Nó de água - Requiem por um Visionário
Por João Valente
Com o falecimento do génio informático, Mano Ziul, o surf perde aquele que terá sido o mais importante personagem dos últimos quarenta anos na configuração do surf de competição tal como o conhecemos hoje em dia.
Nunca gostei do termo Brazilian Storm. Primeiro, porque a transformação do paradigma dos vencedores de títulos mundiais de surf e da composição do ranking internacional trazida pelos brasileiros está mais para a perenidade de uma alteração climática do que para algo tão passageiro como uma borrasca. Depois, porque a tempestade se associa a ideia de destruição, e tanto ao nível da evolução técnica como da diversidade cultural e avanço do surf de competição como um todo, o aumento da importância participativa de outros países, com o Brasil à cabeça, tem sido um processo de construção e não de estrago. Aquilo que se convencionou chamar de tempestade, representa, na verdade, uma mudança muito positiva na composição geral do surf profissional.
No entanto, compreende-se o tormentoso epíteto quando se recua no tempo, recordando a devastadora entrada em cena de Gabriel Medina, seguida das réplicas deixadas por Adriano de Souza e Ítalo Ferreira, além da quase imediata metamorfose do top 10 mundial, que passou a ter verde e amarelo onde antes imperavam as tonalidades red, white and blue. Acontece que, muitos anos antes de Gabe & Co., tinha ocorrido uma investida de carimbo brasileiro no circuito profissional de surf, cujos impactos foram ainda mais profundos, transformadores e duradouros do que qualquer geração de surfistas poderá jamais ambicionar. E esse momento definidor do surf como desporto — não só a nível profissional, mas na própria configuração da atividade como prática desportiva — tinha a assinatura de alguém que nos deixou esta semana: Ziul Andueza, ou, como era conhecido, Mano Ziul, o génio informático, o visionário digital, o mago fazedor de chuva do surf-competição.
"E foi assim, com uma bejeca como prémio,
que teve início a maior revolução ocorrida no surf de competição
desde a introdução do formato man-on-man por Peter Drouyn nos anos 70."
Se a expressão unsung hero/herói desconhecido faz algum sentido aplicada ao surf, dificilmente alguém lhe dará corpo como este carioca de gema, longboarder de coração e nerd dos computadores que nos anos 1980 tinha uma pequena loja de produtos informáticos com o já seu sócio, Celso Alves — “o Mano era o feiticeiro dos computadores, eu não percebia nada do assunto”, diria Celso numa entrevista em 2020. Um dia, em conversa com um amigo que fazia a tabulação dos campeonatos da Associação de Surf de Niterói, onde competia na categoria de longboard, Mano achou que não seria demasiado complicado desenvolver um programa que fizesse o trabalho, até então manual, de listagem e contabilização das ondas disputadas ao longo de um heat. “Ficamos naquela conversa de dá-não-dá, até que apostei uma cerveja em como conseguia e fui trabalhar”, contou numa entrevista ao hoje inativo canal de YouTube, As Séries Fecham. E foi assim, com uma bejeca como prémio, que teve início a maior revolução ocorrida no surf de competição desde a introdução do formato man-on-man por Peter Drouyn nos anos 70.
Depois da primeira e bem-sucedida experiência numa prova do circuito regional de Niterói, a evolução seria meteórica. Sempre um mestre na arte de fazer chover no deserto, através de um acordo com uma fábrica de equipamentos eletrónicos, Mano fintou o alto custo dos terminais numéricos usados no sistema bancário, adaptou o programa que tinha criado para funcionar em conexão com os terminais fornecidos aos cinco juízes e estava criado o contexto para a revolução que se avizinhava.
As pontuações instantâneas foram uma transformação
fundamental na forma como os heats eram surfados, permitindo aos surfistas
um nível de abordagem estratégica inédito a todos os níveis.
