Quando é que o surf deixa de ser estimulante?
Se temos períodos em que o surf deixa de fazer sentido. O que nos leva sempre novamente de volta?
Dias atrás, encontrei um amigo, o António dentro de água. O mar não estava grande, mas havia sol, o vento soprava offshore, as linhas estavam perfeitas, e as ondas eram compridas. Diria mesmo, vendo aquilo que outros surfistas estavam a fazer, que algumas das esquerdas eram mesmo incríveis. À exceção talvez de um horrível amontoado de alforrecas na borda de água, é possível até que alguém dissesse que estava um dia perfeito.
Apesar disso, António confessava-me que estava num dia não. “Hoje pareço que faço tudo mal! Se a onda está ali, eu estou aqui, se a onde vem para aqui estou ali, se a apanho, já está a fechar, se tento um pouco mais atrás, não a consigo apanhar.”
Quem nunca teve um dia destes?
Há dias em que nada sai bem. Em que não estamos sincronizados com enigmático ritmo cósmico do oceano. Em que não temos totalmente presentes as nossas melhores capacidades. Estes dias são no mínimo frustrantes, sobretudo quando o mar está bom e vemos boas ondas à nossa volta.
O surf, aliás como em tudo na vida, nem sempre é «sha la la». Então quando é que o surf deixa de ser um prazer?
Quantas vezes não temos um encontro de terceiro grau com aquele surfista que é capaz de arruinar uma surfada para toda a gente? Que te dropina, e a seguir ainda tenta argumentar que era uma direita, ou que apanhou antes aquela onda?
Quantas vezes não vemos tanto crowd à nossa volta, que nem conseguimos apanhar uma onda de jeito?
Ou ainda, quantas vezes o mar não está uma «fechadeira», e acabamos por não conseguir surfar verdadeiramente uma única onda?
E o pior: é quando isto tudo se junta!
Outro amigo, o João, praticamente sempre que apanha uma onda, que não se apresenta exemplar, basicamente baixa os ombros, e atira com os braços, num gesto de desistência e frustração. Muitas vezes o faz quando tem precisamente a secção ideal mesmo à sua frente.
Posso vos acrescentar ainda uma outra história: em 2018, depois de uma vida inteira a sonhar com isso, tive finalmente a oportunidade de ir às Maldivas. Foi, à falta de melhor expressão, absolutamente soberbo. Ondas perfeitas durante 8 dias, esquerdas e direitas, água quente, clima tropical, ilha paradisíaca, e um bom grupo de amigos. A cada onda que apanhava a cada manobra, eu sentia-me o John John. Sejamos sinceros, não há, para o surf, nada melhor que esta experiência.
Foi o pináculo, foi atingir o cume da minha montanha dos sonhos!
O problema de se voar tão alto, é que depois já não existe mais nada para onde ir a não ser para baixo.
Assim, quando voltei das Maldivas, tive aquela que chamo a minha primeira depressão de surf. Uma frustração enorme tomou conta de mim. Água fria? Meu deus, que pesadelo. Vestir um fato de surf? Um exercício de tortura. As minhas pranchas? Pareciam dois tijolos! Ora aqui está algo curioso, porque é que a mesma prancha tem uma performance completamente diferente entre as Maldivas e Portugal? Mas voltando às minhas irritantes lamúrias, o crowd, as correntes, o vento, tudo, mas tudo me provocava exasperação. E durante uns tempos, perdi mesmo a vontade de surfar. Nunca me tinha acontecido na vida. Durante mais de 20 anos, já passei por muita coisa, mas perder aquela vontade nunca.
E hoje, estas queixas parecem ainda mais ridículas quando me apercebo o quão afortunados somos. Existem muito poucos sítios no mundo, com a qualidade a diversidade e a consistência de ondas, como este pedaço de costa que fica entre a fonte da telha e o pico da mota. Isto falando apenas da zona de Lisboa. E não só não temos tubarões, como apesar de todas as nossas queixas, é ainda possível, de uma forma de outra, com mais ou menos engenho, fugir ao crowd. Algo que por exemplo é impossível na Califórnia, na Gold Coast, ou no Rio de Janeiro.
Mas então, se todas estas coisas acontecem, se temos momentos que só nos apetece é partir tudo. Dias em que não apanhamos uma única onda. Se temos momentos em que nada corre bem. Em que voltamos com mais stress do que aquele que a nossa vida já nos traz. Se temos períodos em que o surf deixa de fazer sentido. O que nos leva sempre novamente de volta?
No surf não há garantias de nada. Não há sequer garantias, que vamos apanhar uma só onda.
E ainda assim, cá estamos nós, dia após dia, após dia, a voltar ao eterno apelo. A construir novamente os nossos sonhos. A apaixonar-nos uma, e outra, e ainda outra vez, sempre pela mesma coisa.
Sabemos que, por pior que as coisas estejam, há sempre uma onda melhor à nossa espera lá à frente.
Não é, por isso, o surf uma analogia perfeita da vida?
*Por Alexandre Bettencourt