"O nível profissional do surf é todo feito de atletas, sem personalidade” - Christian Fletcher
Christian Fletcher e o aerial como sinal de anti-conformismo e anti-competição....
Por Pedro Quadros
Hoje em dia poucos se recordam de que houve um tempo em que o aerial não era apenas mais uma manobra, mas um sinal de anti-conformismo anti-competitivo. E a bandeira desse movimento era Christian Fletcher.
Já atualmente pode-se dizer que o aerial é tão praticado no surf competitivo que pode ser vista como sinal de conformismo, pelo menos no que respeita ao julgamento. Vejamos : A primeira nota 10 no World Tour deste ano foi obtida pelo Griffin Colapinto, em Peniche, graças a um aerial reverse; quando a etapa anterior do Tour, em Pipeline (Hawaii), registou ondas e desempenhos considerados por muitos como dos melhores dos últimos 15/20 anos nessa praia icónica para o mundo do surf.
Ao contrário de que este anúncio de 1989 sugeria, a vitória do Christian naquele evento foi conseguido com um surf conservador, de snaps e floaters
Nem se lembra de quando começou a fazer surf,
pois com um ano já o Pai lhe tinha construído a primeira prancha
Nascido em 1970 no Hawaii, transplantado para a California com quatro anos, nem se lembra de quando começou a fazer surf, pois com um ano já o Pai lhe tinha construído a primeira prancha. Oriundo de uma família solidamente implantada no mundo do surf : o Pai, Herbie Fletcher, foi finalista dos campeonatos do mundo de 1966, pioneiro de Pipeline nos anos 60 e do tow-in ainda nos anos 80 (em Pipeline !). Manteve a “chama” do longboarrd, mesmo quando este tinha deixado de estar em voga; Os avós foram pioneiros do surf em Sunset Beach ainda nos anos 50; a tia, Joyce Hoffman, foi duas vezes campeã do mundo, em 1965 e 1966. O irmão, mais novo, Nathan, é um dos mais ousados surfistas de ondas grandes da actualidade.
Christian a dar os primeiros passos no skate, às mãos do Pai, Herbie.
Por volta de meados dos anos 70, havia no sul da California uma dinâmica cultura cruzada entre o surf e o skate,
em que os surfistas pretendiam replicar no skate as manobras do surf
Tão cedo começou a fazer surf como skate. Por volta de meados dos anos 70, havia no sul da California uma dinâmica cultura cruzada entre o surf e o skate, em que os surfistas pretendiam replicar no skate as manobras do surf, nomeadamente snaps e roller-costers (e até tubos).
Fruto de circunstâncias muito especiais – o desenvolvimento de uma sub-cultura adolescente no sul da California e a oportunidade de haver muitas piscinas vazias de água devido a um período de seca prolongada naquela zona, que passaram a servir de excelentes “bowls” – , o skate evolui para as manobras aéreas, na medida em que skaters (como Tony Alva e Christian Hosoi) iam subindo cada vez mais nas paredes das piscinas até ultrapassarem o topo das piscinas, elevando-se no ar. Desenvolve-se uma nova faceta do cruzamento entre surf e skate, mas agora eram os surfistas que pretendiam replicar no surf as manobras aéreas que praticavam no skate.
Christian Fletcher a inspirar-se no Christian Hosoi. Foto : Art Brewer
“Eu quero surfar na minha prancha de skate e fazer skate na minha prancha de surf.
Na prancha de skate eu coloco mais estilo de surfista, e na prancha de surf eu tenho mais estilo de skater”
Movido pela criatividade e anti-conformismo, Christian terá sido o primeiro surfista a conseguir consistentemente aerial’s funcionais em ondas : ganhava velocidade, estendia os snaps e off-the-lips de tal modo que levantava voo, separando-se da onda, aterrando finalmente com sucesso. Como afirmava numa entrevista da altura : “Eu quero surfar na minha prancha de skate e fazer skate na minha prancha de surf. Na prancha de skate eu coloco mais estilo de surfista, e na prancha de surf eu tenho mais estilo de skater”.
Evolução ou revolução ?
"Toda a gente surfa da mesma maneira. Gajos apenas andam de rail para rail, abanando os rabos e surfam as ondas até à beira da areia.
Eu surfo a onda enquanto esta tiver parede e força, a seguir saio”
Morando no sul da California, na altura o centro mediático e empresarial do surf, Christian começa a chamar e a atrair atenções, pois complementava os seus desempenhos técnicos com uma postura vistosa e irreverente. Não se inibia de criticar aberta e agressivamente os padrões do surf competitivo da altura e de afirmar publicamente recusar-se a competir : “Toda a gente surfa da mesma maneira. Gajos apenas andam de rail para rail, abanando os rabos e surfando as ondas até à beira da areia. Eu surfo a onda enquanto esta tiver parede e força, a seguir saio”.
