Nó de água 5 - Quem Beneficia Com o Bem do Surf? segunda-feira, 02 agosto 2021 14:34

Nó de água 5 - Quem Beneficia Com o Bem do Surf?

Por João Valente...
 

Os Jogos Olímpicos conferiram ao nosso desporto a maior visibilidade de que já foi alvo. Todas as partes interessadas afirmam que isso é positivo. Resta saber para quem.

 

Quando recebi o convite para dirigir as entrevistas que serviram de base ao documentário Legacy — Surfing Now and Then, a propósito do mundial de Masters disputado nos Açores naquele já longínquo mundo pré-Covid de 2018, a primeira coisa que ocorreu-me perguntar aos fundadores do surf profissional presentes em São Miguel foi sobre algo que ouço repetidamente nos meandros da indústria do surf e que eu mesmo repeti, e provavelmente escrevi, algumas vezes ao longo dos anos: O que significa a expressão “bom para o surf”?
 
É infalível. Fale-se com alguém — pessoa, empresa, instituição, fabricante, jornalista, governante, o que seja — sobre os efeitos secundários do seu métier, e a justificação “é bom para o surf” lá irá aparecer. Tenho poucas dúvidas de que a maioria acredita nisso. Mas tenho ainda menos dúvidas de que, confrontados com informações contraditórias de tal crença, poucos irão pô-la em causa. Com toda a convicção. De uma forma ou de outra, seremos todos vítimas de dissonância cognitiva, conceito desenvolvido pelo psicólogo social norte-americano, Leon Festinger, para explicar as discrepâncias entre as opiniões ou a imagem que alguém tem de si mesmo e aquilo que ela realmente faz.
 
 
 

QUEM TRABALHA O SURF QUER O BEM DO SURF?

Bem lá no fundo, todos sabemos o que nos motiva a fazer os nossos trabalhos “pelo surf”, e a razão de base está bem longe do altruísmo implícito na expressão. Fazemo-lo, em primeiro lugar — e falo aqui em nome dos fundadores desta indústria e das suas profissões, e não dos que chegaram depois — porque a certa altura das nossas vidas apaixonámo-nos pelo estilo de vida ao ponto de não queremos fazer outra coisa. Desde os primeiros tempos da era moderna do surf que assim é. De Duke Kahanamoku a Gabriel Medina, de George Freeth a Bob Hurley, todos capitalizaram e capitalizam em cima dos seus variados talentos, desenvolvidos nas e para as ondas, de modo a se manterem o mais próximos possível da praia, das ondas, do mar e da doce ilusão de um “verão sem fim”, muito antes da frase cunhada por Bruce Brown em 1966 para servir de título a um filme sobre a alma do surf que, lá está, gerou lucros astronómicos e tornou-se numa das peças fundamentais na disseminação global do surf.
 
Há muito carrego a convicção de que, por contágio involuntário ou influência direta, quem quer que tenha motivado alguém a agarrar numa prancha e ir para a água fazer umas ondas, contribuiu e contribui para a massificação do surf. A diferença está na escala. É como comparar o indivíduo que deita uma garrafa de plástico para a praia com os grandes petroleiros que lavam os seus tanques no oceano. Todos contribuem para o mesmo resultado, todos são parte da equação.
 
Voltando, portanto, à questão inicial. O que significa ser “bom para o surf”? Como respondeu um dos entrevistados de Legacy —não me recordo qual, mas a maior parte das respostas andou à volta disso — o que é identificado como “bom para o surf” normalmente é “bom para o negócio do surf”. Porque para chegar ao que é “bom para o surf” é preciso, primeiro, perceber o que é “bom surf”. E aí, com pequenas variantes, estaremos todos de acordo: ondas perfeitas e pouco crowd. E se as primeiras, à partida, não são afetadas pela promoção desenfreada da nossa atividade, já o segundo elemento sofre diretamente com isso.
 
 
 
Gabriel Medina. Foto: Ed Sloane
 
 
 

O EFEITO MALTHUSIANO

Não serei idealista ou cínico ao ponto de fechar os olhos a todos os benefícios que o crescimento do surf nos trouxe. Hoje faz-se surf em sítios antes inimagináveis. A evolução dos equipamentos e a rede global de informações permitiu ampliar imensamente o horizonte surfável do planeta. Mas, como todos sabemos, as ondas são um recurso finito e o paraíso hoje descoberto está condenado a ser o inferno de amanhã. Do Havai aos Coxos, da Gold Coast a Carcavelos, de Bali ao Algarve, temos visto o fenómeno repetir-se com uma regularidade que seria monótona, não fosse a própria natureza do fenómeno tão vibrante. Spots cuja descoberta encerra aventuras dignas de um Fernão Mendes Pinto, hoje recebem hordas de surfistas de pranchas sob os braços, acomodados em resorts de luxo ou em barcos equipadíssimos onde os únicos locais com que interagimos ao longo de estadias cronometradas e compradas em pacotes turísticos são os empregados que nos servem. Haverá alguém que honestamente afirme ser melhor surfar hoje em qualquer desses sítios do que era há dez, vinte ou trinta anos atrás?

Para o surfista comum, que vantagens traz o crescimento do surf? Diante da celebrada exposição sem precedentes trazida agora pelos Jogos Olímpicos, aquele que mais não deseja do que ir para a água sempre que vida lhe permite, lavar a alma e a mente com umas ondinhas, vê a sua experiência pessoal enriquecida exatamente onde? Em pranchas mais velozes, leves e versáteis? Em calções mais confortáveis? Em fatos mais quentes? Levante o dedo quem trocaria isso tudo por um pico sem crowd.

