Nó de água- Os Senhores dos Anéis - Por João Valente
Como os Jogos Olímpicos estão a alterar a balança de poderes no surf mundial...
*Por João Valente
“Rumor: Num ataque de soberba autoritária, o patrão da ISA Fernando Aguerre força furiosos surfistas da WSL com vaga olímpica a participarem dos World Surfing Games em El Salvador.”
Audacioso.
Provocatório.
Acusador.
Irresistível.
O artigo vinha com a dose habitual de sensacionalismo e humor, como quase sempre acontece no divertido Beachgrit.com. Perfeito para fazer saltar o tampo da indignação e vociferar na direção dos crápulas que querem roubar os últimos resquícios da alma do surf em nome do espírito olímpico. Como se a WSL, por herdeira da ASP, por herdeira da IPS, por herdeira do ato de subversão que foi a criação do surf profissional, fosse agora, ironia das ironias, a salvaguarda da propagandeada rebeldia original do surf.
Seja como for, o artigo citado — e a prova final de qualificação para os Jogos Olímpicos, os ISA World Surfing Games, a decorrer neste preciso momento em El Salvador — é um bom pretexto para abordar uma antiga competição alternativa, em jeito de guerra fria de narrativas quentes, opondo a ISA e a (agora) WSL numa luta pela legitimidade representativa do surf.
Muito interessante.
Comecemos com um pequeno passeio pela história recente desta atividade anciã. A International Surfing Association (ISA), inicialmente chamada de International Surf Federation, existe desde 1964, tendo sido, até 1972, a responsável única por atribuir os títulos mundiais originais, dos quais os australianos Midget Farrely e Phyllis O’Donnel foram os primeiros detentores. Isso até 1976, altura em que o surf decidiu tornar-se um desporto profissional. Como? Juntando os resultados dos campeonatos internacionais realizados ao longo daquele ano sob a alçada de uma entidade — batizada de International Professional Surfers (IPS) —criada para esse propósito, atribuindo o título mundial a Pete Townend e assumindo-se como responsável pela organização de provas com prémios em dinheiro, uma vez que os campeonatos da ISA eram amadores.
"Desde o início que o campeão oficioso da recém-criada IPS
era reconhecido com maior legitimidade
do que no oficial da ISA"
A partir daqui o surf passou a contar com dois campeões do mundo, mas desde o início que tanto os média especializados como público reconheciam no campeão oficioso da recém-criada IPS maior legitimidade do que no oficial da ISA. Um argumento difícil de contestar. O campeão da ISA era baseado num único campeonato, com pouca representatividade, realizado em sítios de condições de ondas duvidosas. O campeão da IPS saía de um circuito de várias etapas, algumas delas realizadas nos melhores destinos de surf do mundo, e contava com grande parte das maiores estrelas de surf de então.
Viajar pelo mundo a competir por prémios monetários — para sustentar um estilo de vida baseado em viajar pelo mundo em busca de ondas perfeitas — era um ideal demasiado atrativo para aquela trupe, mais próxima de um bando de hippies que de uma seleção de atletas, pelo que a ISA foi gradualmente perdendo a relevância à medida que os melhores surfistas gravitavam em direção à liga profissional. As transmutações subsequentes da IPS para ASP, em 1982, e desta para WSL, em 2015, serão irrelevantes nesta equação. O princípio manter-se-ia o mesmo: as provas profissionais e, consequentemente, os melhores surfistas, eram assunto das ligas profissionais e matéria de capa e páginas nobres nas publicações especializadas. Os campeonatos de seleções eram assunto das federações e, por conseguinte, da ISA, sendo relegadas para pouco mais que notícias de rodapé nessas mesmas publicações.
Fernando Aguerre
E assim, paralelamente, as entidades seguiram os respetivos mundos durante um par de décadas, com os surfistas da IPS/ASP absolutamente indiferentes perante a impossibilidade de participarem nas provas da ISA, dada a sua condição de profissionais — e vale aqui recordar que até 1994 as provas principais da ISA tinham a alcunha de “Mundial Amador” — e a ISA mais ou menos indignada pela irrelevância a que se via votada.
