João Valente durante uma aventura na Pororoca - ano de 2007 (Click por Ricardo Bravo) João Valente durante uma aventura na Pororoca - ano de 2007 (Click por Ricardo Bravo) segunda-feira, 06 julho 2020 05:24

"o surf, só por si, não torna ninguém especial..." - João Valente

Uma entrevista exclusiva sobre o estado actual do surf e da sua Cultura com João Valente, fundador da Surf Portugal.

 

 

Com a massificação da arte de deslizar nas ondas em cima de uma prancha tem-se vindo a verificar uma tendência para aligeirar o seu conceito, tornando o surf em apenas um desporto, coisa que o surf não é só.

A imprensa especializada e os principais agentes do surf têm aqui um papel fundamental na preservação e divulgação da história e cultura do surf, passando-a com eficácia de geração em geração, por forma a manter as bases sólidas de uma pirâmide que representa em todo o mundo mais de 30 milhões de praticantes e uma Indústria em crescimento.

 

A Surftotal tem estado à conversa com as mais diversas personalidades da história do surf nacional e internacional que nos têm vindo a deixar o seu testemunho e opinião sobre a situação actual da história e cultura do surf.

 

Tem a palavra João Valente ,  uma das personalidades incontornáveis do Surf Nacional, fundador da primeira publicação escrita de surf em Portugal (A Surf Portugal), Jornalista, comentador, colunista e pensador contemporâneo.

 

 

 

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"A Cultura do Surf é toda a nossa história,

 

desde os tempos ancestrais da prática recreativa ou ritual do ato de deslizar nas ondas,

 

até ao desporto profissional que existe hoje em dia..."

 

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 João Valente a entrar na Baía onde quebra a onda Rainha de Portugal - Os Coxos (Click por Ricardo Bravo)

 



Surftotal: A cultura do surf tornou-se um alicerce sobre o qual o surf como desporto e estilo de vida se baseou. A sua importância em preservar o culto, assim como o mercado, tem sido evidente. Estás de acordo com esta afirmação?

João Valente: De certa forma, sim, concordo. Só não faço é distinção entre a cultura e o desporto, o mercado, o estilo de vida, etc... Tudo isso são elementos de um todo a que se pode chamar genericamente de cultura.

Surftotal: Qual é para ti o significado de Cultura do Surf?

João Valente: É toda a nossa história, desde os tempos ancestrais da prática recreativa ou ritual do ato de deslizar nas ondas, até ao desporto profissional que existe hoje em dia. É a soma de todas as narrativas que povoaram e povoam a nossa história, independentemente de quais prevalecem em determinada época. Os nossos heróis e anti-heróis, a evolução tecnológica, as diferentes abordagens e vivências deste estilo de vida, as manifestações artísticas multidisciplinares derivadas do fascínio com as ondas do mar, com o deslize, os padrões comportamentais, a moda, a indústria... tudo isso compõe o quadro aberto da nossa cultura.

 

 

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"Cada vez menos as pessoas procuram informação.

 

O que se procura é validação de pontos de vista pré-concebidos..."

 

 

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 João Valente a descer uma bela direita nos Coxos (Click por Ricardo Bravo)

 



Surftotal: Quais são para ti os alicerces base da cultura do surf, (se assim podemos dizer)? O que deve ser preservado e tido em conta na tua opinião? Já agora se a comunidade do Surf tivesse uma “Bíblia”, qual livro de surf reflete mais a cultura do surf?

João Valente:Como em qualquer cultura, os alicerces são a base sobre a qual foram erguidos os blocos basilares, ou aquilo que Drew Kampion refere como a “seed culture”, a semente que germina, cria raízes e dá origem à árvore, com todas as suas ramificações. Nesse sentido, os alicerces da nossa cultura serão os atos que se mantêm como referências obrigatórias, independentemente das mutações e variações a que foram e são sujeitos nas diferentes épocas, contextos sociais ou tecnológicos em que se manifestam: a busca das melhores ondas, a obsessão com os equipamentos, a valorização da performance, o respeito pelos elementos, o gosto da pura diversão... Isso está tudo presente e descrito ao pormenor no Hawaiian Surfriders, do Tom Blake. A haver alguma coisa próxima de uma bíblia, será isso. Há muitos livros e autores essenciais para o aprofundamento dos vários aspectos da nossa cultura, mas o Blake é a matriz. Para uma visão mais ampla e contemporânea, a História do Surf, do Matt Warshaw, é a referência absoluta. Há muito por onde escolher e recentemente têm surgido autores excelentes, que têm ajudado a conhecer a nossa história para lá da mitologia, com uma objetividade académica que não estava ao alcance dos nossos tradicionais narradores, mais apaixonados e emocionalmente envolvidos com a coisa.´

 

 

 

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"Um imbecil será sempre um imbecil,

quer seja surfista ou não..."

