"A cultura do surf, hoje, não existe..." - Hélder Ferreira
Há os executivos ou os funcionários que surfam nas horas vagas e há os atletas que “treinam”...
Com a massificação da arte de deslizar nas ondas em cima de uma prancha tem-se vindo a verificar uma tendência para aligeirar o seu conceito, tornando o surf em apenas um desporto, coisa que o surf não é só.
A imprensa especializada e os principais agentes do surf têm aqui um papel fundamental na preservação e divulgação da história e cultura do surf, passando-a com eficácia de geração em geração, por forma a manter as bases sólidas de uma pirâmide que representa em todo o mundo mais de 30 milhões de praticantes e uma Indústria em crescimento.
A Surftotal tem estado à conversa com as mais diversas personalidades da história do surf nacional e internacional que nos têm vindo a deixar o seu testemunho e opinião sobre a situação actual da história e cultura do surf.
Tem a palavra o Português Helder Ferreira, Diretor da Volcom Portugal, surfista de Carcavelos dos anos 80 e pensador contemporâneo.
Helder nasceu em Angola em 1965, aprendeu a ler e escrever aos quatro anos de idade e teve uma infância muito feliz, até ao início da guerra em 1975. Passou por um período difícil durante a guerra até chegar a Portugal e foi morar numa pequena vila no norte do País. Hélder mudou-se para a Linha de Cascais, Carcavelos, em 1976. Surfa desde 1981.
"A cultura do surf, hoje, não existe. O que existe são duas coisas,
um hobby e um desporto..."
Helder a surfar uma onda no Calhau em Carcavelos - Agosto de 1985
A cultura do surf tem vindo a ser um alicerce no qual o surf enquanto modalidade e estilo de vida tem vindo a assentar. A sua importância na preservação de todo um culto e um mercado tem sido evidente. Concordas com esta afirmação?
Não podia discordar mais da afirmação. A cultura do surf, hoje, não existe. O que existe são duas coisas, um hobby e um desporto. Há os executivos ou os funcionários que surfam nas horas vagas e há os atletas que “treinam”. Falar em cultura do surf é como falar da cultura do ténis ou do padel. Não existe cultura do surf, não existe um estilo de vida, não há culto nenhum e nem sequer existe um “mercado” do surf. O surf, enquanto “mercado” não vende nada a ninguém. Vende pranchas, fatos e viagens como o ténis vende raquetes, bolas e horas nos courts, nada mais. E isto não é necessariamente mau, é o que é.
"Há quase 40 anos, o surf era uma contra cultura,
uma actividade marginal feita de marginais..."
Hélder Ferreira na foto ao centro em 1983
Na altura em que começaste a surfar como era encarada a cultura do surf e que diferenças vês nos dias de hoje?
Isto vai soar a “no meu tempo é que era bom”, mas não é essa a ideia nem a minha convicção, a não ser no que respeita aos crowds. Na altura em que comecei a surfar, há quase 40 anos, o surf era uma contra cultura, uma actividade marginal feita de marginais. Tive a sorte de ser um surfista do “Calhau” de Carcavelos e, nos anos 80, a Linha de Cascais era o que imagino fosse a California nos 60’s. Concomitantemente, os surfistas e a sua cultura eram feitos de marginais, tipos estranhos que passavam o Inverno na praia, drogados, sem fazer nenhum e facilmente identificáveis. Não era fácil explicar que aqueles dez segundos em cima de uma prancha, numa onda, valiam pelo tempo de espera sentados na água, ao frio e aparentemente imóveis. Tentei explicar isto várias vezes a familiares mais velhos e não percebiam, Achavam-me meio doido.
"Alguns de nós ficam mais velhos, assumem responsabilidades
e deixam de poder viver ao ritmo das ondulações, ventos e marés..."
A que se deve o desenraizamento de toda uma cultura do surf?
É a vida, como tudo. Alguns de nós ficam mais velhos, assumem responsabilidades e deixam de poder viver ao ritmo das ondulações, ventos e marés. Os outros, que vêm depois, desde pequenos que entram na rat race, condenados ao sucesso, a serem o próximo Kelly. Cheios de treino, dieta, treino físico, teórico, vídeo, sei lá. O Mundo está de repente cheio de génios hiper talentosos que são a última Coca Cola do deserto. Lido mal com isto, mas era inevitável, creio.
Qual a região do nosso País que mostra mais valores fieis à Cultura do Surf? Porquê?
