"Quase tudo o que aprendo vem pelas viagens de surf..."
"...o surfista viajante por sua vez nunca sabe para onde irá mas nunca esquecerá esse lugar..."
O Surfista Viajante:
Visão subaquática de um bico de pato nas Mentawaii. Por Gonçalo Ruivo
"O turista comum procura controlar a sua viagem
mas nunca se recorda onde esteve,
o surfista viajante nunca sabe para onde irá mas nunca esquecerá esse lugar..."
Quase tudo o que aprendo vem pelas viagens de surf: o estímulo, o regresso ao olhar infantil, a contemplação, a ausência de conforto, a cultura, o risco, o instinto, o sonho, a natureza, o prazer de estar com estranhos que afinal são iguais a nós, a pluralidade humana, o imprevisto e sobretudo o imaginário da nossa memória que começa antes da viagem e perdura no tempo e nunca acaba.
Gosto particularmente da adrenalina da véspera na qual volto a entrar no universo adolescente fechado no quarto, a mala pousada ao de leve em cima da cama, a capa de surf no chão entreaberta, a música em alto volume e ao fazer a mala sinto o imaginário da viagem começar a entranhar-se na minha mente. Com essa adrenalina aumento ainda mais o som do spotify.
Quase tudo o que aprendo vem pelas viagens de surf...
Quando descrevemos um episódio de viagem há sempre um exagero infantil;Bruce Chatwin narra, numa escrita prodigiosa, as viagens pela Patagónia conta pormenorizadamente, de forma poética, o espírito dos lugares e dos seu habitantes locais. As histórias são muitas vezes imaginadas – há quem diga que Chatwin era um mentiroso –, a sua mente quase infantil destorcia a realidade dando cor e imaginação aos seu leitores.
No fundo quando viajamos sofremos todos um pouco do síndrome infantil de Chatwin, não é por acaso que a maior onda, a mais perfeita ou o maior caldo imaginamos acontecerem quase sempre em viagens. A riqueza da mente viajante torna tudo à nossa volta mais intenso e vivo gerando uma criatividade entusiástica sonhadora muitas vezes exagerada tal como as crianças a sentem, e é com esse entusiamo descabido que relatamos as histórias das viagens aos amigos, nas quais os prazeres e os perigos são sempre inflacionados.
"Quando viajamos deixamos de competir com os outros
e, sobretudo, connosco próprios..."
Dave Rastovich diz mesmo que o turista comum procura controlar a sua viagem mas nunca sabe onde esteve, e o surfista viajante por sua vez nunca sabe para onde irá mas nunca esquecerá esse lugar.
No limite as viagens de surf são só surf, literalmente uma SURF TRIP, está lá tudo. Nas suas vastíssimas viagens Rastovich explora as maratonas de surf quase sem comer e dormir criando um sentimento de unidade com o oceano; Mike Doyle e Joey Cabell foram ainda mais longe gerando a chamada consciência da papaia onde exploraram a costa do Kauai nos anos 70 só a comer fruta entrado numa espécie de delírio e transcendência com o oceano.
"Na busca incessante de ondas
é inevitável irmos ao encontro de lugares remotos e exóticos..."
A Zona remota das Mentawaii. Por Gonçalo Ruivo
Todas as viagens se somam, não é necessário ir para longe ou gastar muito dinheiro, mas na busca incessante de ondas é inevitável irmos ao encontro de lugares remotos e exóticos, lugares que nunca saberíamos da sua existência se não fosse a nossa condição de surfista.
Posto isto, o desabafo natural é que venham daí novas sensações, cheiros, paladares, sons e ondas, muitas ondas. É o que guardamos; no fim ninguém se vai lembrar da relva aparada do jardim, da lavagem do carro ou das reuniões com o seu chefe.
As rotinas retiram essas sensações, voltar à realidade é a expressão de quem volta, mas não será viajar a maior das realidades? Quando viajamos deixamos de competir com os outros e, sobretudo, connosco próprios, deixamos de fazer e passamos a ser, é esse espírito que quero incutir aos meus filhos: que antes de fazerem, sejam.
texto: Bernardo “Giló” Seabra