Só em 1994, quando um advogado argentino tornado magnata dos calçados, de nome Fernando Aguerre, foi eleito presidente da ISA, é que as coisas começaram aos poucos a mudar. Além de habilidoso empresário, Aguerre era também um associativista nato, tendo formado a Associação Argentina de Surf em 1977, no seguimento de uma ordem governamental para banir o surf na região de Mar del Plata, e mexido os cordelinhos para reverter a decisão. Em 1992, já a viver nos EUA com o seu irmão, Santiago, com quem, em 1985, iniciara a Reef Brazil, fundou e presidiu a Associação Pan-Americana de Surf. Assumir a presidência da ISA foi um passo natural que veio injetar novo fôlego e organização na desnorteada entidade. Adotando desde o início o objetivo de levar o surf aos Jogos Olímpicos, um dos seus primeiros passos foi renomear, em 1996, o antigo Mundial Amador para World Surfing Games (WSG), já a estender a mão na direção dos cinco anéis entrelaçados.
"Aguerre sabia que
para poder ambicionar a desejada representatividade para o surf de seleções,
era necessário que estas contassem com os melhores surfistas nas suas fileiras"
Homem de negócios e de marketing, porém, Aguerre sabia que para poder ambicionar a desejada representatividade para o surf de seleções, era necessário que estas contassem com os melhores surfistas nas suas fileiras. Que é o mesmo que dizer os profissionais. Que é o mesmo que dizer os surfistas da então ASP. A mesma ASP que desde 1976 drenara a importância da ISA quase ao ponto da mais completa irrelevância. Através de um acordo engendrado pelo argentino, nos Jogos de 1996, realizados em Huntington Beach, EUA, surfistas do WCT como Taylor Knox, Victor Ribas ou Shane Beschen, entre outros surgiram a envergar os uniformes das suas seleções, quebrando um gelo com mais de 20 anos e que haveria de culminar na atual situação, onde Ítalo Ferreira é o campeão em título das duas entidades: ISA e WSL. Mas estamos a adiantar-nos.
Para encurtar uma história que já vai longa, em 2016 o Comitê Olímpico Internacional (COI) aprovou a inclusão do surf nos Jogos de Tóquio. Recorde-se que, três anos antes, o surf profissional, leia-se a ASP, tinha sido comprada por uma empresa privada americana, de nome ZoSea, liderada pelo então desconhecido Paul Speaker e pelo empresário de Kelly Slater, Terry Hardy, e financiada pelo bilionário americano, Dirk Ziff. Ao ouvir as notícias, Speaker, o CEO da empresa entretanto rebatizada como WSL, embarcou num voo privado rumo ao Rio de Janeiro, local do anúncio por parte do COI, fazendo-se fotografar ao lado de Aguerre no grande momento de elevação do surf ao patamar olímpico. Era um sinal definitivo de que a ISA definitivamente voltava a contar com uma posição de força nas estruturas de poder do surf.
Opening Ceremony Flags, 2019 ISA World Surfing Games
Por Sean Evans
Entretanto, e curiosamente, após o entusiasmo inicial nos WSG de 1996 e 1998, o interesse dos melhores surfistas do mundo nos campeonatos de surf por seleções voltara a esmorecer. Enquanto na WSL, as nações tradicionais — Austrália, EUA (Havai incluído), Brasil e África do Sul — dominavam o ranking, no topo das provas da ISA passou a ser normal surgirem surfistas de nações como a Costa Rica, Argentina, Venezuela ou o Peru. Mesmo Portugal surgiu em três ocasiões como vice-campeão do mundo, refletindo uma realidade sem qualquer correspondência no mundo das competições profissionais. Os diferentes níveis de organização a nível federativo em cada país, a má fama do nível de julgamentos na ISA, o gigantesco número de participantes nestas provas, muitos deles manifestamente fracos, e uma certa aversão natural e histórica dos surfistas ao tom escutista das provas por seleções, entre outros, foram fatores que não contribuíram para atrair os surfistas do WT a campeonatos onde a ausência de prémios monetários é compensada pela glória das medalhas em nome da pátria.
"Com os Jogos Olímpicos, tudo mudou!
Agora são os melhores surfistas do mundo a pedir para serem incluídos nas respetivas seleções
de modo a participarem numa prova amadora"
Com os Jogos Olímpicos, tudo mudou. Pela primeira vez desde a criação do circuito profissional, agora são os melhores surfistas do mundo a pedir para serem incluídos nas respetivas seleções de modo a participarem numa prova amadora. A glória olímpica, sim, mas toda a dinâmica da representação nacional no maior evento desportivo do planeta, bem como, claro está, os dinheiros envolvidos direta e indiretamente na associação aos Jogos, tornaram o surf de seleções subitamente atrativo. É ver o empenho com que Kelly Slater se tem agarrado à possibilidade de integrar a equipa americana. Quando John John Florence anunciou a sua decisão de abandonar a prova de Margaret River, o foco da sua mensagem no Instagram não estava no resto do Tour mas na recuperação a tempo de participar nos Jogos de Tóquio.
