Surf à Portuguesa - Uma crónica acerca do Pipe Masters feminino
...À hora de jantar a dizer aos meus filhos “Veem a nossa bandeirinha, ali na manga da lycra...."
*Por Gonçalo Santos
Não sei se faz parte da natureza humana ou é apenas uma característica da minha individualidade. Em qualquer caso, aquilo que digo, muitas vezes não é aquilo que faço. Por exemplo, acredito que os concursos e classificações que inventamos constantemente, não têm qualquer objetividade além da importância que nós mesmos lhes damos. Também penso que o resultado de dividir o planeta em nações, produz divisões puramente fictícias e que não deixam por isso de servir como justificação para injustiças com consequências reais. Mas depois, vejo que começou o Pipe Masters, a bateria da Teresa Bonvalot está na água e, de repente, dou por mim com o computador ligado durante a hora de jantar e a dizer aos meus filhos “Veem a nossa bandeirinha, ali na manga da lycra?"
O certo é que, apesar de toda a minha racionalidade e convicções idealistas, foi com emoção que acompanhei o desempenho da Teresa neste campeonato. Ela entrou logo na primeira bateria do evento, tendo pela frente Caroline Marks e Tatiana Weston-Webb. Duas surfistas com vários anos de experiência a este nível e também mais habituadas a competir nas ondas havaianas. Talvez se possa dizer que, mais que qualquer outra coisa, foram estas as diferenças que se refletiram no resultado final. A Teresa terminou a bateria em terceiro lugar, com poucas ondas surfadas e pontuações relativamente baixas.
Ao tratar-se da primeira ronda, esse resultado não teve grandes consequências. As eliminações do campeonato só se tornaram efetivas a partir da segunda fase e, na sua bateria seguinte, a história foi outra. Desta vez, a Teresa competia contra Isabella Nichols e Courtney Conlogue. Parece ter havido uma mudança na sua atitude, pois ela manteve-se mais ativa ao longo da bateria, acabando por vencer de maneira convincente. Além da passagem aos oitavos de final, esta vitória permitiu-lhe passar pela área de entrevistas e deixar algumas palavras acerca da sua situação atual e outros resultados recentes.
Relembre-se que o último campeonato da Challenger Series (CS) de 2022 teve lugar no passado mês de Dezembro, em Haleiwa. Nesse evento, a Teresa avançou até à final e acabou na terceira posição. Só por si, este foi um excelente resultado. Contudo, a vencedora do evento foi a australiana Sophie McCulloch que, com o seu resultado, acabou por igualar em pontos a Teresa no ranking de qualificação, naquela que era a última posição a permitir o acesso ao Championship Tour (CT). O desempate entre ambas teve que ser feito fora de água, comparando a relação de vitórias e derrotas ao longo do ano competitivo. Infelizmente, no somatório final, foi a australiana quem saiu a ganhar.
Imagino que andar no circuito da alta competição, implica uma sucessão de desafios quotidianos. Alguns farão parte da rotina do surf mas noutros será necessário encontrar, não se sabe onde, uns restos de vontade, energia e coragem para enfrentar obstáculos que, nesses momentos, parecem intransponíveis. Com isto em mente, recordo os momentos finais do campeonato de Haleiwa. Em particular, recordo como depois de um ano desta dinâmica implacável e com o objectivo principal falhado por tão pouco, a Teresa não saiu da água antes de saudar a sua principal adversária pela vitória. Se é verdade que o carácter não se revela nas vitórias, mas sim na maneira como lidamos com as derrotas, com esse comportamento ela demonstrou ser uma vencedora no campeonato que mais importa.
De regresso às competições terrestres, na terceira ronda, Tatiana Weston-Webb voltou a ser a adversária a derrotar. Apesar de um bom começo e de ter apanhado várias ondas ao longo da bateria, a vitória acabou por não sorrir à Teresa. Esta derrota também determinou a sua eliminação do campeonato, na nona posição. Não me cabe a mim avaliar este resultado, mas o certo é que se trata da primeira participação feminina portuguesa numa prova do CT e, ainda por cima, em Pipeline. Ou seja, na onda mais mítica do planeta. Portanto, à parte das consequências que possa ter para o futuro desportivo da Teresa, a sua participação no Pipe Masters não deixa de ser um marco para o surf português.
A próxima etapa do CT será em Sunset Beach, a partir de 12 de Fevereiro e aqui também vamos poder acompanhar o seu desempenho no campeonato. Ambas participações só se tornaram possíveis graças a uma vaga de última hora. A surfista Johanne Defay teve o infortúnio de sofrer uma lesão antes do início da temporada e, consequentemente, viu-se obrigada a cancelar a sua presença nas etapas havaianas. Quer isto dizer que, à data, não há certezas acerca de mais oportunidades para participar noutras etapas do CT em 2023. Por outro lado, é natural que estas experiências ao mais alto nível lhe venham a dar a motivação necessária para voltar à luta na CS e, esperamos, conseguir a qualificação para a temporada de 2024 do CT.
Mas não nos adiantemos demasiado. À data que escrevo, o Pipe Master ainda está a decorrer. E em qualquer caso, não faz muito sentido especular além do momento presente. Soa a citação New Age, mas não deixa de ser verdade. Quantas coisas podem acontecer daqui até ao final da temporada do CS? Ou mesmo, daqui ao final do dia. Quantas voltas pode uma vida dar até lá? À parte, parece difícil pensar num sítio melhor para uma surfista existir na fugacidade do presente, que uma ilha tropical no meio do Oceano Pacífico e com um quiver à medida da ocasião.
Como disse, acredito que as histórias de vencedores e vencidos que contamos uns aos outros, não são mais do que isso. Nomeadamente, histórias. E bem sei que o português é tão bom ou tão mau como o congolês ou o neozelandês. Que o passado podia ter sido diferente e os nossos nomes e fronteiras serem outros. Enfim, sei que não foi mais do que o acaso cósmico que determinou que íamos ser o que somos e habitar este cantinho que chamamos Portugal. Ainda assim e apesar de todas as contradições inerentes, quando chegar o momento, não vou poder deixar de ter outra vez o computador ligado à hora de jantar, para torcer por ver a bandeirinha na lycra da Teresa Bonvalot a deslizar sobre as ondas de Sunset.