"Andy Irons era um campeão mundial incompreendido" quarta-feira, 09 junho 2021 14:52

"Andy Irons era um campeão mundial incompreendido"

"Kissed by God" retrata a história de Andy Irons e do seu transtorno bipolar e vício em opiáceos...

 

Por Pedro Quadros*

 

Nota prévia – este é um artigo que pertence a uma série que irei escrevendo regularmente para a Surftotal sobre filmes de surf significativos para a história e evolução do surf, enquadrando-os no momento histórico e cultural em que cada um tiver sido feito. Sempre que possível, recorrerei a filmes disponíveis nas plataformas de vídeo para que todos possam ver e apreciá-los.

 

 

 

 

A descoberta do motivo da morte de Irons e o transtorno bipolar... 

Quando, a 3 de Novembro de 2010, soube da morte do Andy Irons e de alguns detalhes acerca do sucedido, questionei-me como teria sido possível o Andy morrer naquelas condições: sozinho e doente num hotel em Dallas, Texas. Estava habituado a vê-lo nas revistas, nos filmes e na Internet sempre rodeado de gente divertida.

Mesmo os detalhes que iam surgindo eram suspeitos – dizia-se que teria contraído dengue no mês anterior durante o Rip Curl Pro Portugal 2010, em Peniche… A pouco e pouco ia-se divulgando mais qualquer coisa, mas sempre com um véu de secretismo e mistério, o que indiciava que a indústria do surf – marcas e media – poderia estar a encobrir o que realmente se teria passado.

Significativamente, a primeira notícia mais investigada e fundamentada acerca da morte do Andy foi publicada por uma revista fora do meio do surf- o número da Outside de 22 de Novembro de 2010- embora tenha sido escrita por alguém que colaborava regularmente com a Surfer Magazine. Este artigo revelava que ele já há muito tempo tinha dificuldades com o abuso de álcool e drogas (particularmente opiáceos e cocaína) e que, inclusivamente, já tinha quase morrido intoxicado em 1999. Revelava também que essas dificuldades eram conhecidas no mundo do surf profissional, mas encobertas por este.

 

 

 

"A primeira notícia mais investigada e fundamentada acerca da morte do Andy

 

foi publicada por uma revista fora do meio do surf"

 

 

Em Junho de 2011, o surfline.com publica uma declaração da família de Andy Irons sobre as conclusões das autópsias. Com uma espantosa franqueza, esta declaração admitia divergências acerca das causas da morte. Um dos médicos patologistas, contratado pela família de Andy para analisar o relatório da autópsia, afirmava que ele teria morrido de causas naturais, com uma paragem cardíaca repentina devida a uma severa obstrução na artéria coronária, com origem numa predisposição genética. Já o médico patologista oficial determinava uma segunda causa para esta paragem cardíaca: a ingestão intensa de uma mistura de medicamentos legais (um ansiolítico e um analgésico) e drogas ilegais (cocaína e metanfetamina).

 

 

 

"O médico patologista contratado pela família e o oficial

 

determinaram causas diferentes para morte de Andy"

 

 

 

Mas a revelação mais surpreendente para a generalidade do público foi a de que o Andy sofria de desordem bipolar, doença diagnosticada aos 18 anos, e que o fazia sofrer episódios de excitação e depressão. Por fim, esta declaração revelava também que o Andy sofreria de sintomas próximos da gripe, ainda diagnosticados durante o Rip Curl Pro Search 2010 em Porto Rico- a etapa seguinte à de Peniche. Esta declaração deixava também uma referência ao Andy ter abandonado este evento e ter-se posto sozinho a caminho de casa, em Kauai, no Hawaii – “I just wanna go home”.

 

O surgimento de "Kissed by God"

Mais de seis anos após o seu desaparecimento, em 2017/2018, começam a surgir notícias acerca de um filme sobre Andy Irons, que a sua família estaria a preparar. Inicialmente, senti-me um pouco cético – seria um exercício de "branqueamento" da sua memória? Passados uns tempos, obtive o tal filme, chamado "Kissed by God" e admiti logo na altura a minha surpresa pela franqueza e dignidade com que o tema da morte do Andy estava a ser tratado. Ao rever o filme para preparar este artigo voltei a sentir uma lágrima no olho – desde 1999/2000 que seguia o Andy, e ele ainda hoje é um dos meus surfistas favoritos.