"COI reconhece a ISA como entidade reguladora do surf a nível internacional,
mas os melhores surfistas do planeta estão ligados por contrato à WSL"
Presumivelmente, na cúpula dos poderes estabelecidos a necessidade de um acordo começava a desenhar-se. O COI, na essência um congregador de federações, reconhece a ISA como entidade reguladora do surf a nível internacional, mas os melhores surfistas do planeta estão ligados por contrato à WSL. E o COI quer esses surfistas nos Jogos. E a ISA quer esses surfistas nos Jogos. E esses surfistas querem estar nos Jogos. E a WSL quer preservar a sua relevância e aumentar o valor do seu produto — o surf de competição — onde a presença de campeões olímpicos não é desprezível. Algo tinha que ser cozinhado, e o primeiro ingrediente eram os surfistas.
Estabeleceu-se a presença olímpica do surf em 20 homens e 20 mulheres, num máximo de dois surfistas por país em cada género, assim divididos:
- Os 10 homens e 8 mulheres mais bem qualificados nos rankings do World Tour WSL 2019
- Os vencedores masculino e feminino dos Jogos Pan-americanos de 2019.
- Os surfistas mais bem classificados de cada continente nos WSG 2019, à exceção das Américas.
- Os 4 homens e 6 mulheres mais bem classificados nos WSG 2021, em El Salvador.
Não vamos sequer entrar aqui pela forma como surfistas que conquistaram vagas em nome do seu país, podem nem sequer ir aos Jogos caso não tenham um bom desempenho em El Salvador — Frederico Morais, por exemplo, poderá não ir a Tóquio caso seus dois colegas de seleção fiquem à sua frente em El Salvador — mas um processo com múltiplos níveis de qualificação estava fadado a apresentar múltiplos níveis de desacertos, incorreções, injustiças até. O esquema é pensado mais para valorizar cada uma das entidades — ISA, WSL e o próprio COI — do que para recompensar o talento e esforço dos surfistas. A atribuição de uma vaga à peruana Daniella Rosas, vencedora dos Pan-americanos, obrigando a que a ex-campeã do mundo profissional, a também peruana, Sophia Mullanovich, vencedora dos WSG do Japão em 2019, seja uma das 6 primeiras colocadas em El Salvador para poder ir aos Jogos, é outro exemplo.
"A WSL compromete-se a criar janelas nos seus calendários para alojar os WSG
com tempo útil suficiente para os atletas se deslocarem até ao local dos WSG
para participarem."
Além disso, há os problemas de calendários. Ao longo do período de qualificação, dificuldades na conciliação das agendas desportivas entre a ISA e a WSL têm forçado muitos surfistas do WQS a optarem entre a qualificação para o World Tour ou a representação dos seus países nos Jogos Olímpicos. Dilema que o peruano, Alonso Correa, e o costa-riquense, Carlos Muñoz, sofreram na pele.
Uma cláusula do protocolo traçado entre a ISA e a WSL estipula que a WSL se compromete a criar janelas nos seus calendários para alojar os World Surfing Games com tempo útil suficiente para os atletas se deslocarem de e para o local dos WSG em condições de participarem.” Reconheça-se que o calendário da WSL é infinitamente mais complexo que o da ISA mas isto nem sempre funcionou assim. Mesmo porque temos outra cláusula a considerar.
Lembram-se dos 10 homens e 8 mulheres qualificados segundo o ranking do WT 2019? Pois uma condição, incluída pela ISA, determina que, para que essas qualificações sejam consideradas “válidas”, os surfistas devem competir nos WSG. Desportivamente, não existem quaisquer requisitos que obriguem os surfistas olímpicos do World Tour a ter bons resultados nos Jogos da ISA. Poderiam, em teoria, correr os seus heats em switch-stance e perder na primeira fase, que o seu estatuto olímpico se manteria intacto. No entanto, recusando-se a aparecer nessas provas, de acordo com a cláusula citada, ver-se-ão impedidos de competir em Tóquio.