Em Portugal diria que a região que lida melhor com isto é a Figueira da Foz e (em parte) o Algarve que fica para outras núpcias. A Figueira é onde há os tipos mais core do surf em Portugal inteiro. O único sítio que me ocorre onde existe gente, novos e velhos, que vivem ao sabor de ondulações, ventos e marés. Tipos duros, queimados do sol e do vento, para quem o surf é vida. E cultura de surf, seja na California nos anos 60 ou a Linha nos 80’s, é isto.
"Em Portugal diria que a região que lida melhor
com isto é a Figueira da Foz..."
A onda de Buarcos na Figueira da Foz é uma das direitas mais longas da Europa.
Nomeia dois surfistas a nível mundial que sejam fieis e transitam os principais valores da cultura do surf? E dois a nível nacional?
Como têm que ser nomes conhecidos: Dane Reynolds e Ozzie “Wrong”. Portugueses: Nicolau von Rupp e Alex Botelho.
Quais os principais meios de propagação e enraizamento da cultura do surf?
Não sei bem o que significa a pergunta, mas se é sobre a propagação da cultura, além do óbvio que são os media especializados, diria que a transmissão intrafamiliar é a mais importante. Na Califórnia é normal ver, às 6 da manhã, o avô, o filho e o neto a atravessar a rua de fato meio vestido para ir surfar. Esse parece-me um problema nos outros sítios (não conheço a Austrália ou o Hawaii) em que a maioria dos miúdos não têm pais surfistas. Tendencialmente estes pais e avós olham o surf como um desporto que os putos praticam, que exige treino, treinadores, etc, da mesma maneira como se fosse ténis ou futebol. Não há, na maioria dos casos uma transmissão cultural, só desportiva.
"Não há, na maioria dos casos uma transmissão cultural, só desportiva...."
Quais os antagónicos?
Outra vez os media, mas os generalistas, que não percebem que aquilo na Nazaré ou em Peniche não é “surf”, que não passam de pequenas manifestações de entretenimento do enorme Universo “surfístico”. Depois os pais, que sem sequer saber o que é uma onda, descobrem de repente (por razões estimáveis) que os filhos têm uma paixão e investem tudo no (in)sucesso destes.
"os media generalistas não percebem que aquilo
na Nazaré ou em Peniche não é “surf”"
Cada vez há uma maior consciência da responsabilidade de cada um de nós na preservação do Planeta, dos oceanos e Praias, contudo a indústria do surf é conhecida por ser uma indústria bastante poluente. Qual achas que deveria ser o papel da indústria, no que diz respeito à sustentabilidade?
Primeiro, não sei o que é isso de “sustentabilidade”, de seguida sei que tanto surfistas como a indústria, estão anos luz à frente de quaisquer outros no que respeita a consciência ambiental. O surfista é um tipo que vai a caminhar na praia e se vir uma garrafa de plástico apanha-a e coloca-a no lixo, sempre foi assim. As marcas têxteis são pioneiras na utilização de algodões orgânicos, lavagens com enzimas, poliésteres reciclados, tintas não poluentes e poupança de água, por exemplo. Dão lições a qualquer outra indústria têxtil nesse aspecto. Quanto a outros materiais (pranchas por exemplo) recomendo a entrevista do Gordon “Crubby” Clark sobre as razões porque fechou a Clark Foam em 2005 quando tinha 90% do mercado mundial de blanks. Seria demasiado extenso explicar aqui.
"O surfista é um tipo que vai a caminhar na praia
e se vir uma garrafa de plástico
apanha-a e coloca-a no lixo, sempre foi assim..."
A Cultura e história de um povo é transmitida e trabalhada de geração em geração por pessoas. Sem isso não há cultura que se preserve e isso pode levar ao desmoronar de um culto ou até de uma civilização! Concordas com esta afirmação? sim ou não e porquê?
Concordo absolutamente e julgo que está explicado porquê nas respostas anteriores, mas acrescentaria uma citação de um pensador inglês que recomendo sempre, num livro pequeno intitulado “Orthodoxy” e que reza assim:
“Tradition means giving a vote to most obscure of all classes, our ancestors. It is the democracy of the dead....Tradition refuses to submit to the small and arrogant oligarchy of those who merely happen to be walking about. All democrats object to men being disqualified by the accident of birth; tradition objects to their being disqualified by the accident of death. Democracy tells us not to neglect a good man’s opinion, even if he is our groom; tradition asks us not to neglect a good man’s opinion, even if he is our father.” G.K Chesterton
A queda das culturas em sentido estrito e até das civilizações reside nisto: no menosprezo pela opinião dos que nos antecederam. Eu gosto de velhos e oiço com muita atenção e cuidado o que me têm a dizer. Eles sabem muitas coisas que nós não sabemos.
"A queda das culturas em sentido estrito e até das civilizações
reside nisto:
no menosprezo pela opinião dos que nos antecederam..."