O "Kissed by God" vai apresentando o Andy desde a sua infância na paradisíaca praia de Hanalei, na ilha de Kauai, no Hawaii. Numa família de surfistas, dá os primeiros passos no surf aos 8 anos graças a um primo – curiosamente, a primeira experiência de surf do Andy tinha sido aos 4 anos, com o pai, que resultou num valente susto que o dissuadiu de aderir ao surf naquela idade. Retrata as dificuldades familiares como o divórcio dos pais (que mais tarde reconciliar-se-iam) e, principalmente, a relação com o irmão dele, Bruce Irons, 16 meses mais novo, deixando transparecer uma “montanha russa” de afectos, cumplicidades, rivalidades e agressões.

 

A competitividade com Kelly Slater

Influenciados pelo filme “Kelly Slater in Black & White”, Andy e Bruce iniciam a sua carreira competitiva, sendo Andy o primeiro a destacar-se ao vencer - com 18 anos - o HIC Pipeline Pro 1996. Já nesta altura apareciam relatos de sessões pesadas de drogas e álcool envolvendo estes dois irmãos. Mas era algo que não surpreendia, pois nessa altura este tipo de sessões eram frequentes entre alguns surfistas do World Tour.

Como fã, sempre achei piada a este tipo de comportamentos – rebeldia e irreverência fazem parte do ADN do surf. O que não me agradava era a promoção que os media faziam da relação dos dois irmãos com o "Wolfpak", um "gang" de surfistas originários da ilha de Kauai, que nos primeiros anos da década de 2000 dominava o North Shore da ilha de Oahu, particularmente a onda de Pipeline, recorrendo frequentemente à violência.

 

 

Andy qualificou-se para o World Tour em 1998 e foi fazendo um percurso algo discreto até 2001. Neste ano, a carreira competitiva do Andy levou um forte impulso com a assinatura do contrato com a Billabong, fazendo dele um dos surfistas mais bem pagos do Tour. Este evento tem um duplo efeito no Andy – por um lado, sustentou a sua reputação de “rock star of surfing”; por outro, espoletou e libertou a sua híper-competitividade. No ano seguinte, em 2002, conquistou o seu primeiro título de Campeão do Mundo, precisamente no ano em que Kelly Slater tinha regressado ao Pro Tour depois de um intervalo desde 1998.

O auge do Andy Irons foi em 2003. Neste ano, ele e o Kelly venceram todas as etapas do World Tour (cada um com quatro vitórias), chegando empatados à ultima etapa, o X-Box Pipeline Masters. O título acaba por ser decidido entre os dois mesmo na final deste evento. Energizado por uma "jogada psicológica" do Kelly (este ainda hoje nega tê-la feito), Andy venceu com tal domínio que Kelly ficou visivelmente abalado. Foi este o momento do apogeu do 2People’s Champion", como Andy era tratado no Hawaii. Vence também a Surfer’s Poll, o termómetro de popularidade do universo surfista.

Em 2004, Irons voltou a ganhar o título mundial, conseguindo assim o seu terceiro título mundial consecutivo.

 

 

 

"Em 2004, Irons conseguiu o seu terceiro título mundial consecutivo"

 

 

O ano de 2005 terá sido o da mudança – Pelo que me recordo da altura, a reacção do público e dos media estava a mudar. Em 2004, Jack McCoy, a maior referência na cinematografia de surf naquele tempo, tinha lançado o Blue Horizon, filme que acompanhava o percurso competitivo do Andy Irons, em paralelo com o percurso de “free surfing” do Dave Rastovich.

 

 

 

 

"Recordo-me de sentir que esta abordagem

 

desfavorecia a imagem do Andy, pois realçava a sua agressividade"

 

 

 

 

A crise no Billabong Pro Jeffrey’s Bay...