 

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Prémio Carreira Portugal Surf Awards.(ANS)

 



Surftotal: Sendo tu o Jornalista de surf mais idóneo que existe em Portugal, tendo inaugurado e fazendo evoluir a 1ª publicação escrita de surf em Portugal,  que lições tens vindo a retirar destas tuas experiências nos meandros do surf?

João Valente: Acho que a maior lição foi ter aprendido a aceitar que o surf, só por si, não torna ninguém especial, iluminado, tolerante ou, em suma, melhor pessoa. Como em tudo nesta vida, o resultado das nossas ações depende da intenção que nelas colocamos. Um imbecil será sempre um imbecil, quer seja surfista ou não, mas se a intenção for usar o surf como alavanca de caráter e bem estar mental e espiritual, o potencial é imenso. Não conheço muitos que o fazem.

 

 

 

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"O surf, só por si, não torna ninguém especial,

 

iluminado, tolerante ou, em suma, melhor pessoa..."

 

 

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Surftotal: O Jornalismo de surf está mais vivo que nunca ou a morrer aos poucos? (Portugal e Mundo)

João Valente:É com pena que digo que o jornalismo do surf está na sua pior fase, em Portugal e no mundo. Mas não acredito que seja um fenómeno particular ao surf, acho que o jornalismo, de modo geral, está a atravessar um período muito crítico. E desengane-se quem acha que se pode separar esse declínio da escrita jornalística do declínio da qualidade de leitura. Está tudo interligado. Cada vez menos as pessoas procuram informação. O que se procura é validação de pontos de vista pré-concebidos e tudo o que vai contra a narrativa pessoal do leitor, é automaticamente descartado como falso ou ideologicamente manipulado. Como sociedade, isso gera um ambiente muito perigoso.
No caso do surf, por ser um meio mais circunscrito, de pouca importância e com índices de leitura equivalentes aos do vegetarianismo entre esquimós, é ainda pior. Não existe formação nem vocação. Escrever sobre surf passou a ser um artifício de integração social neste meio como outro qualquer. E quanto mais reduzido é o universo, pior se torna, o que nos traz a Portugal, onde os baixos níveis de escrita só encontram paralelos nos baixos níveis de leitura. O Frank Zappa descrevia o jornalismo de rock como “tipos que não sabem escrever, a entrevistar tipos que não sabem falar, para tipos que não sabem ler”. O jornalismo de surf, com cada vez mais raras exceções, tornou-se um pouco nisso.
Na senda do interesse que o surf tem suscitado nos media tradicionais, porém, alguns bons jornalistas se têm debruçado por cá sobre a matéria. Mas tenho dificuldade em identificar isso como jornalismo de surf, pois é algo meramente incidental. O surf acaba aqui por ser uma matéria como outra qualquer.

 

 

João Valente com Martin Potter quando da distinção Surf Portugal ao ex Campeão do Mundo(arquivo pessoal)

 

 

 

 

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"Não acredito que o mercado da surfwear esteja a morrer.

 

Caiu-se de um patamar onde se esteve durante anos

 

e estamos a assistir a um reajustamento..."

 

 

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Surftotal: Podemos fazer algum paralelismo(pergunta acima) com o mercado de surf wear (vestuário)? O Mercado está mais vivo que nunca ou a morrer aos poucos?

João Valente:O vestuário e o jornalismo são realidades e contextos distintos. De facto, a queda das revistas de surf deveu-se em muito à quebra das receitas publicitárias do mercado da surfwear, mas também à quebra na circulação das revistas, um fenómeno que afeta a imprensa em geral, e não só a do surf. Não acredito que o mercado da surfwear esteja a morrer. Caiu-se de um patamar onde se esteve durante anos e estamos a assistir a um reajustamento. Não sou economista — deixo essa para o meu amigo Hélder Ferreira — mas se um mercado pressupõe a existência de uma massa consumidora, nunca houve tantos surfistas como hoje em dia, por isso, falar em morte, soa-me a manifesto exagero, para evocar a tão banalizada frase de Mark Twain. A queda do mercado da surfwear estava prevista há anos, não foi de agora. O livro do Phil Jarratt, Salts & Suits, previa essa inevitabilidade em 2010. São outros tempos, mas as marcas endémicas estão muito mais pujantes do que se quer fazer acreditar. Os modelos de negócio, tal como estavam montados, é que se vieram a revelar insustentáveis, e a linha de crescimento constante, que se verificou durante décadas, levou alguns gestores a cometerem erros de avaliação de riscos. Mas olhar o passado a partir da realidade presente é sempre uma posição de injusta vantagem para com os protagonistas da altura. Quantos agiriam de modo diferente naquela altura?