Esta recusa da competição fez do Christian o pioneiro do “free surfing” , apenas sustentado em patrocínios, como caminho viável para um surfista poder viver do seu surf sem ser obrigado a competir. Ter em atenção que nesta altura, finais dos anos 80, ainda havia no mundo do surf (principalmente na California) uma corrente muito forte que considerava a competição (e o profissionalismo) como corrupções da real e pura alma do surf (aliás, esta corrente ainda hoje persiste, embora discreta e abafada).
Christian Fletcher, Trestles, fatos vistosos e pranchas flamejantes
O aparente paradoxo da combinação entre rebeldia
e o flagrante comercialismo da promoção de marcas
Rapidamente torna-se num dos surfistas mais reconhecidos e populares, muito graças à sua apresentação com cabelos compridos ou com cortes à moicano, tatuagens (na altura, muito mais exclusivas do que hoje), fatos com cores berrantes, pranchas com decorações flamejantes. Tudo sob uma banda sonora de heavy metal e punk rock.
Outro veículo de promoção foi a série de filmes Wave Warrior, realizada pelo Pai, Herbie, grandes sucessos na altura e hoje clássicos da filmografia surfista. Um ponto muito interessante é o aparente paradoxo da combinação entre rebeldia e o flagrante comercialismo da promoção de marcas como a Astrodeck, do próprio Herbie, a primeira marca de decks para pranchas de surf, que durante muito tempo dominou este segmento. Mais abaixo ver o link para o quarto filme da série, o Wave Warriors IV.
Capa da revista Surfer de Dezembro 1988.
Em 1989, um grupo de surfistas profissionais publica uma carta aberta na revista Surfer em que afirmavam que imagens falsas estavam a ser criadas à volta de surfistas de segunda categoria
(embora não nomeassem o Christian, toda a gente percebia quem era o alvo), em detrimento dos surfistas melhor colocados nas competições.
Esta abordagem começa a atrair as atenções dos meios especializados, que lhe conferem uma crescente exposição. Tanta que, em 1989, um grupo de surfistas profissionais liderados pelo Jeff Booth, e que incluía os campeões do mundo Barton Lynch, Damien Hardman e Martin Potter*, a publicar uma carta aberta na revista Surfer - aquela com maior tiragem e influência -, em que afirmavam que imagens falsas estavam a ser criadas à volta de surfistas de segunda categoria (embora não nomeassem o Christian, toda a gente percebia quem era o alvo), em detrimento dos surfistas melhor colocados nas competições, argumentando que o valor de mercado de um surfista profissional se baseava no volume de cobertura que este conseguia obter nas revistas especializadas.
*Curiosamente, Tom Curren (campeão do mundo 1985 e 1986) não a subscreveu
Por coincidência (ou não), na mesma altura é realizado o 1989 Body Glove Surfbout Lower Trestles, etapa do circuito da Professional Surfing Association of America (PSAA), circuito exclusivo a norte-americanos. Esta prova tinha a particularidade de oferecer a maior premiação até então para o primeiro lugar de uma competição de surf, um pouco mais de 31.000 US$. Aproveitando morar perto de Trestles, em Capistrano Beach, Christian decide participar, e acaba por vencê-lo recorrendo a um surf mais conservador, feio mas eficaz, de floaters e snaps em backside. Na entrevista pós-vitória, afirma que se tinha preparado para esta competição praticando skate.
O eterno rebelde. Foto : Nate Lawrence
“O surf agora é um monte de atletas (jocks).
O nível profissional do surf é todo feito de atletas, sem personalidades”
Depois desta vitória, regressou ao “free-surfing”, de que vive ainda hoje, competindo apenas esporadicamente em eventos especiais. Durante os anos 90 criou a sua própria marca de pranchas e roupa, que acabou por falir, muito devido ao modo excessivo como vivia, com afirmações e posturas agressivas e polémicas, alimentadas por abusos de álcool e drogas (marijuana e psicadélicos).
Actualmente, com mais de cinquenta anos, Pai do Greyson (um promissor skatista profissional) , e tendo abandonado as drogas, mantem ainda hoje a sua postura rebelde e agressiva, anti-competição, atraindo a atenção e fascínio de muitos com afirmações como esta, : “O surf agora é um monte de atletas (jocks). O nível profissional do surf é todo feito de atletas, sem personalidades*”
*Occ-Cast, episódio 30, 2018. Um dos mais populares desta série de entrevistas, apresentada pelo Mark Occhilupo. Ver abaixo.
Filme Wave Warriors IV, de 1989. Christian Fletcher no auge :
Episódio 30 do Occ-Cast, 2018 :