Descansa em Paz Abílio!
Ele nada ganhou. Foda-se, ele sequer competiu! E, no entanto, é uma das imagens mais inescapáveis às minhas recordações do segundo Billabong Madeira Challenge, nos idos da década de 1990...
Acabávamos de chegar da tortuosa travessia desde o Jardim do Mar na era pré-túnel, seguindo a confirmação de que os tubos amendoados da vizinha vila do Paul iriam suceder os drops e longas linhas da Ponta Pequena como palco escolhido para a nova edição do audacioso campeonato “inventado” por Paulo Martins, da Billabong, uma das mais brilhantes ações de marketing que o surf português já vira.
O set entrou quando me encaminhava para junto do grupo do grupo que, às pressas, tratava dos preparativos para iniciar prova. Paredes azul-cobalto de pura energia atlântica lançavam suas cristas ameaçadoras com tal violência que dir-se-ia poderem atingir em cheio o paredão de proteção da vila. Sozinho na água, um surfista loiro de ramada decidida rema para a maior daquela cordilheira aquática, mete os pés na prancha como se tivesse ventosas, assume uma postura de quase cócoras e com o rabo levemente espetado, estranhamente invocadora do surf de single-fin, e percorre o drop vertical com uma segurança desconcertante, olhos fixos na secção diante de si, já a preparar-se para colapsar sobre ele. Num gesto decidido, inclina-se subitamente para a frente, o queixo quase a encostar na água, toda a pressão posta sobre o rail e o fin interiores, desferindo uma linha de bottom a rasgar a superfície envidraçada do mar com a precisão dos patins de um ginasta no gelo. Projetada para o topo da parede, a velocidade acumulada é libertada na forma de nova curva, agora sobre o rail e fins posteriores, gerando ainda mais velocidade, usada para percorrer mais uma dezena de metros antes de elegantemente galgar o lip antes de a onda explodir num enorme close-out.
O surfista era Abílio Pinto, natural de Vila Nova de Gaia, intrépido pioneiro das ondas mais desafiadoras do norte do país, shaper de excelência, importante promotor de eventos, e uma das figuras mais marcantes do surf português. O fato de novamente não ter sido convidado para integrar o restrito grupo de oito surfistas do Billabong Challenge, porém, denunciava que, apesar de todo o reconhecimento passivo e trabalho ativo do seu percurso de vida, na sua condição mais essencial, a de homem das ondas, Billy Boy estava condenado a ser um underground hero.
Não irei escrever aqui um historial completo do percurso do Billy Boy. Nem do trabalho como fabricante de pranchas, nem da sagacidade como organizador dos campeonatos em Miramar, naquele que era o seu trecho pessoal do litoral do Grande Porto. Não falarei também da sua mudança para a ilha da Madeira, onde silenciosamente, como sempre, fez surf enquanto o corpo permitiu-lhe, e partilhou seus vastos conhecimentos sobre dar bom uso às ondas do mar e a um blank de espuma.
A razão deste texto não é avaliar a contribuição inestimável deste homem do mar, de olhos azuis brilhantes e sonhadores, para os caminhos do surf em Portugal e no Norte do país. A seu tempo a história encarregar-se-á disso. E se não o fizer, é falha de quem a conta e perda de tempo de quem a lê. Porque o surf é tão definido pelos seus nomes consagrados como por aqueles cujo reconhecimento soa sempre a insuficiente, cujos feitos são celebrados efusivamente em circuitos internos, mas sempre nas franjas da ribalta.
Não, a razão deste texto é tão-somente prestar uma homenagem muito pessoal ao Abílio Pinto, procurando dar algum sentido ao seu súbito desaparecimento, vítima do cancro, essa doença maldita, consumidora de corpos e tão, mas tão cruel, atingindo indiscriminadamente corpos fracos como sãos, consumindo-os por dentro e por fora, exigindo lutas desumanas muitas vezes matando tanto pela cura como pela moléstia. E o Abílio que eu conheci tinha um corpo e uma mente sã como poucos.
Há muito tempo que não o via, mas cada encontro, como no Norte Surf Fest do ano passado, era vivido como se nem um dia houvesse passado. O mesmo sorriso, a mesma sabedoria, a mesma energia, a mesma piada.
Porra Abílio, vais deixar saudades. Descansa em paz guerreiro!
*Por João Valente