Kelly Slater in Black & White – o filme mais marcante na carreira do Kelly Slater!?
Por Pedro Quadros, um enquadramento histórico e cultural do filme que marcou a história e a evolução do surf...
Nota prévia – este é o segundo artigo de uma série que irei escrevendo regularmente para a Surftotal sobre filmes de surf significativos para a história e evolução do surf, enquadrando-os no momento histórico e cultural em que cada um tiver sido feito. Sempre que possível, recorrerei a filmes disponíveis nas plataformas de vídeo para que todos possam ver e apreciá-los.
Se perguntarmos ao Kelly Slater qual o filme de surf mais marcante e crucial para o seu percurso de GOAT (Greatest Of All Time), o mais provável é que ele refira o Kelly Slater in Black & White.
Produzido em 1990 pela Quiksilver, este filme tinha como objectivo assinalar a contratação do surfista jovem (18 anos) com maior potencial da altura, por um valor na casa dos seis dígitos, inédito para um jovem surfista ainda pouco conhecido, sem um resultado competitivo expressivo. Ainda para mais tratava-se de um dos primeiros contratos exclusivos (“head-to-toe”) de sempre por parte de uma marca de surf . Antes do Kelly, só tinha havido um contrato deste tipo e com esta ordem de valores, o do Tom Carrol, que tinha sido campeão do mundo em 1983 e 1984. Ainda por cima, a Quiksilver propõe o contrato num momento em que o mercado de Surfwear estava em crise, num fecho do ciclo expansionista da década de 80.
"Antes do Kelly só tinha havido um contrato deste tipo com estes valores"
Todas as cenas do filme são emitidas a preto e branco, com alguns apontamentos de cor introduzidos em pontos-chave – um deles, os calções com estrelas que o Kelly usa em Lower Trestles e que se vão tornar num enorme sucesso de vendas. Um ponto que salta imediatamente à vista é o desembaraço do Kelly face à câmara, seguindo os “scripts” que lhe eram apresentados com uma irreverência bem-humorada, particularmente na acesa troca de perguntas e respostas enquanto toma o pequeno almoço. Ou na frase com que é acordado no dia da finais de um campeonato que vai marcar toda a sua carreira – “It’s the morning of the final”, do Body Glove Surfbout 1990 – ver mais abaixo.
Uma especial atenção foi dada à banda sonora onde brilha o “rock” forte dos Mother Love Bone, banda-promessa da cena Grunge de Seattle, embora com vida curta devido à morte por “overdose” do seu vocalista, ainda antes do primeiro álbum deles ter sido lançado.
O Kelly Slater in Black & White foi realizado por um dos “miúdos-prodígios” do Marketing da Quiksilver (na altura a marca líder de surfwear), o Richard Woolcott, que mais tarde tornar-se-á num dos homens de negócios de maior sucesso dentro do surf ao criar a Volcom, fazê-la crescer até se tornar uma das mais proeminentes marcas de surfwear e em 2011 tornar-se multi-milionário ao vender a Volcom ao grupo francês PPR (actualmente denominado Kering), especializado em marcas de luxo como a Gucci, Yves Saint Laurent, Alexander McQueen e outras.
"Kelly Slater in Black & White foi realizado por
um dos “miúdos-prodígios” do Marketing da Quiksilver"
O filme marca o salto do Kelly Slater para o estatuto profissional (na altura havia uma distinção clara entre surfistas amadores e profissionais) ao centrar-se na sua primeira vitória no Body Glove Surfbout 1990, etapa do circuito de surf norte-americano da PSAA (Professional Surfing Association of America) em que o Kelly espanta com o seu surf progressivo de manobras acima do lip e na espuma (reverse’s 360). Os 30.000 US$ do cheque do Kelly eram a segunda maior premiação de sempre por um primeiro lugar numa competição de surf . Até aí o maior prémio era os 31.725 US$ do Christian Fletcher, vencedor desta competição no ano anterior, 1989. É provável que estas duas premiações, quando actualizadas por 30 anos de inflação, estejam no mesmo patamar dos 300.000 US$ que o Owen Wright ganhou em 2011 quando venceu o Quiksilver Pro New York.
Um detalhe curioso – o contrato com a Quiksilver foi assinado literalmente na praia, em Lower Trestles , durante este campeonato.