Andy e Kelly voltavam a encontrar-se numa final. Andy liderava até mesmo ao último minuto, terminada a sua última onda saiu da água. Kelly necessitava de 9.3 pontos para vencer. Faltando apenas quinze segundos para o fim do “heat”, Kelly arrancou numa onda onde fez quatro boas batidas mas caiu no “reentry” da finalização. Andy caminhava em direcção ao palanque quando ouviu a nota do Kelly, 9.5! Mesmo controlada era visível a fúria do Andy. Kelly seguiu para a conquista de mais um título mundial, Andy desmoronou-se, acusando os juízes (e implicitamente o mundo do surf profissional) de estarem a rejeitá-lo. Recordo-me que na altura, mesmo entendendo que o Andy tinha sido injustamente prejudicado, torcia pelo Kelly, e aceitei aquele resultado.

 

 

 

"O filme foca-se nas dificuldades do Andy com as drogas e álcool, não referindo dois momentos

 

históricos na sua carreira”

 

 

 

A partir daqui, o filme foca-se nas dificuldades do Andy com as drogas e álcool, não referindo dois momentos históricos na sua carreira - a vitória no Rip Curl Search Mexico, realizado em 2006 em Barra de la Cruz, considerado por muitos como um dos eventos com melhores ondas de sempre, senão mesmo o melhor; e a conquista do Rip Curl Pro Pipeline Masters, cuja final ainda hoje é vista por muitos como a melhor final de um evento do campeonato do mundo de surf.

 

 

 

"Mesmo nos anos em que Andy já estava a deslizar para o seu período mais negro,

 

ele conseguiu ficar nessas temporadas em segundo lugar no ranking

 

e venceu o Hawaiian Triple Crown"

 

 

 

De realçar que, mesmo nos anos de 2005 e 2006 em que o Andy já estava a deslizar para o seu período mais negro, ele conseguiu ficar nessas temporadas em segundo lugar no ranking, atrás do Kelly. Isto para além de nestes dois anos ter vencido a Hawaiian Triple Crown, o segundo título mais importante do surf profissional a seguir ao título mundial.

 

A vitória do Rip Curl Search Arica 2007 sob o efeito de cocaína...

De qualquer modo, a decadência aproximava-se. O filme refere ainda que o Andy terá vencido, sob o efeito de cocaína, o Rip Curl Search Arica 2007, realizado no Chile, num “slab” (onda extremamente rasa que rebenta muito próximo da costa) excepcionalmente perigoso, que exige imensa perícia e coragem.

A Billabong, a patrocinadora principal do Andy impôs-lhe então a recuperação, suspendendo indefinidamente o seu contrato (até aqui, esta alteração contratual tinha sido guardada em segredo).

Em Novembro de 2007, aparentemente recuperado, casa-se com Lyndie Dupuis, uma modelo de bikinis. Parecia um bom augúrio. Mas, logo na festa de casamento, teve uma recaída, desaparecendo durante vários dias.

Foi-se mantendo no Tour, mas sem resultados significativos até Setembro 2010 , quando vence Kelly na final do Billabong Pro Teahupoo, sua última vitória. Já numa altura em que ambos se tinham reconciliado e desenvolvido até uma grande amizade entre os dois.

 

 

Um filme com momentos altos e baixos, tristezas e alegrias...

Recorrentes ao longo do filme são os momentos de altos e baixos, as alegrias e tristezas extremas, os picos de excitação e fossos de depressão do Andy. O público surfista, desconhecendo que o Irons padecia de desordem bipolar, não o compreendia.  Como era possível tal desperdício de um enorme talento? Possivelmente, a par do Kelly Slater, o maior talento de sempre no surf profissional. Como compreender que a doença que o minava era a mesma que o impelia para desempenhos extraordinários?

 

 

 

"O público surfista, desconhecendo que o

 

Irons padecia de desordem bipolar, não o compreendia"

 

 

 

Mais difícil ainda é entender como é que Andy morre com 32 anos, precisamente num momento de enorme esperança para ele e Lyndie, com o primeiro filho deles a chegar. Axel Irons nasceu cerca de um mês depois, a 8 de Dezembro de 2010.

Enfim, trata-se de um filme para ver com atenção e sensibilidade. Se não o puderem ver todo, vejam, pelo menos, a introdução ( link acima) onde o Andy explica o que é para ele ser beijado por Deus, ajudando-nos a compreendê-lo um pouco melhor.

 

 

"Um filme para ver com atenção e sensibilidade"

 

 

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