A interação com o oceano e as ondas, é a sensação de pura liberdade ! A interação com o oceano e as ondas, é a sensação de pura liberdade ! Mpora segunda-feira, 05 julho 2021 11:45

Surf - a liberdade da religião

Se perguntarmos a um surfista porque faz surf e a um crente porque é devoto ao seu Deus, as respostas que vamos obter serão, certamente, muito semelhantes na sua essência.



Sensação libertadora
A experiência de envolvimento com a Natureza a seguir a uma manobra bem sucedida ou a uma onda bem surfada leva a um estado de satisfação tal que a sensação de liberdade absorvem, totalmente, o surfista. Qual de nós nunca se sentiu fora de si depois de um momento destes? É uma leveza que nos transporta para um patamar onde os problemas do dia a dia não entram. É este um dos principais motivos que levam muita gente a refugiar-se no surf e no mar para conseguir um equilíbrio emocional e espiritual, nomeadamente surfistas mais velhos com mais responsabilidades sociais (família, trabalho, etc..).Um objectivo idêntico têm os que se dedicam a crenças religiosas, seja ela qual for (cristianismo, budismo, islamismo, induísmo, etc.), ou tradições religiosas. Neste contexto, procurar o mar e as ondas que proporcionam a maior sensação de liberdade é o mesmo que para um cristão ir à missa ou visitar um santuário.


Surf: uma benção para corpo e alma
Para muitos, sejam de que idade forem, o surf começa como uma actividade física ou lúdica. Obriga a exercício que, sendo feito correctamente e sem azares, traz saúde ao corpo tanto a nível da estrutura muscular como de resistência ao esforço (cardio). E também é uma forma de convívio e de distracção num ambiente, naturalmente, descontraído e saudável. E daqui passa depressa para uma esfera espiritual, porque não é preciso muita experiência em cima de uma prancha para perceber que o surf tem a capacidade de tocar, positivamente, as emoções. Recorrer a esta capacidade é para, muitos surfistas, uma necessidade para se libertarem enquanto indivíduos, que surge como reflexo da evolução da sociedade. Desde a Revolução Industrial (séc. XVIII) que o homem (e a mulher) está a ser arrastado para uma vida de rotinas que uniformiza quotidianos, principalmente nos mundos, ditos, "civilizados". O surf ajuda na fuga a estas rotinas e acaba por se tornar fundamental no equilíbrio emocional pela sensação libertadora que provoca em quem o pratica.




Sub-culturas
O surf é muitas vezes visto como uma sub-cultura por ser uma actividade absorvente, devido a tudo o que já aqui foi referido. Há outras que têm o mesmo efeito em quem as segue - a sensação de liberdade - em que a grande maioria está relacionada com outros desportos de evasão (que levam o indivíduo a envolver-se com a Natureza) e até de práticas mais extremas (como bungee ou queda-livre). No entanto o surf tem características especiais e destaca-se de algumas destas actividades libertadoras. Principalmente porque não é instantâneo (como a queda livre) e consome tempo, requer dedicação: são precisas muitas horas de sofrimento a resistir e a lutar contra as espumas em rebentações que parecem nunca dar tréguas até se conseguir deslizar, em pé numa prancha, por uma rampa de água lisa e verde. Neste aspecto o surf até se cruza com outras religiões, como por exemplo o budismo, que diz "tudo o que traz prazer exige sacrifício".


Embora esteja claramente, a inferir sobre sensações pessoais e únicas a cada indivíduo parece-nos legítimo dizer que uma linha comum a todos os surfistas que já passaram por estas experiências, com o oceano e as ondas, é a sensação de pura liberdade. A sensação de estar livre do peso de uma sociedade - as formigas, por exemplo ,nunca terão a liberdade de ser uma formiga individual - a liberdade de ser um indivíduo, dentro da espécie humana. Porque na verdade basta decidirmos ir surfar; basta sairmos da terra firme; e então conseguimos-nos sentir parte da infinidade de acção do oceano, e isso é sentir-mo-nos livres.

No entanto esta procura pela libertação do indivíduo é um conceito relativamente recente e de alguma forma produto dum sofisticado nível de evolução humana que permite satisfazer plenamente necessidades básicas, dando lugar a outras preocupações. O início desta preocupação pela liberdade individual, por maximizar a não-interferência da sociedade nas decisões dos indivíduos, surgiu em meados do século 19 com autores como John Stuart Mill*.


Então, como é que foi traduzida a preocupação de Mill nas sociedades modernas do século 20, como os EUA, Japão, Reino Unido e Alemanha? Em geral fornecendo sensações de emancipação consumíveis de forma instantânea. Os exemplos são infindáveis mas a título demonstrativo sugerimos alguns casos esclarecedores:, o consumo de drogas por todo o mundo tem notado um crescimento progressivo que só ignora quem quer. Salões de jogos de grande escala, como o antigo Segaworld em Londres, onde as sensações produzidas por diversas actividades como esqui, motas, skate, boxe, golfe ,ou mesmo uma emancipação virtual estão à distância de uma moedinha. No Japão, hoje em dia ,verificam-se várias atitudes de rebeldia contra o conformismo social em nome da liberdade individual, do tipo pintar o cabelo de cores chocantes, ouvir música norte-americana hip hop aos berros no metropolitano, queimar a pele preta em salas de sol. A própria Inglaterra passou por uma fase de rebeldia contra a sociedade nos anos 80 com os punks; nos anos 60, os EUA tiveram os hippies. O padrão destas sub-culturas é ostentar à sociedade(!) convencional uma percepção de liberdade e alternativa. Também a queda livre e o bungee jumping criaram sub-culturas do tipo "extreme adrenaline". São actividades que, por um preço estabelecido, nos dão imediatamente a liberdade e hilaridade desejada; etc., etc.


