'Boa rebeldia' - Crónica de João 'Flecha' Meneses
Para que não nos esqueçamos que o surf é adolescência pura.
Hoje, lembrei-me dos tempos de puto em que procurava um artesão de pranchas em fábrica de garagem, só para estar à conversa, para sentir aquele cheiro a resina e fibra de vidro que nos lembra ondas. Para ver de perto as mãos do mestre, o obstetra desta nossa amada, a prancha. Se o artesão for competente não lhe dará oportunidade para um pingo de adolescência. Será adulta ao primeiro toque de água.
Tenho duas pranchas que dormem juntas no escuro da minha sala e acordam com os primeiros raios de sol ou com a minha chamada para a praia, às vezes ainda de noite. Não discutem, não se zangam, não insistem para que as leve a surfar. São adultas! Não me chateiam com os “porquês”. Vão-se revezando à minha ordem, fazem uma boa equipa, esforçam-se por me agradar. Talvez por saberem que fazem parte da mobília da sala e não estão na arrecadação onde é comum estarem outras companheiras, são mais fiéis, mais maduras, mais eficazes. Mais mágicas.
Hoje, encontrei na água pequeninos surfistas adultos. Não gostei. Eram tão pequeninos e ao mesmo tempo tão adultos. Gosto de ver pranchas adultas com surfistas adolescentes, daqueles que questionam tudo! São criativos, rasgam as ondas com rebeldia, atacam os lips com espontaneidade e riem-se no intervalo dos sets. Gargalhadas sem filtros. Porque são putos! Gosto de ver uma prancha adulta tornar-se mágica nos pés de um puto. A junção perfeita!
O que tem em comum a bonita Alex Florence, mãe de três jovens talentosos surfistas, com as famílias Ho do Hawaii e os Young da Austrália? Talvez tenham a percepção de que a liberdade da adolescência em sintonia com a natureza possa criar seres humanos felizes.
Metas e treinos, autocolantes na prancha e os melhores agasalhos de borracha para as ondas frias do inverno. Bonitos óculos de sol e a roupa dos seus ídolos. Fins-de-semana em campeonatos e as primeiras viagens pelo mundo. Dêem-lhe isso tudo! E mais qualquer coisa. Mas não se esqueçam da prancha mágica. Com ela, o pequeno surfista adulto pode dar aso à sua adolescência. Errar, experimentar, gozar as ondas na sua plenitude, como casal de namorados que se entende nas suas diferenças. Ele é céu e ela é terra. Ele sonhador e ela nem tanto, adulta… mas compreende os seus sonhos e aplica magia no seu caminho.
E se o pequeno surfista, mesmo de mãos dadas com a prancha mágica e adulta, não mostrar sinais de rebeldia saudável e negar-se a sair de um mundo demasiado crescido, por favor, tirem-lhe as quilhas e sugiram que surfe como o génio Derek Hynd. Vai derrapar mais, muito mais. Vai sentir descontrolo, vai sentir-se adolescente... E ao aprender a dominar a instabilidade da sua prancha, sem perceber, está a tornar-se homem e surfista maduro.
Hoje, ao entrar na minha sala percebi que tal como a prancha a adolescência tem qualquer coisa de belo. E deixá-la passar sem a saborear, é esquecer o porquê do surf ter entrado nas nossas vidas.
João “Flecha” Meneses