As duas opções de Inês Bispo: insistir numa luta inglória contra si ou readaptar-se Photo by: Nanikas domingo, 13 fevereiro 2022 16:39

As duas opções de Inês Bispo: insistir numa luta inglória contra si ou readaptar-se

Do outro lado do atlântico, Inês Bispo cedeu à SurfTotal uma entrevista exclusiva onde abordou a desistência da competição, falou de planos futuros no mundo da música e da sua atual temporada no Brasil.

 

É preciso coragem para abrirmos mão daquilo que nos moldou o crescimento, Inês Bispo documentou isso na primeira pessoa. A necessidade de aprovação externa e de inclusão no ambiente competitivo do surf foram sufocando a vontade de se manter nesse meio e hoje consegue olhar para si como se estivesse a falar de outra Inês Bispo.

Teve duas opções diante de si: insistir numa luta inglória por algo que já não ia ao encontro da sua vontade ou readaptar-se. A jovem de 21 anos amadureceu e escolheu aquela que lhe pareceu favorável a longo prazo. Aprendeu a aceitar o divórcio com a competição e posteriormente a lidar com surpresa alheia perante a sua decisão.

É um nome do surf nacional e dificilmente cairá no esquecimento ou desaparecerá da memória daqueles que viram a ex-atleta da Costa da Caparica representar por duas vezes a Seleção Nacional, a primeira aos 15 anos no Equador e a segunda em 2016 nos Açores. Além de que o seu histórico de carreira não tem um ponto final aí, tendo conquistado vários títulos regionais, chegado a alcançar um 5º lugar na Liga Nacional (Liga Meo Surf) e deixado tantas outras pegadas internacionais como em Cabo Verde, Biscarrosse e Hossegor em Pro Juniores e QS. Hoje constrói também o seu nome na música.

Que não se estranhe a sua ausência nas águas que viram crescer o seu surf, na Costa da Caparica, isto porque manobra agora em território brasileiro onde está a passar uma temporada. Lugar esse que inspirou o seu segundo single “Praia do Rosa”, lançado em dezembro de 2021.

 

P: Já estiveste bem classificada em competição e inclusive representaste a seleção por duas vezes. Chegaste a uma fase em que quiseste pôr um travão. O que é que motivou isso?

R: Eu não acordei um dia e decidi ‘vou parar de competir’, fui-me ausentando dos campeonatos quando comecei a faculdade e quando não podia ir, apercebi-me de que me sentia aliviada. Parecia que eu tinha uma desculpa para não ir, não tinha de decidir não ir, tinha só uma coisa que não me permitia estar lá. Sempre cresci a achar que era aquilo que eu queria e talvez tenha sido durante tempos mas o que começou a acontecer foi que o meu coração dizia que não e a minha cabeça continuava a dizer: ‘Sim Inês, é sim, porque tu sempre achaste que era isto e vai continuar a ser porque se não for o que é que vai ser?’. Eu já não estava mais feliz.

 

P: Tu própria disseste que te forçavas a ir às competições. Porque levaste tanto tempo a assumir isso? A pressão dos outros de esperarem algo de ti também influenciou?

R: Eu nem sequer me apercebia que me estava a obrigar para veres o nível de consciência que eu tinha naquele momento. Hoje eu tenho essa clareza e vejo o quão dentro daquela bolha eu estava para não ser capaz de observar isso. O facto de eu deixar de competir ia deixar-me completamente desnorteada e ainda ia trazer comentários do género ‘a Inês deixou de surfar, já não compete, por isso, deixou de surfar’. Como isso mexia com a pessoa que sou, porque o surf faz parte de mim, era como se eu deixasse de ser quem era durante algum tempo e ficasse desfragmentada. Quem sou eu agora? Inconscientemente eu evitava isso, então ficava naquela obrigação porque tinha medo de me perder e de não saber quem era.

 

 

Foi precisamente graças a um comentário que eu ganhei clareza sobre não querer mais competir.

 

 

P: E esses comentários de que receavas verificaram-se?

R: Foi precisamente graças a um comentário que eu ganhei clareza sobre não querer mais competir. Recebi vários comentários ‘porquê? Que pena’; ‘mas tens tanto talento’. Mas houve um dia que me cruzei com uma pessoa na rua e ela disse-me ‘agora já não queres saber mais do surf, nunca mais te vejo’. Eu fui para casa a pensar naquilo. Como é que as pessoas acham que sabem da vida dos outros só porque não as vêem? Eu estava a surfar frequentemente mas como aquela pessoa não me via a surfar, achava que eu não ia. Isso acabou por me trazer um alivio porque pensei ‘do que é que serve eu querer mostrar que surfo todos os dias se estou a surfar diariamente, os outros não vêem e acham que eu não estou?’, além disso fez-me olhar para esse sentimento diretamente e aquilo que eu tinha medo de receber, que eram comentários desse estilo, eu fui confrontada com eles e o mundo não acabou. Por isso, aceitei que para mim já não fazia mais sentido e fiquei em paz comigo mesma.

 

Inês Bispo no mundial de júniores nos Açores em 2016

 

P: É facil um amor ao desporto passar a uma obrigação?

