SOMA – O surf como canal de empoderamento feminino em São Tomé
Um projecto que nasceu em Portugal...
O SOMA - Surfistas Orgulhosas na Mulher d’África, é um projecto português que viu a sua expressão em África.
Criado pelas mãos da surfista portuguesa Francisca Sequeira em outubro de 2020, o SOMA tem como fim empoderar jovens raparigas em São Tomé através do surf e permite a 26 raparigas entre os 6 e os 18 anos de idade surfar 2 x por semana com treinadores que receberam formação pela surfista de ondas grandes Joana Andrade e a campeã portuguesa de surf Mariana Rocha Assis.
No seu ainda curto tempo de existência, o projecto já criou um forte e positivo impacto na comunidade local, como nos contou a sua fundadora nesta entrevista exclusiva à Surftotal.
O que te levou a criar o projeto SOMA?
Ui… tanta coisa! Foi muito orgânico… acabou por ser o resultado de vários fatores. A quarentena foi um deles obviamente, o querer transformar esta experiência assustadora que todos estamos a passar numa oportunidade, foi o meu mindset desde o início. Tinha de haver um positivismo no meio disto tudo… E numa das muitas horas de scroll que fiz durante esse período, dei de caras com um mundo que desconhecia, que era o surf therapy. Na altura estava a magicar uma viagem a São Tomé e então, foi assim um daqueles “ah-ha! moment”.
Obviamente esta força interior veio do facto de ter voltado a surfar depois de ter parado quando tinha 13 anos; e de ter percebido que a razão disto ter acontecido tinha sido a minha entrada na adolescência. Percebi que tinha abandonado o meu lado mais genuíno em prol de um conceito de mulher, lugar que eu achava que agora me devia encaixar e pertencer. No fundo é esta experiência que quero passar a estas miúdas tão desacreditadas nelas próprias…
Quando decidiste avançar com este projecto tiveste de fazer um trabalho de angariação de jovens raparigas, o que fizeste, literalmente, batendo de porta em porta. Qual foi a reacção dos pais quando lhes bateste à porta para convidares estas jovens a ter o seu primeiro contacto com o surf?
A ideia surgiu no dia 25 de Agosto e eu no dia 26 de Setembro estava a arrancar para São Tomé com o evento que tinha organizado à distância, para dia 3 de Outubro. Portanto, tinha menos de uma semana para conhecer a comunidade de surf local e formar uma equipa com os rapazes. Visitei alguns bairros na zona de Santana onde fica o único club de surf do País, foi fácil encontrar as mães, que estão normalmente à porta das casas a conviver umas com as outras e a proteger as filhas que estão no interior, protegidas “dos ladrões da inocência”.
A reação foi muito positiva. Aliás, muitas das mães brincavam a dizer que queriam ir, até porque muitas delas nem 30 anos têm. Só falei com mães, os pais estão sempre fora e só vêm para jantar. O mais difícil foi e tem sido, manter a frequência nos treinos. Não por falta de interesse das SOMAs, mas porque em casa é-lhes exigido muito das tarefas domésticas. Esse é um dos grandes desafios… educar as mães para a importância deste programa na vida destas raparigas e negociar o tempo livre que lhes dão.
Como foi a adaptação das jovens à modalidade?
Para além delas verem o mar apenas como uma fonte de alimento, é só no rio - onde lavam a roupa e tomam banho - que têm as primeiras e muitas vezes únicas experiências com a água. Eu ia completamente preparada para um cenário de medo e receio da parte delas. Mas encontrei uma realidade diferente… a verdade é que não existe a noção do perigo, elas atiram-se para as ondas sem pensar, o que também não é de todo ideal! Logo no primeiro dia já queriam ir para o outside e ainda hoje em dia continuamos a falar da importância de «ler» e respeitar o mar. Para além disso, tive de ensinar a respeitar os outros surfistas porque se lhes damos uma prancha para as mãos sem um aquecimento mental antes, o excitamento é tanto que elas arrancam para o mar e não vêm mais nada sem ser as ondas – quem estiver à frente que se desvie! Em 5 meses de surf, já se vê uma evolução enorme e se não fosse a pouca energia (devido à má nutrição), a pouca resistência à temperatura da água (que para mim está sempre quente) e o estado de muitas das pranchas, tenho a certeza que muitas delas já se estavam a aventurar em algumas manobras!
Antes do início do projecto não havia uma única surfista feminina em São Tomé. Que impacto sentes que o surf tem tido na vida destas jovens?
Já reconheço vários sinais disfarçados de uma maior autoestima, proatividade e competências sociais e de expressão verbal. Mas ainda é cedo para comprovar esses resultados, até porque não é fácil medir a eficácia de uma intervenção deste tipo já que o impacto vai muito além da técnica de surf, é mais interno do que externo. Mas só o facto de terem vontade de sair de casa e de terem um interesse próprio… (para quem não conhece a realidade e mentalidade destas raparigas) já é um enorme passo!
“Em 5 meses de surf, já se vê uma evolução enorme e se não fosse a pouca energia (devido à má nutrição), a pouca resistência à temperatura da água e o estado de muitas das pranchas, tenho a certeza que muitas delas já se estavam a aventurar em algumas manobras!”
Como é que a comunidade local está a receber esta iniciativa inovadora em São Tomé?
De braços abertos e sorrisos rasgados, como tudo o que lhes é dado! Aliás receber está-lhes no sangue, quer seja receber pessoas e projectos ou presentes e donativos - é sempre uma festa! O importante é garantir que agarram estas iniciativas e que olham para as mesmas como uma oportunidade para desenvolverem e expandirem para outras ramificações que daqui possam surgir. Receber com consciência e não como um presente “all included”. Há uma responsabilidade a assumir por parte de toda a comunidade de forma a tornarem-se cada vez mais autónomos, sem precisarem constantemente de recorrer a ajuda externa e onde os primeiros dão o exemplo, inspiram e passam o testemunho à “geração” vindoura.
O que podemos esperar da SOMA no futuro?
Podem esperar uma forte contribuição para um mundo onde mulheres locais podem surfar ondas infinitas de justiça, união e sustentabilidade em África. Para isso estamos a aprimorar o programa em São Tomé e Príncipe, onde está a ser implementado o projecto piloto para depois levar até outros países como é o caso de Cabo Verde. Para além de um dos principais objectivos da SOMA ser o empoderamento feminino e o combate na desigualdade de género, acredito que o caminho se faz em união. Só faz sentido dar continuidade a este projecto se o resto da comunidade local, o único clube de surf de São Tomé, a federação de Surf e o Comité Olímpico também estiverem envolvidos. Nesse sentido vão começar a ser dados os primeiros passos para a concretização do campeonato de surf Nacional que vai contar pela primeira vez, com uma etapa feminina – um marco importante na história do surf em São Tomé e o primeiro sinal da igualdade de género no surf e, consequentemente, na sociedade.