O direito de cair
O que o primeiro CT feminino em Pipeline tem a ver com o wipeout da Keala Kennelly?
Crónica por Maria Kopke.
O CT 2022 vai ter a sua primeira etapa entre 29 de Janeiro e 10 de Fevereiro, e vai ser o primeiro ano do circuito em que homens e mulheres vão competir no mesmo número de etapas, nas mesmas datas, nos mesmos locais. Entre outras coisas, isto quer dizer que esta etapa inaugural será o primeiro CT feminino em Pipeline.
É um momento entusiasmante para o mundo do surf, e para todas as mulheres que, como eu, se alegram a ver passos dados a caminho da igualdade, em qualquer que seja a área. Mas houve uma situação que desafiou, inesperadamente, o meu entusiasmo: um wipeout da Keala Kennelly em Jaws no sábado passado.
Foto: instagram @kealakennelly
Parece um pouco absurdo dizer que a queda de uma surfista que não está no CT, numa onda que não recebe nenhuma das etapas, influenciou a minha opinião sobre a estreia das mulheres em Pipeline. Mas a verdadeira razão do meu desânimo não foi a queda da Keala por si só, e sim a secção de comentários no vídeo que documenta essa queda. Um deles diz: “Ela está sempre a cair! Devia desistir desta fachada das ondas grandes”. Outro internauta fez uma piada sobre o wipeout em que se referiu a Keala como “ele”. Quando alguém o informou que era uma mulher, respondeu: “então está explicado.” Um terceiro escreveu: "Não se pode feminizar Jaws".
Claro que estes são apenas os comentários de trolls da internet, e a extensa e bem-sucedida carreira da Keala é mais do que suficiente para refutar críticas desta natureza. Mas ao lê-los, lembrei-me do que Kelly Slater, uma das vozes mais influentes do surf, disse à big rider brasileira Maya Gabeira, actual detentora do recorde da maior onda surfada por uma mulher: “Ele disse-me algo como ‘não estás preparada. Estás a pôr as pessoas à tua volta em risco, quando têm que te resgatar nessas situações. Acho que se continuares a fazer o que estás a fazer vais morrer, por isso sugiro vivamente que pares”.
Isso fez-me pensar na quantidade de homens que surfam ondas grandes, que se poem em situações de risco, caem, partem ossos, quase morrem. Ninguém lhes diz que deviam desistir.
"A Keala e a Maya fazem parte de um grupo pequeno de
mulheres num oceano de homens."
A Keala e a Maya sofrem o fardo de fazerem parte de um grupo muito pequeno de mulheres num oceano de homens. Têm que surfar por elas próprias, mas têm que surfar também por todas as mulheres. Quando dizem que querem apanhar uma onda grande, são recebidas com ceticismo. Têm que exceder expectativas, porque, quando o fazem, servem de prova de que é possível que outras mulheres também o façam. Mas, de igual forma, se por acaso caem, abrem a porta para que alguém diga: “estão a ver? É por isto que as mulheres não surfam esta onda”.
"O que acontece se a Carissa cai?"
E foi aqui que o meu entusiasmo pelo Billabong Pro Pipeline ficou abalado. A etapa está recheada de mulheres que excedem expectativas, como a Carissa Moore ou a Moana Wong, também conhecida como Rainha de Pipeline, provas irrefutáveis de que mulheres têm todas as capacidades de dar espetáculo nesta icónica e perigosa onda havaiana. Mas o que acontece se a Carissa cai? Pior, o que acontece se ela se magoa? Não será essa a oportunidade perfeita para que vozes se levantem, afirmando preocupar-se com a segurança das atletas, e se oponham à existência de uma etapa feminina ali?
Há uma pressão enorme para que esta estreia das mulheres corra bem, para convencer os céticos, para inspirar as próprias mulheres, para justificar que se repita nos próximos anos, para evitar que alguém sugira vivamente que elas parem. A mesma pressão não se sente para a categoria masculina. Um wipeout do John John Florence, por exemplo, nunca levaria ninguém a dizer "é por isto que os homens não surfam esta onda".
Pouco a pouco, as surfistas têm conquistado direitos: o direito de surfar onde surfam os homens, ou o de receber o mesmo que recebem os homens. Talvez agora, com o novo formato do CT 2022, comecem a conquistar o direito de cair.
Carissa Moore. foto: Pablo Jimenez