O ESPÍRITO DO JOGO
Valores sólidos na base da qualificação de Frederico Morais para o CT…
O espírito do jogo é a entrega sem limites, é o compromisso com o próprio jogo, é ter uma filosofia por trás com valores sólidos como a lealdade, a correção e o saber perder - o fair play.
Saber superar a adversidade com esforço e respeitar todos os intervenientes com disciplina e autocontrolo, só assim valorizamos o jogo. Foi esse espírito que o Frederico Morais viu e sentiu no seu seio familiar desde a sua mais tenra infância.
O seu tio levou a primeira equipa amadora a um mundial de rugby e o seu pai, o grande impulsionador da sua carreira, jogou largos anos na seleção nacional da mesma modalidade.
Nuno Morais, o seu pai, vive o espírito do jogo como uma filosofia de vida. Treinos físicos às 5h30 da manhã - que ainda pratica antes de ir trabalhar - tornaram-se naturais para um miúdo de 15 anos como o Kikas.
“Quando a mente quer o corpo vem atrás”, é esta a mentalidade da família Morais, a antítese da educação do “bem-estar” e da “comodidade” muito inseridas na nossa sociedade hoje em dia.
O espírito competitivo e a cultura de trabalho incutidos pelo pai foram, entre outros, os valores que mais ajudaram o surfista português na sua condição como atleta.
A presença da família no início da sua carreira, que ainda era uma incógnita, chega a ser impressionante. Todos os anos iam passar a Páscoa à Austrália e o inverno ao Havai. Até aos seus 16 anos ver o seu pai no Guincho, de tripé na areia, a filmar horas e horas seguidas o miúdo franzino de cabelo louro, não deixava ninguém indiferente. Era impossível não reparar naquela conexão paternal que para muitos era incompreensível.
Como é que um pai sem perceber nada de surf explora o talento do seu filho surfista de forma tão exaustiva? Não se explica, é uma filosofia inserida no espírito do jogo que os surfistas, na altura pouco habituados aos alicerces da competição, não conseguiam ver.
Ao contrário do rugby onde os treinos são de exigência máxima, os treinos no surf, devido ao seu lado mais lúdico e prazeroso, nunca são a 100%. Treinar sem cair nos reverse airs não é prática comum. Assumir o compromisso logo nos treinos de “eu não vou cair” faz parte do espírito do jogo e não é por acaso que mentalmente o Frederico está muito forte e raramente cai nos seus heats.
O seu futuro no WCT ninguém sabe, mas não tenho dúvidas que está preparado para ser melhor do que o seu antecessor Tiago Pires. A influência que o Tiago teve (e tem) no Kikas é muito forte. O Saca “abriu a porta” para esta nova geração, os dois têm muitas coisas em comum, são pessoas bem formadas de carácter e com uma educação acima da média.
Contudo, Kikas, talvez por já não ser o nosso pioneiro no WCT, terá uma atitude menos defensiva. Tenho visto os seus heats ultimamente e mesmo os que perdeu, tem “jogado ao ataque”, não anda à espera, procura logo marcar os resultados.
Etapas do WCT como Bells Beach, Margaret River ou J-Bay serão certamente provas muito fortes para o seu surf de rail com tail slides. Um ponto a corrigir no seu surf talvez seja a perda de velocidade em ondas pequenas, de uma manobra para a outra, mas provas destas no World Tour são poucas e, mesmo nesse aspecto, como disse e bem o seu antigo treinador, Didier Piter, "Kikas está muito mais rápido”.
A sua segurança e escolha de ondas também podem fazer a diferença num circuito como o WCT.
Outro fator que impressiona é o seu lado positivo. Quando ouvimos as palavras emocionadas de Jesse Mendes, após a sua vitória no QS10000 de Cascais, sentimos o drama destes atletas que correm uma vida inteira atrás dum sonho muito difícil de alcançar com muitos sacrifícios pelo meio.
Frederico prefere pensar que já tem uma vida extraordinária e que se não tivesse entrado este ano não haveria problema, pois não entrar no WCT não é nenhum drama. Há que relativizar as derrotas, o WQS é feito de derrotas, concorrer com os melhores já é um privilégio e é preciso acreditar sempre que a sua vez vai chegar.
Só para relembrar que ele já bateu John John três vezes em Sunset Beach no ano de 2013. Em Portugal venceu Kely Slater em 2013, Mick Fanning em 2015, Gabriel Medina em 2016.
O momento mais marcante neste seu percurso histórico que culmina na entrada do CT, e que ficará para sempre na nossa memória, será aquele ataque à junção no round 4 em Sunset Beach, a segundos do fim a precisar duma nota perto dos 5 pontos.
Fez lembrar o filme Match Point de Woody Allen, “Há momentos num jogo quando a bola atinge o topo da rede e por uma fração de segundo ela pode avançar ou retroceder e nesse momento traçar o nosso destino“. No preciso momento em que Kikas termina a manobra de pé sentimos todo o esforço duma vida ser recompensado. A fração de segundo daquela manobra traçou o destino de Kikas na World Championship Tour.
Agora é um país inteiro que torce por ele e, ao ouvir as palavras do seu treinador Richard “Dog” Marsh, no dia da sua qualificação para o WCT, sentimos logo que o Kikas está em boas mãos: “He wil head home and enjoy it for sure, as he should, but it won´t be for too long. Because this is just the start, the real work starts now.”
Boa sorte!
Opinião: Bernardo “Giló” Seabra