 

 

João Valente a mandar um rasgadão numa onda de uma Praia na Cidade Maravilhosa (Rio de Janeiro) em 1994

 

 

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"Sem dúvida que vulgarizou-se, mas pior que a vulgarização

 

foi o que eu chamo de pasteurização da imagem do Surf..."

 

 

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Surftotal: Vulgarizou-se na tua opinião a imagem do surf? Isso tem vindo a valorizar a imagem do surf ou nem por isso?

João Valente:Sem dúvida que vulgarizou-se, mas pior que a vulgarização foi o que eu chamo de pasteurização da imagem. Foi o trabalho de maquiagem forçada, impulsionada por departamentos de marketing e interesses corporativos, que resolveram limpar a imagem do surf para o consumo das massas. Procedeu-se a uma higienização para exorcizar fantasmas de outras eras, sem se darem conta que esses fantasmas — nomeadamente, a alienação voluntária face a uma determinada ordem social — eram parte integrante da sedução que aquele mundo exercia. Mas a verdade é que as diferentes vivências do surf sempre foram coexistentes. Hoje, a imagem do surf como atividade desportiva e saudável é uma unanimidade, mas reconhecer um passado povoado de personagens e episódios ambíguos e controversos só faz enriquecer a nossa história e cultura. Para todos os Shaun Tomsons, Randy Raricks e Bob Coopers que representavam o lado mais saudável e clean cut da atividade, havia sempre o contraponto dos Miki Doras, Michael Petersons e Mike Hynsons, a sabotar as tentativas de domesticar o nosso lado mais rebelde e fora-da-lei. A tentativa de catalogar as eras do surf de forma uniforme parece-me uma ideia francamente ignorante, na melhor das hipóteses, e desonesta, na pior.

 

 

João Valente com Javi Amezaga (revista Espanhola Tresessenta) e Gibus de Soultrait (da famosa publicação The Surfers Journal)

 

 

 

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"Sobre as redes sociais, Umberto Eco dizia que quando se dá a voz a todos,

 

dá-se a voz a imbecis, o que é verdade,

 

mas também se dá a voz a gente interessante e inteligente..."

 

 

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Surftotal: Redes sociais são uma alavancagem na divulgação do surf e sua cultura ou estão a deformar ou alterar de alguma maneira?

João Valente: Sobre as redes sociais, Umberto Eco dizia que quando se dá a voz a todos, dá-se a voz a imbecis, o que é verdade, mas também se dá a voz a gente interessante e inteligente. Depende daquilo que se procura. Quem quiser encontrar cultura e informação relevante nas redes sociais, encontra, porque está lá. Às vezes, o que falta é um bocado de mediação, de curadoria, um trabalho que antes cabia aos media especializados.

 

 

João Valente exibe a 1ª edição da Surfer Mag que continha um artigo sobre Portugal

 

 

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A promoção massificada do surf,

 

fomentada em grande parte pela indústria do meio,

 

gerou um efeito perverso, que foi a da banalização da imagem...

 

 

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Surftotal: Que de errado se tem passado na tua opinião para que as marcas de surf que fazem parte das fundações do surf estejam a decrescer nas suas vendas de surfwear (vestuário) enquanto que o número de praticantes tem vindo a disparar exponencialmente ? Há aqui uma alteração de rumo no mercado do surf?