"O contrato com a Quiksilver foi assinado literalmente na praia,
em Lower Trestles , durante o campeonato"
O surf do Kelly neste evento abriu os olhos a muita gente e fê-lo ganhar uma legião de fãs – a New School of Surfing tinha chegado, com um surf mais eléctrico e veloz, com manobras acima do lip, dando novos usos à espuma das ondas com os reverses-360. Um surf suportado por novos modelos de pranchas – com curvas mais pronunciadas, mais estreitas, fabricadas para curvar rapidamente e em espaços curtos – que se tornarão as referências das pranchas de alto-desempenho durante todos os anos 90. Estas pranchas, “shapeadas” pelo californiano Al Merrick , vão fazer da marca deste, a Channel Islands, a maior fabricante mundial de pranchas, título que ainda hoje possui.
Ao longo do filme vamos descobrindo o percurso do Kelly, ao ver as imagens do GOAT com 15 anos nas ondas onde começou a surfar aos cinco anos de idade - Cocoa Beach e Sebastian Inlet na Florida. Kelly faz ainda uma interessante a descrição dessas ondas e dos benefícios que lhe trouxeram – “Terrible waves. Flat, mushy waves. On-shore winds. Out all day because I wanted to do better than anyone else. That’s what helped me a lot”.
"Ao longo do filme vamos descobrindo o percurso do Kelly,
ao ver imagens suas com 15 anos de idade"
Para muitos o momento mais importante do filme é a semi-final entre o Kelly Slater e o Tom Curren no Quiksilver Lacanau Pro 1990, etapa francesa do World Tour da ASP. Este confronto marca o paradigma entre o surf new-school do Kelly Slater e a abordagem old-school do Tom Curren. Este na altura estava no apogeu da sua fama e capacidade de influência, sendo mesmo o maior ídolo do surf para o próprio Kelly. Ele marcou a sua exibição com as manobras mais progressivas, inovadoras e rápidas da altura – reverses-360, aerials . Já o Curren mostrou o seu habitual surf mais estilizado, fluído e elegante.
Por esta altura o Kelly era considerado um prodígio em ondas pequenas e havia quem duvidasse do seu desempenho em ondas de consequência. Kelly aproveita o convite da Quiksilver para ir a Tavarua (nas ilhas Fiji) para treinar para as ondas do North Shore . Segundo o próprio Kelly foi lá que apanhou as melhores ondas da sua vida até àquele momento. Foi lá que se desenrolou uma história interessante - a filmagem a cargo de uma lenda dos filmes e fotografias de surf, Dan Merkel, devia desenrolar-se toda em Cloudbreak (um recife distante da ilha), onde estavam as maiores ondas, mas Kelly reparou nas ondas de Restaurant (recife mesmo em frente ao restaurante do resort) e percebeu que seriam as melhores ondas da sua vida. Assim, ficou a surfar as ondas mais pequenas de metro e meio a dois metros. Quando chegou ao Hawaii percebeu que o Dan Merkel tinha ficado furioso consigo pois tinha entendido que o Kelly tinha ficado com medo de surfar ondas maiores.
"Foi em North Shore que Kelly apanhou as melhores ondas da sua vida até àquele momento"
Então o GOAT viu-se obrigado a mostrar a todo o mundo do surf, aquartelado no North Shore, que surfava Pipeline e Backdoor com audácia e confiança. Um detalhe interessante – como é que ele, apenas com uma temporada anterior no North Shore, conseguia apanhar ondas em Pipeline e Backdoor sem ser assediado pelos surfistas locais ? A Quiksilver “meteu uma cunha” junto dos Da Huii, os “locals” mais duros do North Shore, que o deixavam surfar sozinho.
Este filme de 1991 marcou ainda a carreira de Slater, por ter explorado de um modo implícito a sua figura de “Sex-Symbol”. O lançamento do filme coincide com a famosa capa da revista People (focada em celebridades do cinema,da TV, da música e do desporto de massas) onde aparece a apresentar o artigo sobre os “50 Most Beautiful People”.
O Kelly Slater in Black & White pode talvez não ser o filme mais marcante para o Kelly Slater , mas é definitivamente um marco na sua carreira e um “must-see” para todos os fâs de surf e particularmente do Kelly Slater, “the Greatest Surfer Of All Time”.