É difícil para um surfista de competição, ou mesmo meros espectadores crescidos na era digital, avaliarem o impacto do acesso imediato às notas e situação de um heat por parte dos competidores. As pontuações instantâneas foram uma transformação fundamental na forma como os heats eram surfados, permitindo aos surfistas um nível de abordagem estratégica inédito a todos os níveis. Antes disso, os surfistas raramente sabiam a sua posição ao longo de um heat, ou sequer o necessário para a alterar. Esse elemento mudou toda a dinâmica do desporto. Citado por um site australiano, o antigo Tour Manager, e analista de estatísticas, Al Hunt, resumiu assim a mudança: “Sem pontuações instantâneas e conhecimento de prioridade, o surf profissional ainda estaria na idade das trevas.”
Se a entrada nas competições brasileiras foi pacífica, já a imposição do sistema, entretanto patenteado pela empresa Beach Byte, de Mano e Celso, na esfera do surf internacional sofreu alguns percalços. Tendo observado o sistema em funcionamento pela primeira vez em 1986, no Hang Loose Pro, de Florianópolis, só dois anos mais tarde, durante o Sundek Classic, em Ubatuba, é que o mesmo foi validado. A aprovação foi tal que, apesar de originário de um país insignificante na altura, sem surfistas de topo, a empresa brasileira foi contratada. Além da pontuação instantânea, o sistema Beach Byte, entretanto revisto e melhorado, tanto por exigências da própria ASP como por obra do engenho de Mano, também organizava os heats, calculava rankings, e disponibilizava até um message board, anos antes destes se tornarem corriqueiros.
Em 1989, a pequena empresa brasileira seria responsável por tratar das pontuações em todas as etapas do circuito. A primeira foi o célebre Op Pro, em Huntington Beach, já então o maior campeonato do mundo. No início, a ASP impôs a presença de fiscais para analisar as notas dadas no sistema, mas comprovado o funcionamento do mesmo, os fiscais foram logo dispensados. Também houve tentativas por parte de outros programadores se atravessarem no caminho da Beach Byte, incluindo a gigante de tecnologia Toshiba, que procurou, sem sucesso, desmoralizar os brasileiros, com a situação mais caricata a ter lugar nas etapas seguintes, em solo europeu, com o inevitável chauvinismo francês como protagonista. Logo à chegada a Lacanau , viu-se que até o clima estava contra os brasileiros. Numa confirmação de que praia definitivamente não é sítio para computadores, a vila francesa foi acometida por um titânico temporal. “Houve juízes que abandonaram até a caneta”, contou Mano na citada entrevista ao As Séries Fecham. “Tivemos que evacuar um palanque de três andares. O Celso atirava o computador lá de cima e eu agarrava cá em baixo a saía a correr para tentar salvar o equipamento.”
“em Lacanau, um francês estava por ali, sempre de olho. Ele descia e voltava, descia e voltava.
(...) tinha um papel onde tirava notas de todo o nosso processo (...)
Cheguei por trás dele (...) disse: ‘Cai fora, senão vou te rachê ao meio!’"
No entanto, ainda havia mais por vir. Durante o campeonato, Mano reparou num francês a espreitar por detrás da parede onde a Beach Byte funcionava. Havia rumores de que os franceses tinham desenvolvido um sistema de pontuações e estariam a impôr a utilização do mesmo à ASP, fazendo acordos com os promotores das provas seguintes, em Biarritz e Hossegor. Segundo Mano “em Lacanau, um francês estava por ali, sempre de olho. Ele descia e voltava, descia e voltava. Quando fui ver melhor o que ele estava a fazer, reparei que tinha um papel onde tirava notas de todo o nosso processo, de todo o sistema. Cheguei por trás dele, meti-lhe o dedo no ombro e no meu francês rachado disse ‘Cai fora, senão vou te rachê ao meio!’ Teve que vir o Al Hunt separar a confusão e tudo. Depois acabei por ficar muito amigo dele, mas na época foi tenso!”
