surfistas a provar uma e outra vez que pertencem à indústria do surf, mas sim que a indústria do surf prove que que as quer, e que, na verdade, precisa delas.