João Valente: É um paradoxo, sem dúvida, mas explica-se. A promoção massificada do surf, fomentada em grande parte pela indústria do meio, gerou um efeito perverso, que foi a da banalização da imagem ao ponto de tornarem irrelevantes os sinais distintivos que permitiam o reconhecimento de alguém enquanto surfista no espaço público. Por outras palavras, quando toda a gente faz surf, deixa de ser importante parecer surfista. Por outro lado, acho que houve um desmedido culto da juventude no seu aspeto mais infantil, como se o público consumidor de surf fosse formado exclusivamente por miúdos e miúdas pré-pubescentes, ostracizando uma enorme massa de surfistas que não se revia nos painéis publicitários têxteis em que muitas coleções das principais marcas se tornaram. Por fim, a narrativa que o surf escolheu para se promover esgotou-se, e as marcas, esvaziadas do poder que anteriormente detinham, têm dificuldades em impor novas narrativas, mesmo que agora se tenham apercebido da importância disso. E não é pela associação a narrativas alheias — bandas de rock, arte e cultura urbanas, o que quer que seja — que irão lá. Essas “novas” narrativas têm de partir do próprio surf, da sua história, dos seus personagens. É essa a importância da preservação e fomento da cultura do surf. É aí que se encontram as narrativas capazes de trazer a moda do surf de volta a uma posição de relevância. E isto tanto vale para as empresas de equipamentos e vestuário como para a WSL, que também tem penado para vender a sua narrativa ao grande público. Não adianta trazerem profissionais de outras áreas de comunicação para gerarem conteúdos para o surf. Os conteúdos têm de sair do próprio surf, mas o que se vê a funcionar é uma lógica star system feita de compadrios que segue a reboque das redes sociais de surfistas que, enquanto geradores de conteúdos de autopromoção, são muito mais eficazes e influentes. A anunciada estratégia da WSL enquanto geradora de conteúdos tem sido um fracasso porque funciona na lógica da promoção de surfistas que fazem esse trabalho muito melhor que a própria WSL. É um jogo perdido à partida. Kelly Slater é o último personagem multidimensional do surf profissional de competição, com aquelas ambiguidades essenciais para tornar cativante qualquer narrativa. Quando ele sair de cena, o vazio será enorme. É preciso olhar para o passado para valorizarmos o presente. Pergunto-me o que uma série como o The Last Dance, da Netflix, não estará a fazer pelos níveis de apelo que o basquetebol exerce, tanto sobre o seu público tradicional como na captação de novos públicos. E a história do surf profissional está cheia de narrativas incríveis. É só chamar quem as saiba contar.

 

 

 

João Valente com algumas lendas do Surf Mundial(Rob Bain, Layne Beachley Dave Macaulay) e o seu amigo Julio Adler durante o histórico evento masters nos Açores 2018

 

 

 

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Só os conteúdos que ficaram por utilizar no filme Legacy

 

a propósito do evento Masters nos Açores

 

seriam capazes de encher os canais da WSL...

 

 

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Surftotal: Podes citar dois surfistas em todo o mundo que, na tua opinião, são leais e carregam os principais valores da cultura do surf e a capacidade de transmiti-la (espalhar) naturalmente?


João Valente: Kelly Slater é imbatível nisso. Conhece a cultura do surf como poucos e tem uma capacidade enorme em traduzir esse conhecimento segundo uma ótica contemporânea e original. E pelo peso da instituição, um bocado como o Tom Blake o fez no início do século ao estabelecer os alicerces do nossa cultura, diria que o Gerry Lopez continua a ser uma referência incontornável. Mas há muitos outros. O Tom Curren, o Derek Hynd, o Andrew Kidman, o Júlio Adler, o Tito Rosemberg... Estaria a sabotar a minhas próprias afirmações se conseguisse reduzir o que pedes a somente a dois nomes. O filme Legacy, da Boa Onda, produzido pelo Rodrigo Herédia a propósito do evento Masters nos Açores, é uma montanha de histórias. Só os conteúdos que ficaram por utilizar naquele filme seriam capazes de encher os canais da WSL ao longo destes meses sem campeonatos. Acho incrível ninguém pegar nisso!

 

 

 

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"Kelly Slater é imbatível nisso.

 

Conhece a cultura do surf como poucos...."

 

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Surftotal: E em Portugal?


João Valente: Bom, para escolher dois personagens diametralmente opostos na abordagem e na postura, mas que convergem nos valores estruturais do surf e na capacidade de atingir outras esferas, diria o Tiago Pires e o Gonçalo Cadilhe. Mas, novamente, há muitos outros. O Zé Seabra, o João de Macedo, o Gonçalo Ruivo, o Eurico Gonçalves, o Nick Uricchio, o Nic Von Rupp, o João Rei, o Zé Pyrrait, o João Catarino, o Nico da Wavegliders... Eram para ser só dois?! Desculpa, mas não consigo...

 

João Valente na Ilha da Madeira - Ano 1995

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