Não pretendo que este texto soe a nostalgia pelos bons velhos tempos. Nem a rabugices de um velho ressabiado. Muito menos a militância soul surfer. O que aqui descrevo não é um juízo de valor, é uma constatação. As coisas são o que são e não adianta espernear. O que é demais para alguns é insuficiente para outros. Essa é a natureza humana. Era inevitável que algo tão sedutor e apetecível como o surf se tornasse numa mania global. Alexander Hume Ford já percebera isso há mais de um século. Dirk Ziff ainda tem esperança que a parte desportiva da coisa valha os milhões já investidos. Pelo meio, todos cantamos no coro, vendemos os ritos, celebramos os sacerdotes, ocupamos as nossas capelas e catedrais.
 
 
 
 
O palco olímpico do surf no Japão. Foto: Ben Reed
 
 
 

E AQUI CHEGADOS, O QUE RESTA FAZER? IRONICAMENTE, MUITO.


Diante da expectável inevitabilidade dos números galopantes de novos surfistas — já há relatos de crowds bastante consideráveis na província chinesa de Hainan, e todos os estudos preliminares feitos apontam que as ondas artificiais levarão a um incremento no número de surfistas no oceano e não a uma quebra motivada pela dispersão — aumenta também o poder de argumentação e pressão política que, bem canalizado, levará ao reconhecimento das ondas como zonas de interesse público, passíveis de proteção ambiental e sujeitas a regras de ordenação territorial. Havendo mais surfistas, é também de esperar que o interesse académico cresça além dos cursos de treinadores, e que estes incorporem conteúdos cada vez mais aprofundados sobre ética, ambiente e a incrível herança cultural desta prática milenar, da qual o desporto é somente uma limitada ramificação. Isto além da permanente evolução (em termos de performance, sim, mas ambientais também) dos equipamentos e materiais, da contínua exploração de novas fronteiras. Futuramente, quem sabe, poderemos até assistir ao — bastante tardio, diga-se de passagem — despertar de uma consciência ambiental coletiva na comunidade.

Não se enganem! Adoro chegar à praia e ver miúdos felizes a dar os seus primeiros passos no surf. Adoro proporcionar essa experiência aos meus filhos. Deixa-me extasiado — e muito mais orgulhoso que quaisquer jogos olímpicos — testemunhar o surf a servir causas de cariz social e terapêutico. Dá-me um jeitão poder aceder a um site para ver as previsões do mar e clicar numa câmara para saber como estão as ondas naquele preciso momento. Gosto de ver campeonatos online e, embora sinta (muita) falta das revistas, deslumbro-me perante o universo de informação na internet. E reconheço o esforço das marcas endémicas em apresentar soluções de sustentabilidade no fabrico das suas coleções de vestuário e linhas equipamentos. Tudo isso são consequências positivas do crescimento do surf, que seriam muitíssimo mais difíceis de concretizar, não movimentasse esta atividade os milhões que movimenta.
 
 
 
O crescimento do surf é visível no aumento do crowd em todo o mundo.
 
 
 

ATO DE CONTRIÇÃO

No entanto, sei identificar o exagero de institucionalização, comercialização e pasteurização da experiência e lido mal com a lavagem de intenções que se esconde por trás da frase “bom para o surf”, assim levianamente proferida, como se fosse a coisa mais óbvia do mundo. Jogos Olímpicos, ondas artificiais, reality shows (mas haverá alguém na WSL que não se contorça de vergonha ao falar do Ultimate Surfer?), turismo de massas, mediatização generalizada, expansão de mercados... tudo isso, e muito mais, irá contribuir para gerar mais surfistas e criar mais pressão sobre áreas que parecem já estar sob ponto de rutura. Tudo é desculpado sob a bandeira do “bom para o surf”. Será com certeza bom, ótimo até, para muitos. Mas não o será para todos. E com certeza não o será para os que cada vez mais verão impossível viver o ideal enunciado em 1962 (!) por John Severson na última página da edição de estreia da hoje extinta Surfer Magazine: “Neste mundo sobrepovoado, o surfista ainda pode procurar e encontrar o dia perfeito, a onda perfeita e ficar sozinho com as ondas e os seus pensamentos.” É o inevitável preço que temos de pagar ao alardearmos o quão especial é a experiência de deslizar nas ondas. Digo eu, cuja vida profissional tem sido dedicada à promoção do surf, paga por empresas e instituições cujos modelos de negócio dependem da criação de públicos consumidores.

Não me arrependo e muito menos envergonho-me das escolhas que fiz e do caminho que escolhi, mas reconheço a dissonância cognitiva que durante anos fez-me acreditar que trabalho pelo “bem do surf”. Não é. Faço-o por mim, porque sou apaixonado por esta atividade, pela sua cultura, pelos seus valores intrínsecos e por todo o estilo de vida. Os eventuais efeitos, positivos ou negativos, que isso teve não passaram de consequência indireta. E apesar de não ter dúvidas de que o surf faria o mesmíssimo percurso, independentemente de mim, admito a legitimidade de quem me acusar de hipocrisia por estar agora a apontar os efeitos perniciosos do crescimento desenfreado do número de surfistas. Mas como relata o Mike D no fantástico documentário de Spike Jonze, Beastie Boys Story, quando um jornalista confrontou o Adam Horovitz com a hipocrisia das suas posições a respeito dos direitos femininos depois de uma juventude a celebrar o mais tosco e sexista machismo, a resposta de Ad-Rock foi: “Prefiro ser um hipócrita do que a mesma pessoa a vida inteira.”
 
 
 

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