SURFISTA: ESPÉCIE DE ELITE terça-feira, 10 maio 2016 16:06

SURFISTA: ESPÉCIE DE ELITE

Quando a interligação da energia Mente/Corpo/Mar do surfista está em causa... 

 

Andrew Kidman é um talento australiano multifacetado. Surfista, músico, pintor, fotógrafo, shaper e realizador. O filme “The Glass Love”, realizado por ele em 2006, é um dos mais belos e originais filmes de surf que já vi. Não pela banda sonora extraordinária nem pela forma natural e pura como filma, mas pelo seu conteúdo e a sua narrativa.

 

O filme descreve primorosamente a passagem geracional de pai para filhos no surf. Através de Pat Curren, que faz e aperfeiçoa as pranchas para Tom e Joe, numa espécie de passagem de testemunho natural.

 

Steve Pezman, natural da Califórnia, editor da Surfer Magazine durante 20 anos e responsável do The Surfer’s Journal desde 1992, representa o estado de maturidade no surf, pela sua experiência e conhecimento, é um dos últimos puristas no surf, a par de Derek Hynd que acredita no minimalismo do surf onde o surf sem quilhas pode ser o renascimento do surf tradicional. Isto só para dar um exemplo desse seu lado purista.

 

Pezman é contra o surf nos Jogos Olímpicos. No filme ele relata uma conversa que teve com o Dr. Timothy Leary em 1976, um controverso psicólogo e filósofo norte-americano. Leary defendia que as drogas alucinógenas em doses controladas podiam ser terapêuticas e saudáveis para o ser humano. Ele próprio foi um consumidor de LSD. Richard Nixon, presidente americano nos anos 60, chegou mesmo a chamar a Leary de “o homem mais perigoso da América”.

 

Nessa entrevista, ele explica a Pezman que ser surfista é uma das formas mais equilibradas de existência na terra, a lição de ter consciência da nossa insignificância quando estamos no mar e sentimos o tão pequeno que somos num espaço de massa como o oceano.

 

Leary diz mesmo que não há posição mais consciente e viva do que um surfista, e dá o exemplo de quando estamos dentro dum tubo, uma espécie de passagem do tempo, a onda atrás a quebrar já foi, é o passado, e seguimos a olhar a saída do lip, onde está o futuro… mas sempre em conexão com o passado, que nos move para a frente e não nos deixa ir devagar sobre o risco de cairmos. Ele explica que esse é o verdadeiro instinto e não o instinto de pensar onde devemos estar que requer um pensamento planeado.

 

Diz também que, historicamente, os homens vivem em comunidade e constroem casas, escritórios, lojas e comércio à volta dos rios ou das montanhas numa espécie de falsa segurança. E quanto mais conseguem comprar ou consumir, mais bem sucedidos são e mais sucesso têm, mas Leary afirma que isso é uma falsa ideia e que os surfistas descobriram tudo isso através da sua liberdade.

 

 

Os surfistas vivem para esse momento de estar nas ondas e pretendem vivê-lo o máximo que puderem. Não é preciso mais nada para um surfista se sentir cheio e preenchido. Depois de surfar, o dia está ganho e existe uma realização interior e uma consciência verdadeira sobre a ligação da terra e o oceano.

 

Leary não tem dúvidas que isso é o máximo que o ser humano pode atingir e diz mesmo que se tu acreditas na riqueza dessa existência deves trabalhar e lutar para que os outros também a consigam. Isto está bem documentado no filme, através de Pat Curren que trabalha arduamente nas pranchas para os seus filhos poderem ter o privilégio de também viver essa plena existência, numa espécie de ordem social em que devemos ir à procura do equilíbrio e da harmonia do indivíduo com o ambiente e passar essa mensagem para os mais novos. Não devemos ir em busca da conquista onde quanto mais temos mais insatisfeitos ficamos, gerando um péssimo exemplo para as gerações mais novas. Leary alerta mesmo: com a comunidade do surf a crescer, mais obrigação temos de passar esse testemunho de bem estar, de liberdade, de qualidade de vida e de sermos melhores pessoas.

 

Esta entrevista, apesar de já ter sido dada há vários anos, é do mais atual que podíamos ter. Às páginas tantas, Leary fala também da libertação do surfista com a tecnologia e com as simbologias. Fala do desligar e apenas estar em contato com o oceano, que regenera a nossa mente, fortalecendo o nosso poder mental e individual, tornando-nos mais místicos, para não dizer espirituais, palavra que Leary odeia.

 

Com uma sensibilidade cósmica, dando como exemplo a perceção que os surfistas sentem nas influências das luas e nas marés, com um contato quase no infinito, a seguir a uma onda vem sempre outra, Leary fala da complexidade de como o código DNA constrói corpos e espécies em que o tempo é de extrema importância, estar no momento certo à hora certa, lembrando o “timing” do surfista no momento em que apanha uma onda, dominando a gravidade.

 

Às vezes, o mais difícil é explicar como o surfista, sendo inútil na sua produtividade, é uma espécie de elite. Não no sentido aristocrático, claro, mas pela sua liberdade capaz de deixar tudo, o trabalho, a família, os deveres e as obrigações quotidianas para poder desfrutar do momento no mar, esse tempo de prazer, sem preocupações, de forma saudável.

 

Só uma espécie de sucesso e independente, segundo Leary, tem esse privilégio. Ele chega a referenciar que o surfista é quase mesmo um mutante. A interligação da energia Mente/Corpo/Mar é o que ele mais aprecia no surf, pois é impossível estar a pensar noutra coisa quando estamos a surfar - tudo fica para trás e começamos a ser verdadeiramente nós próprios.

 

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Texto: Bernardo Seabra

 

 

 

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