R: Os meus pais sempre me direcionaram muito para a performance e até os próprios treinadores por isso eu não me lembro de onde veio a minha busca pelo resultado. Eu acho que começou a existir muita comparação minha com os outros e a partir daí o amor pela competição começou a desvanecer. Eu queria ser falada da mesma forma do que os outros e procurava muito a aprovação externa, não só a nível de resultados competitivos mas também na parte social, dos media e no envolvimento do ambiente dos campeoantos. Não era só o resultado, era tudo o que a competição envolvia.

 

Os resultados refletiam a forma como eu me via

 

P: Ainda assim eras tida como uma grande esperança, nem isso serviu para te manter motivada?

R: Não serviu porque apesar disso nunca fui vista como uma top 3 nacional, por exemplo. Eu ambicionava sempre chegar ao topo onde via outros atletas como a Teresa Bonvalot e a Camila Kemp, só que internamente não me via capaz disso, sem ter essa consciência e, por isso, não conseguia alcançar. Os resultados refletiam a forma como eu me via, por mais que os outros me vissem como uma possível esperança. Estava sempre em busca daquilo que não estava no meu controlo. Aquilo que eu podia fazer era dar o meu melhor mas como não me focava nisso mas sim em coisas externas, nomeadamente ser falada e ser vista como a melhor, não conseguia chegar lá. Na altura não tinha essa consciência.

 

A partir do momento em que fui capaz de falar sobre o meu maior medo, comecei a ser mais eu mesma

 

Inês Bispo num WQS em Santa Cruz em 2016 | Fotografia de Laurent Masurel/WSL

 

 

P: Quem te segue no Instagram, consegue ver uma grande alteração entre o conteúdo que partilhavas antes e aquilo que partilhas agora. O surf influenciou a necessidade de procurares o auto-conhecimento?

R: Essa alteração no conteúdo iniciou quando tive a coragem de falar no Instagram sobre a minha desistência da competição. Senti como se tivesse tirado uma mochila das costas porque muitas vezes não mostrava quem era nas redes sociais com medo da desaprovação e a partir do momento em que fui capaz de falar sobre o meu maior medo, comecei a ser mais eu mesma. Não só no Instagram mas na vida e, consequentemente, começou a alterar o meu conteúdo. Comecei a partilhar mais sobre as minhas ideias e opiniões o que coincidiu com a minha ‘entrada’ no auto-conhecimento. Hoje eu tenho confiança e dá-me prazer partilhar com as pessoas novos conhecimentos, precisamente depois da minha experiência.

 

P: Como é que a música surgiu na tua vida e é disso que queres fazer carreira? Quais são as perspectivas futuras?

R: É engraçado porque tal como o surf, a música apareceu de um forma muito espontânea. Sempre vi o meu pai a surfar e quis aprender. Uma vez viu-o a tocar em casa e pedi-lhe para me ensinar uns acordes e também fiquei louca com aquilo. A partir do momento em que conheci o surf, fiquei viciada e não quis parar mais, com a música foi igual. Sempre pensei que ia ser só um hobbie até fazer um cover nos stories da banda brasileira Zaka e eles terem visto e sugerido uma colaboração. Aquilo que parecia ser em tom de brincadeira, acabou por se tornar real e lançamos o meu primeiro trabalho a “Para de fingir” [em março de 2021], mesmo com eles no Brasil e eu em Portugal. Depois surgiu a oportunidade de assinar com uma editora, a Loop Discos. Foi muito natural então comecei a ver portas na música. De qualquer forma o que eu ambiciono com a minha profissão, seja ela qual for, é mudar vidas e acredito que a música vai estar dentro desse propósito.

 

 Fotografia de Nanikas

 

P: Há músicas ao virar da esquina?

R: Eu tenho várias escritas mas ainda não têm data de lançamento e também tenho alguns projetos alinhavados com outros artistas mas ainda não temos datas. Mas espero brevemente poder entrar em mais detalhes sobre ambos. Sobretudo porque sinto que as minhas mensagens também podem ser transmitidas através da música.

 

P: Estás a passar uma temporada no Brasil. Como tem estado a ser e quais são as principais diferenças entre o ambiente de surf em Portugal e aí?

R: Está a ser ótimo. Terminei a faculdade em junho de 2021 e senti que estava a precisar de sair do meu ambiente. O Brasil foi a oportunidade perfeita para eu expandir e estou a conhecer-me muito. É a primeira temporada fora de casa e fora do país sem ninguém para me orientar. Quanto ao ambiente do surf de uma forma geral, eu vejo que em Portugal existe muito mais uma vida de aparências daquilo que é associado ao ‘ser surfista’. Sinto que aqui, pelo menos na região onde estou, em Santa Catarina, as pessoas vivem mais a essência do surf. Se querem surfar, arranjam uma forma mesmo com escassos recursos, é muito genuino. Em Portugal, é o pai que mete o filho a surfar e várias vezes nem é espontâneo. Além disso, com mais facilidade os surfistas são vistos e consequem patrocínios, é mais garantido. Aqui no Brasil não existe isso, há muitos talentos mas têm de lutar o dobro e juntar para fazer um nacional, quanto mais um WQS.

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