https://surftotal.com/entrevistas/exclusivas/item/3700-bruno-garrudo-o-que-aqui-documento-sao-ondas-paises-em-que-ninguem-surfava-e-as-relacoes-humanas#sigProId9aad42c82e
BRUNO GARRUDO. “O QUE AQUI DOCUMENTO SÃO ONDAS, PAÍSES EM QUE NINGUÉM SURFAVA E AS RELAÇÕES HUMANAS”
O livro terá estreia mundial esta quinta-feira, dia 30 de outubro
A última vez que estivemos com Bruno Garrudo – Stuck, como lhe chamam –, no Sagres Surf Culture, ele já nos tinha alertado que vinha aí mais uma obra de arte. Artista por natureza, não consegue ficar quieto. Por essa razão é que, muito provavelmente, conseguimos ter acesso a “Deambulações”, um livro que retrata algumas de muitas viagens feitas pelo autor, e que tem estreia mundial no dia 30 de Outubro, no Surf At Lisbon (SAL), no cinema São Jorge, em Lisboa.
Fotógrafo, pintor, escritor, e tudo mais que se possa imaginar. Não vale é deixar a vida passar entre os dedos. Há muito que Bruno se entregou ao acaso, fazendo o que mais o deixa feliz: surfar. Sendo o mar a sua casa, a nossa conversa não poderia ter acontecido noutro lugar. O artista escolhe e nós aceitamos. “A ideia de fazer este livro surgiu há uns anos. Não sei dizer especificamente quando. Já tinha viajado imenso, fotografado, escrito. Aliás, comecei a fotografar e a escrever durante essas viagens”, começou por referir, mas acredita que o clique aconteceu há uns anos, durante o “Sipping Jetstreams”, de Taylor Steele. “Há uma imagem no filme que é exactamente uma fotografia que eu tinha tirado antes de o filme ser lançado. A cena passa-se em Cuba e já lá tinha estado a surfar numa altura em não andava lá ninguém. Acho que foi aí que pensei pela primeira vez de uma forma mais séria: ‘se este gajo é um dos mais conceituados realizadores de filmes de surf no mundo e eu tenho esta imagem que é exactamente aquilo que ali está, porque não transformar isto em algo?’ Acho que às tantas foi aí que nasceu.”
Mas a vida foi seguindo o seu rumo. “As viagens continuaram, bem como a escrita, o surf e a fotografia. Indirectamente, ou inconscientemente talvez, continuei a trabalhar para o projecto que estava meio adormecido. Estava cá, mas nunca tive aquela postura de um jornalista que sai para trabalhar e que tem de trazer resultados. Fui vivendo a minha vida e ao mesmo tempo ia documentado.”
Entre as deambulações, só no ano passado é que Bruno se agarrou à pré-produção do livro, e avançou sem apoio de qualquer editora. “É um processo muito complicado, rejeitei trabalhar com editoras, pois recuso-me a trabalhar com as condições que são propostas aos autores. Foi um processo coordenado e gerido por mim. Felizmente tive a ajuda de um grupo pequeno de pessoas que foram muito importantes”, frisou.
Sempre em viagem e sem nos dizer por onde andou, apenas que “por lugares interessantes” e, como cita o prefácio de Gonçalo Cadilhe, andou “nesse grão de areia perdido no infinito a que nós chamamos terra”, a ideia era deixar os lugares comuns e ir em busca da essência. “Imagina, lugares como Austrália ou o Havai, até mesmo a Nova Zelândia, são países que te trazem experiências tão ricas como estes países que documentei, mas são formas de viver o surf diferentes. Os supracitados têm uma cultura de surf muito vincada e não era isso que procurava. Aquilo que aqui documento são ondas, ou mesmo países em que ninguém surfava e as relações humanas. É muito difícil conseguires uma experiência desta natureza e é das coisas mais fortes que podes viver…para quem aprecia realmente surfar e tudo o que isso representa”, explicou-nos o autodidacta.