Com base nesta interpretação das sociedades modernas, qual é então a origem da sensação de liberdade sentida por um surfista?
O surf não é uma actividade de consumo instantâneo. Para apreciar surfar, ao invés da queda-livre por exemplo, não basta pagar 200 euros e saltar com um instrutor dum avião, num fim-de-semana em Évora. É preciso passar meses nas espumas, levar "porrada" numa base regular; depois percebemos que levar porrada é parte integrante do surf (e da vida!). E ultrapassar estas frustrações para conseguir apanhar uma onda no verde e sentir a velocidade, em pé, de estar numa onda. E é só o princípio!. Parece haver ressonância com aquela máxima budista que diz que tudo o que traz felicidade (duradoura) exige sacrifício.
Estamo-nos a aproximar perigosamente de um manifesto religioso, mas quando pensamos sobre surf, quando vemos e ouvimos surfistas autênticos a descreverem as suas sensações, acreditamos na legitimidade das analogias religiosas e na força espiritual que uma associação à maior fonte de vida do mundo(os mares e oceanos que cobrem 70% do planeta) dá ao surfista.


No entanto é importante ter-se noção que estas analogias religiosas terão mais relevância em certas situações, como foi referido quando por exemplo se apanha uma onda comprida ou meramente acompanhar uma onda durante alguns momentos; mas essencialmente é o tubo que distingue o surf de todas as outras interacções humanas com os oceanos. Estar dentro de um tubo é a forma mais interactiva e claramente mais íntima de estar ligado ao mar. Assim se só se conhece a vertente do surf associada aos Beach Boys e à praia no Verão, dificilmente se compreenderá esta vertente subliminar do surf.
Fazendo esta abstracção ,percebe-se como o surf consegue não tanto ajudar um indivíduo a pensar que é livre, ou fazê-lo entender qual é o seu lugar na sociedade; mas antes fazer um indivíduo perceber que como Homem, ele tem um lugar neste planeta em harmonia com a sua envolvente. A ligação ao oceano sobrepõe-se de uma forma tão indiscutível às questões que definem o homem como espécie e de como um indivíduo deverá se inserir na sociedade que dá luz à pretensão do surf estar na ponta da linha evolutiva humana sendo uma das formas mais sofisticadas de auto-expressão humana e colocando-se num plano metafísico, efectivamente muitas vezes associado à religião.

A Teoria do Caos:
Para tentar explicar o carácter sagrado das ondas e do mar para os surfistas vamos recorrer a uma teoria muito em voga neste final de século: a Teoria do Caos e à interpretação desta teoria por um matemático polaco chamado Benoit Mandelbrot. Ora, para visualizar a subtileza da Teoria do Caos, ajuda uma aplicação concreta e visual. Mandelbrot fez isso mesmo:

recriou num ecrã de computador, através de equações matemáticas, este carácter de permanente mutação do universo. O resultado foi o que hoje se chama o Coração de Mandelbrot. O incrível da obra de Mandelbrot são as lindíssimas formas que ele criou com números, números que crescem até infinito.A beleza e harmonia criada por as equações representam a descoberta de ordem no meio do que aparenta ser um caos de números aleatórios. Há um efeito visual deslumbrante na obra de Mandelbrot; ele criou autênticas obras de arte, com um caos de números !!


Com os computadores é "fácil" ver a ordem e harmonia no caos aparente de números aleatórios, por exemplo aqui. Mas não é tão fácil encontrar essa ordem na vida.


Estas dificuldades da vida humana são muitas vezes abordadas pela religião. Não haja dúvida que a religião tem várias vertentes e muitíssimas interpretações. Uma das vertentes da religião é explicar (aos fiéis e quem quiser ouvir) como há ordem neste mundo e como é possível mantê-la; outra é ajudar as pessoas a encontrarem o seu lugar como Homens neste Universo em que existem; é acreditar numa procura pelo sagrado; outra é tentar dar sentido à relação misteriosa do homem com o universo; outra vertente ainda é dar sentido à nossa existência e à realidade que nos rodeia.


O surf também tem um leque variado de interpretações e uma fertilidade enorme de pontos de vista. Mas uma coisa é certa: remar para uma onda, apanhá-la; descer a parede e depois apontar a frente à medida que somos envolvidos pela própria onda e conseguir manter velocidade e acompanhar a onda num sítio único e íntimo que é um tubo, só pode ser algo de extremamente harmonioso. Só pode ser um dos expoentes máximos de ordem encontrada no meio de um caos de acção e movimento infinito; só pode ser algo de metafísico e sagrado.

* Por Miguel Guerreiro

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