Qual é então, exatamente, o propósito de sua participação? É apenas para atrair mais atenção para esses eventos da ISA, que historicamente falharam em atrair os surfistas de elite da WSL? Segundo Fernando Aguerre, o objetivo é manter um status quo olímpico. “Todos os principais desportos têm os seus melhores profissionais nas suas seleções nacionais”, declarou à Stab em 2017. “No futebol, Messi e Ronaldo têm carreiras lucrativas como jogadores profissionais de ponta, mas eles reservam tempo de agenda para jogar pelas suas seleções nos mundiais, taças continentais e Jogos Olímpicos. Tenho essa mesma visão para o surf.”
Manda a sabedoria popular que nunca se discutam questões de valor simbólico com um argentino.
John John Florence, Billabong Pipe Masters
Por WSL
Significa isto que os surfistas que estiveram presentes numa remota ilha ao largo de Perth, Austrália Oeste, para competir no Rip Curl Rottnest Search do WT, finalizado a 25 de Maio, tiveram de atravessar o mundo até El Salvador a tempo de participarem nos Jogos, cuja abertura está marcada para 29 de Maio? Não é bem assim. O texto da cláusula estipula a participação obrigatória dos surfistas da WSL em “todos ou algum” dos Games de 2019 ou de 2020 (agora 21, por conta da... bem, vocês sabem). Ora, todos os surfistas olímpicos via WT participaram nos WSG 2019, à exceção de John John Florence. E mesmo este estará safo, uma vez que existe no acordo ISA/WSL uma adenda a prever casos de lesões e outros constrangimentos que impeçam a participação em algum dos WSG. Ninguém em seu bom juízo na ISA, iria abrir mão de ter JJF na sua prova mais importante por um detalhe burocrático. O que se faz nestas ocasiões? O de sempre: cria-se burocracia posterior — atestados médicos, declarações sob compromisso de honra — para anular a burocracia anterior.
Tudo está bem quando acaba bem, certo?
Calma que esta procissão de praia ainda não saiu sequer do parque. Isto da glória olímpica e do patriotismo tem muito que se lhe diga. Uma breve pergunta no Google sobre os dinheiros que o estatuto olímpico movimenta, dirigiu este vosso repórter à página do Comité Olímpico Internacional, onde se encontra a interessante explicação. “O COI é uma organização sem fins lucrativos, que se dedica a usar a receita gerada pelos Jogos Olímpicos para auxiliar os atletas e desenvolver o desporto no mundo. Como resultado, todos os dias o COI distribui cerca de 3,4 milhões de dólares para ajudar atletas e organizações esportivas.”
Admirável!
Mas há mais.
“Os Jogos Olímpicos geram receitas substanciais quase sem paralelo no mundo desportivo. No total, por meio da venda de direitos de transmissão e marketing, além de outras fontes de receita, a receita entre 2013 e 2016 (...) foi de 5,7 mil milhões de dólares.”
Quase 7 mil milhões de euros.
Brutal!
Daniella Rosas
Por WSL
Não fazemos ideia de como se processa a distribuição desse bolo de dinheiro, e parece evidente que um desporto como o surf irá contrair, no máximo, umas migalhas. Mas num bolo de 7 mil milhões as migalhas valem muito. E seja qual for o valor que o surf poderá abocanhar, quem o recebe é a ISA. Ou não?
Uma rápida pesquisa sobre o assunto não me levou a lado nenhum.
Sabe-se que a WSL passa por dificuldades financeiras, que tornariam o atual modelo de negócio da entidade inviável, não fosse a militância de Dirk Ziff. A pandemia deixou o circuito WQS em frangalhos e não se antevê quanto tempo será necessário até regressarmos aos níveis anteriores. Se, de todo, regressarmos. A divisão do surf profissional em três níveis — WQS regionais, Challenger Series e World Tour — indica uma tentativa de contenção de custos cujos resultados práticos só serão visíveis ao fim de algumas temporadas. Uma concentração do modelo de negócio num circuito de elite, limitado a um número de surfistas reduzido e realizado em janelas temporais mais curtas é um conceito que já é assoprado nos bastidores desde os tempos da ASP. Hoje em dia, soa mais atraente que nunca.
E se tudo o que não é elite — Challengers e World Tour — passasse a decorrer no âmbito federativo, sob a alçada da ISA, servindo como etapa de qualificação para o topo da carreira profissional? Uma maior integração das entidades significaria um fortalecimento de ambas ou iria resultar numa inevitável canibalização de uma delas pela outra. E qual seria o canibal mais esfomeado?
"Tempos excitantes avizinham-se"