Entre orangotangos, aldeias palafíticas, crocodilos de água salgada e as boleias nas carroças, são sete as histórias que podemos encontrar nesta obra. “Tentei criar conteúdo coerente. São todos lugares distintos. Cada história é ilustrada por imagens. Não consigo precisar a quantidade de viagens que fiz porque algumas foram interrompidas e umas duraram mais que outras. As viagens não foram planeadas… Claro que houve muita pesquisa mas as coisas foram acontecendo”, explicou.
A prancha esteve sempre a seu lado. Por onde passava, sentia os olhares. E sempre que surfava “no grande rio”, aproximava os mais curiosos. “Eles pulavam e gritavam. Muitos disseram coisas que não entendi porque em alguns locais por onde passei era difícil comunicar por palavras para teres um diálogo, mas era sempre possível comunicar por gestos.” Questionado sobre se ensinou alguns a surfar, Stuck prefere dizer que partilhou a sua experiência.
E o que te fascinou mais nestas viagens? “Essa é difícil. Se filtrar tudo até chegar ao que realmente é importante, acho que é mesmo a essência e a simplicidade. Conseguires descartar tudo o que é supérfluo e perceberes que quer seja na relação humana, quer na experiência de surfar ou o que for na vida, não há nada como a simplicidade e teres a possibilidade de viver experiências que nunca mais terás oportunidade de repetir, porque alguns desses lugares já foram descobertos por quem não interessa”, lamentou.
“Deixei tudo para trás. Era pouco, ou, quem sabe, nada”
Natural do Ribatejo, criado nos arredores de Lisboa, mas feito em África, talvez por isso sinta que o seu coração não pertence ao país de Camões. “Sabes aquele tempo em que passamos dentro de água, que é o mais importante, passei-o em África. A vida deu muitas voltas e acabei por crescer no subúrbio de Lisboa e entretanto nunca tive oportunidade de conhecer África, a não ser pelas narrativas de amigos e familiares. Não pude conhecer a terra que o meu coração habita até começar a viajar”, recordou.
O surf começou cedo, numa altura em que ainda era considerado marginal aos olhos da sociedade. “A primeira vez que vi o mar foi em 1975, na Nazaré. Que agora está nas bocas do mundo. Naquela vila piscatória – onde as mulheres ainda usavam sete saias – ninguém sabia o que era o surf. Aliás, nem a minha família sabia. O surf em Portugal, nos anos 80, ou até mesmo ao virar deste século, era desprezado. Achavam que era coisa de vagabundo. Mas era o que queria fazer da vida e levou mais tempo do que gostaria.”
Embora tenha arranhado na competição, acabou por não seguir esse caminho, mas confessa que se lhe tivessem dado a oportunidade, não diria que não. “Eu só queria era surfar”. Quis a vida que além de surfista, fosse artista. Parou de crescer aos 19 anos. Pelo menos é o que nos diz em tom de brincadeira. “É a síndrome de Peter Pan”. “Acho que parei no tempo de certa forma”, sublinhou. Mesmo não sendo verdade, pegou e hoje se lhe perguntamos a idade, a resposta é a mesma: 19 e vamos na conversa.
"Go confidently in the direction of your dreams. Live the life you’ve imagined” - Thoreau
Enquanto conversamos, folheamos o livro e paramos numa frase um tanto profunda: “Live the life you’ve imagined” e vives? “não vivo a vida que imaginei, mas continuou a procurar e a viver nesse sentido. Não atingi a plenitude. Vivo a vida que imaginei no sentido que faço o que gosto e isso é o mais importante.” Resposta dada.
O próximo passo será a apresentação do seu livro no Surf At Lisbon (SAL), na próxima quinta-feira, dia 30 de Outubro, no Cinema São Jorge, em Lisboa. Em seguida, volta a fazer-se à estrada para a digressão pelos países de língua portuguesa, preparando-se ainda para contar muito mais das suas viagens, pois a “cabeça não pára”. Sempre com a polaroid, a prancha debaixo do braço e a sede insaciável de surfar.
Por Beatriz Silva
- Créditos fotos: Stuck