Julgar o Julgamento Parte 2, por João Valente
Por um novo modelo de julgamento que valorize o surf e os surfistas em vez das estruturas que os acolhem.
O título que originalmente encabeçava estes artigos sobre julgamento de surf era “Destinado a Falhar”. A ideia era desenvolver uma argumentação que em lugar de contestar resultados isolados de campeonatos, pondo em causa vencedores e derrotados, demonstrasse que o próprio sistema de avaliação está tão equivocado nas suas premissas-base que esperar ver ali conceitos como justiça, verdade ou precisão não passaria de wishful thinking. Algo como esperar acertar no Euromilhões só porque gostávamos de ir à Lua com Elon Musk. No entanto, quer gostemos quer não, e apesar das falhas cometidas e reconhecidas injustiças, muito mais frequentemente do que o seu contrário os campeonatos de surf acabam por premiar os justos vencedores. Eventualmente poder-se-á apontar uma ou outra ocasião onde isso não terá acontecido, mas a margem de acertos é muito superior à dos erros, pelo que “Destinado a Falhar” pecaria por manifesto (e injusto, admita-se) exagero.
Fim de história, portanto? O sistema em vigor é o melhor que podemos fazer, portanto é engolir e não se fala mais no assunto? Longe disso. O modelo de realizar campeonatos em vigor, tal como as instituições que o regem, seja a WSL ou a ISA, é um pouco como a democracia segundo a famosa definição atribuída a Winston Churchill: “É a pior forma de governo, excetuando todas as outras.” Porém a certeza de ser o melhor sistema dentre os presentemente conhecidos e anteriormente testados não nos deve inibir de continuar a procurar formas de o aperfeiçoar e reduzir ao mínimo os inevitáveis erros e controvérsias como os que assistimos no rescaldo do evento realizado na piscina de Kelly Slater, hoje conhecida como Surf Ranch.
"O surf é o único dos desportos interpretativos que sintetiza todas as categorias de avaliação e respetivos critérios de julgamento numa única nota final."
A Founders Cup - WSL
CRITÉRIOS E CATEGORIAS
Na primeira parte deste artigo vimos como o surf é uma atividade não competitiva na sua essência. A natureza expressiva e espontânea dos movimentos e linhas que um surfista escolhe fazer num meio instável e em permanente metamorfose não obedece a nenhum critério objetivo. No ato de correr ondas, tudo é subjetividade e a única forma de contrariar esse caráter inerente é identificar e isolar elementos para serem avaliados segundo uma ordem de valores arbitrária. Entram em cena os famigerados e erroneamente designados “critérios de julgamento”. Na realidade tratam-se de categorias de avaliação: power, progressão, fluidez, variedade, compromisso (commitment), grau de dificuldade, risco, etc. Critério é a forma como são avaliadas.
Apesar do equívoco da designação, até aí estamos todos de acordo. Pondo de lado os ideários pseudo-filosóficos que levariam a premiar sorrisos em vez de desempenhos — “o melhor surfista é o que mais se diverte” e afins — a maioria de nós concorda na identificação de padrões de performance que levam a distinguir níveis de surf superiores e inferiores. Como também já vimos anteriormente, a perceção e identificação desses níveis põe a nossa atividade de eleição na família dos desportos interpretativos, onde também se encontram o nado sincronizado, a patinagem artística, o karaté (katas), os saltos ornamentais, o hipismo e tantos outros. Para elaboração destes artigos fui consultar os livros de regras de várias modalidades desse grupo, chegando a uma constatação: todos eles, tal como o surf, dividem o desempenho em diferentes categorias de avaliação sobre as quais, aqui sim, são aplicados os respetivos critérios de julgamento. No caso do surf, equivaleria a avaliar a categoria power segundo critérios como pressão ou deslocação de água, a variedade pelas diferentes abordagens de curvas e manobras, e por aí adiante. A grande, a enorme, diferença é que, até onde pude perceber, o surf é o único dos desportos interpretativos que sintetiza todas as categorias de avaliação e respetivos critérios de julgamento numa única nota final. E aqui é onde julgo haver espaço para reflexão e onde me parece ter faltado coragem ou vontade de inovação.
"Só por negligência, preguiça ou arrogância poder-se-á negar a urgência de uma discussão profunda sobre o julgamento do surf e sobre formas de o aperfeiçoar, dilatando a objetividade numa modalidade fatalmente subjetiva."
Griffin Colapinto - WSL
ELIMINADOS NA PRIMEIRA RONDA
O mais compreensível argumento contra a implementação de modelos de julgamento inspirados nos de outras modalidades interpretativas tem a ver com a natureza instável e com a dinâmica pouco previsível do surf. Como defesa serve, mas não é suficiente. E se no passado a justificação sustentava-se, atualmente não consigo encontrar outra razão para a ausência de quaisquer ensaios de sistemas diferentes que não a inércia, a fobia da mudança, a recusa do risco e a falta de comprometimento. Se os dirigentes do surf-competição fossem julgados segundo os seus próprios critérios, não passavam sequer a triagem do circuito regional do Cazaquistão.