Como previsto, no campeonato seguinte, em Biarritz, a equipa francesa substituiu a Beach Byte. No entanto, a meio do campeonato, o sistema sofreu um crash enorme. “Quase houve porrada”, contou Mano no As Séries Fecham. “Foi no heat do Robbie Page e alguém errou na altura de inserir a pontuação. Então tiveram de voltar para trás todos os heats do round, ia ser preciso repetir heats, uma confusão desgraçada! O resultado foi a contratação definitiva da Beach Byte para tratar do assunto.”
Com a aprovação definitiva do sistema Beach Byte, a ASP contratou Mano para a posição de Analista do Sistema de Pontuações. Porém, com o surf profissional a depender cada vez mais das chamadas novas tecnologias, acabou por assumir o posto de CTO (Chief Technology Officer), onde pôde dar largas à imaginação, entretanto potenciada pela afirmação da Internet como novo plano de circulação de informação. A Tinta Invisível, uma empresa sediada em Portugal que tinha José Luís Andueza, irmão de Mano, como sócio, desenhou o site da ASP e logo as pontuações passaram a ser transmitidas online, algo revolucionário num mundo onde o cúmulo da atualidade era receber os faxes diários emitidos pela entidade. Pouco tempo depois, o crescimento da largura de banda permitiu que as notas das ondas fossem acompanhadas pelo áudio dos relatos e aos internautas era dada a possibilidade de interação com os comentadores através de chat. Até que em 1997 deu-se o grande passo que mais uma vez transformou a cara do desporto: a transmissão em direto através de live streaming, onde Portugal, como já havia acontecido na estreia dos lives de áudio, voltou a ser palco da primeira experiência.
Mano Ziul e Celso Alves, por Gabriel Pierin
Naqueles primeiros tempos de internet, vale recordar, havia poucos hubs por onde passavam as linhas de conexão, e Portugal, pela sua posição geográfica, era um deles, pois os cabos atlânticos tinham cá o seu ponto de chegada. Assim, após uma coincidência que fez com que Mano encontrasse um brasileiro como maior responsável da principal empresa que então fazia transmissões online, a Real Networks (mais tarde Real Media), o sistema de streaming foi posto à prova durante o WCT da Praia Grande, o tal onde Ruben Gonzalez derrotou Kelly Slater. O surf tornara-se no primeiro desporto a nível mundial a transmitir online os seus campeonatos. Uma vez, à conversa sobre o pioneirismo do nosso desporto nessa área e a elogiar a qualidade crescente das transmissões, Mano, que tinha um humor ao nível da sua resolução em resolver problemas — diz-se que um dia usou um micro-ondas para consertar um problema no webcast — teve uma das suas das suas tiradas que nunca esquecerei: “Agradece à indústria da pornografia! Ninguém investe tanto na tecnologia de streaming quanto os sites de sacanagem.” Fica aqui a referência e um agradecimento aos onanistas deste mundo.
Enfim, esta é uma versão muito curta e incompleta — nem sequer mencionamos as mil e uma tropelias para instalar complexos sistemas eletrónicos em ilhas remotas ou praias inóspitas, ou o desenvolvimento dos relógios que hoje dão aos surfistas, em tempo real, as suas notas, algo de que Mano já falava há pelo menos 10 anos — deste personagem incontornável da nossa história que, mesmo sendo reconhecido por todos os envolvidos, nunca usufruiu de protagonismo à medida da sua importância. Provavelmente também não o desejaria. Para alguém que se sentia verdadeiramente realizado no exercer do seu trabalho, os holofotes da fama pouco diziam. A esse nível, provavelmente, bastava-lhe o caso daquele diretor de prova japonês que a ele se dirigia como Mr. To-The-Tower porque passava a vida a ouvir os speakers a chamarem Mano to the tower, julgando ser esse o seu apelido.
No passado dia 15 de Junho, depois de luta prolongada contra um tumor no cérebro, Mano foi chamado uma última vez. Mas a torre à qual este brasileiro sorridente, bem-disposto, amante de uma boa mesa — uma das razões que fazia de Portugal uma das suas paragens preferidas do tour — e visionário como poucos ascendeu, não tem escadaria de regresso. Descanse em paz, Mano Ziul. Que a memória do teu contributo para este desporto nunca seja esquecida.