A polémica em torno dos resultados do Surf Ranch Pro, na piscina de Lemoore, vieram a calhar para ilustrar o tema. Mas não fosse no Rancho, seria noutro sítio qualquer. A frequência de decisões contestadas não tem feito mais do que crescer ao longo dos últimos anos. Pela sua visibilidade — maior número de provas, melhores surfistas, plataforma de alcance superior, definição dos campeões do mundo, etc — a WSL congrega a maior parte dos ódios, mas o panorama na ISA é semelhante, para pior. Muito do ruído deve-se, sem dúvida, ao poder infecioso das redes sociais e ao comportamento primata de alguns comentadores de bancada. Porém, mesmo reconhecendo-se a natureza perniciosa destes ambientes, só por negligência, preguiça ou arrogância poder-se-á negar a urgência de uma discussão profunda sobre o julgamento do surf e sobre formas de o aperfeiçoar, dilatando a objetividade numa modalidade fatalmente subjetiva.
Eric Logan - CEO da WSL - Instagram de Eric
"Mais grave do que a ausência de explanações precisas e claras sobre o conteúdo de cada uma das categorias de avaliação do surf, é a insistência na síntese de tudo isso numa só nota."
Não vamos aqui abordar as especificidades desta ou daquela bateria. Discutir se o power, flow e linha de Ewing ou Colapinto se devem ou não sobrepor à inventividade e risco de Medina, Ítalo ou Toledo é passar ao lado da questão de fundo. O julgamento de surf não foi concebido para premiar desempenhos, mas para justificar a existência do sistema. O critério de julgamento, alicerce de todo o edifício desportivo, ocupa escassas linhas num livro de regras com mais de 100 páginas. Categorias abstratas como power, flow, controlo, risco, progressão e outros não são acompanhados de quaisquer tentativas de descodificação sobre os seus conteúdos e significados. Quem percebe, percebe, quem não percebe, percebesse. A multiplicidade de opiniões proferida no rescaldo de resultados controversos mostra que muito poucos, de facto, percebem.
Ethan Ewing com Mike Parsons - WSL
No entanto, mais grave do que a ausência de explanações precisas e claras sobre o conteúdo de cada uma das categorias de avaliação do surf, é a insistência na síntese de tudo isso numa só nota. Há alguns anos num grupo de Facebook que reunia jornalistas, ex-competidores e variados players internacionais, participei numa longa discussão sobre o tema. Por intuição e interesse, copiei e guardei as intervenções do antigo profissional australiano, Jody Perry. Divididas ao longo de vários comentários, seu discurso era uma extensa e intrigante diatribe antissistema que, por entre alguma indisfarçável amargura pessoal cuja origem me escapa, continha pontos dignos de reflexão por parte de mentes menos preguiçosas. Dizia ele, a propósito do critério: “Independentemente de ter sucesso ou fracasso no seu esforço para definir de forma precisa e completa o que é ‘bom surf’ (o que não acontece), o critério consegue seu objetivo de padronizar resultados. Por esse motivo, cria muito menos dores de cabeça nos funcionários, sendo essa a única razão — agravada pelo fato de ninguém ter procurado uma alternativa melhor — para a ênfase continuada e excessiva na fórmula.” É exatamente por isso que todos os resultados são justificáveis segundo o critério. É essa a razão de Eric Logan, CEO da WSL, ao vir a campo responder às questões levantadas por Medina e outros, preferir criticar a forma da manifestação a escrever uma única linha sobre a flutuação inexplicável das notas atribuídas ao longo do evento ou sobre a desorientação dos surfistas face ao que os juízes estavam a valorizar.
Italo Ferreira - WSL
"Concebido para ser o apogeu do produto vendido pela WSL, o evento do Rancho serve hoje de metáfora para incapacidade dos agentes do surf-competição procurarem soluções verdadeiramente criativas de pensar esse mesmo produto. "
O RANCHO DOS AFLITOS
Como bem notou Steve Shearer na sua resenha sobre o Surf Ranch Pro, desde que a piscina de Kelly Slater surgiu no mundo do surf, na Founders Cup em 2018, os níveis de performance só têm feito é decair. Mais conservadorismo, mais consistência, menos criatividade, menos risco e tímidas aparições da muito prometida e anunciada “progressão a níveis jamais vistos”. “Das 96 ondas surfadas na ronda de qualificação masculina — todas elas perfeitas previsíveis — somente seis foram pontuadas acima de 8 pontos”, contabilizou Shearer, recorrendo à implacável frieza da matemática.
Concebido para ser o apogeu do produto vendido pela WSL, o evento do Rancho serve hoje de metáfora para incapacidade dos agentes do surf-competição procurarem soluções verdadeiramente criativas de pensar esse mesmo produto. A previsibilidade das suas ondas é um campo aberto para a experimentação, no entanto, opta-se por levar para as suas águas clorificadas o mesmo sistema defeituoso e impreciso que há anos vigora no oceano. Que outro ambiente seria mais propício ao ensaio de formas de julgamento alternativos, onde as diferentes categorias de avaliação fossem pontuadas individualmente e somadas segundo diferentes pesos, por exemplo? Ou para se estabelecerem rondas distintas dedicadas a diferentes padrões de análise? Um Flow Round, um Progressive Round e um Tube-riding Round, somando depois os resultados obtidos em cada um? Quem sabe poderíamos ver surgir o embrião de um novo modelo de julgamento mais próximo dos utilizados nas demais modalidades interpretativas. Um método que de facto evidenciasse as várias categorias de avaliação ao contrário de as esconder sob um manto limitado, redutor, obscuro e concebido não para benefício dos surfistas, mas para o de administradores, juízes e demais funcionários do sistema, às custas do surf.
Fica o desafio...