Uma conversa com Constantino Pereira Martins, coordenador e co autor do livro "Do Surf / On Surf" segunda-feira, 09 setembro 2024 13:17

Uma conversa com Constantino Pereira Martins, coordenador e co autor do livro "Do Surf / On Surf"

"Se não estás no mar para te encontrares e descobrires, não estás lá a fazer nada."

 
* Por Pedro Almendra

 

Foi lançado recentemente o livro Do Surf / On Surf, em que o coordenador e co autor, Constantino Pereira Martins, faz uma exploração deste que é provavelmente um dos desportos com o crescimento mais consistente no mundo. Partindo da premissa de que o surf talvez seja não só uma atividade física, mas uma cultura, uma tribo, uma identidade coletiva, o livro discorre sobre as associações sobre o mar e a liberdade, com todas as implicações filosóficas, políticas, sociais e espirituais desta ideia. O livro compila uma série de ensaios que visam dar ao leitor um leque de perspectivas que vão além da Filosofia do Desposto, com considerações culturais, antropológicas, médicas, poéticas e existenciais. 

*Constantino Pereira é investigador no Instituto de Estudos Filosóficos da Universidade de Coimbra.

 

O livro está à venda neste link, juntamente com toda a informação sobre o mesmo. 

 

A Surftotal esteve à conversa com Constantino Pereira Martins para saber mais sobre o seu percurso até aqui, como surgiu a ideia de publicar este livro e todos os desafios que surgiram até à sua publicação. Lê a entrevista abaixo e fica a saber mais sobre a mente por trás das páginas. 

 

Neste livro podemos encontrar como autores  diversas personalidades ligadas a diversas áreas do mundo do surf, a nível internacional e nível nacional.

 

 

"Tenho um grande amor pelo pensamento e uma curiosidade científica inata."

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Podes fazer uma pequena apresentação sobre quem é o Constantino e o que tem vindo a construir na vida académica de um modo geral e também ligado ao desporto e à sua filosofia em particular?

 

O meu percurso é de alguém que nasceu em 1974, no século passado, e que por isso faz parte de uma geração híbrida que ficou entre o analógico e o digital. Que brincava e fazia desporto nas ruas, mas que chegou à idade adulta com a internet. Uma geração provavelmente única na história que viu impérios cair e impérios nascer, que assistiu e participou na revolução tecnológica, passou do escudo ao euro, mas que nunca achou o seu lugar. Talvez ainda o possa vir a fazer. Caso contrário terá sido uma geração para queimar. Pessoalmente, interessei-me pela filosofia de forma irrecuperável no 12º ano na Escola Secundária da Cidade Universitária com o Professor Gottschalk, e apesar de ter sido aluno da Faculdade de Direito de Lisboa nunca consegui ultrapassar essa paixão.

 

 

"Talvez seja um desses homens que ama a vida em geral."

 

 

 

Fiquei cativo e mudei para a Universidade NOVA de Lisboa. Se o primeiro impulso foi a Filosofia do Direito e Política, na NOVA tive o privilégio de estudar com professores absolutamente extraordinários. Isso foi problemático porque abriu muito o meu instinto e apetite filosófico, e até hoje me sinto dividido entre áreas tão distintas como a fenomenologia, estética, antropologia filosófica, etc. Na verdade, tenho um grande amor pelo pensamento e uma curiosidade científica inata que vem da minha infância e pré-adolescência. Queria ser cientista quando era pequeno, especialmente ligado à astronomia e física. Talvez seja um desses homens que ama a vida em geral, e em profundidade. Tenho escrito e pensado muito sobre desporto nos últimos anos também por na crise da meia-idade me ter reconectado com essa infância e juventude onde fazia muita actividade física e desporto, especialmente o Basket. Nesse sentido, penso que tenho humildemente desenvolvido uma filosofia aplicada, dir-se-ia prática, onde penso e tomo como alvo alguns objectos de estudo que amo: os cavalos, a arquitectura, a luta, a política, o riso e o humor, a tecnologia, etc.

 

 

 

"O mar para mim tem um sentido quase religioso."

 

 

 

Consideras o surf um desporto ou uma filosofia de vida? porquê?

 

 

As duas. Mas penso que a essência do surf não depende do desporto. Depende do amor pelo mar e pelas ondas. Não gosto muito dos altos índices de tecnicidade que o surf adquiriu ultimamente na sua aproximação performativa ao skate. Acho que o mar deve ser sempre respeitado. E não deve ser tratado como uma superfície para se poder fazer isto ou aquilo. Não aprecio a ideia da praia ou do mar como playground, ou uma onda ser uma rampa. No fundo talvez seja uma questão de ética do desporto. Percebo que para o skate a cidade seja uma entidade viva e que a materialidade se possa transformar e transmutar, o que talvez Nietzsche e Benjamin aprovassem. Mas o mar para mim tem um sentido quase religioso.

 

 

 

 

 

 

"Se não estás no mar para te encontrares e descobrires, não estás lá a fazer nada."

 

 

Nesse sentido, o meu gosto pelo surf é contemplativo, estético e ético. Julgo que o surf pode ser um exercício espiritual, como Loyola gostaria, de recolhimento e exposição simultânea. Se não estás no mar para te encontrares e descobrires, não estás lá a fazer nada. Por isso os surfistas falam de conexão com o mar, de limpeza, de vício, de querer estar sempre dentro de água. É uma liberdade interior e exterior ao mesmo tempo. Paradoxalmente parecida com a própria onda. Uma dobra sobre si mesmo. Em resumo, e para não divagar demasiado devido à idade, o surf idealmente é uma filosofia de vida porque o surfista vive melhor só, no seu spot favorito, com dois ou três amigos.

Essa vida boa é invejada por todos os outros desportistas. O prazer e o esforço misturam-se muito no surf. Vida boa de praia. O que é viver bem ou uma vida boa foi sempre uma pergunta filosófica importante, o que em última instância se relaciona com a felicidade. Os surfistas foram mais felizes na pandemia porque nunca perderam esse horizonte aberto.  A pandemia foi importante para se perceber o importante papel do surf na luta contra a doença mental e a solidão. As pessoas hoje estão mais conectadas, mas não estão ligadas. Precisamos de nos ligar mais uns aos outros. Em todos os sentidos. Faz falta mais generosidade, mais bondade.

 

 

"Talvez o surf se torne uma religião quando o mundo for todo automatizado e robotizado."

 

 

 

O surf é comparável a outro ou outros desportos? 

 

Não. O surf não tem comparação com nenhum outro desporto. Podes tomar como referência o “deslizar” ou “deslize”, tal como o Professor Sigmund Loland explica muito bem, e essa leveza, flexibilidade e ausência de gravidade o poder aproximar de outros como o skate, o ski, etc., mas o oceano é incomparável. Não há nada igual no planeta. Por isso mesmo, o crescimento imparável do surf. Talvez se torne numa religião quando o mundo for todo automatizado e robotizado.

 

 

 

Como surgiu a ideia de criar um livro de surf? 

 

 

Eu tenho trabalhado nos últimos anos, como dizemos em Portugal, à antiga. Old school significa que penso coisas em períodos de três anos: pensar uma conferência/livro, preparar a conferência, desafiar os colegas e a comunidade filosófica a pensar o problema que proponho, realizar a conferência para debatermos as ideias cara a cara, e depois publicar os textos e as reflexões num livro conjunto. É uma forma antiga que tínhamos no mundo académico de partilha livre de ideias, de forma gratuita e que depois serviria para pensar melhor. Nitidamente é um sistema que exige muito trabalho, tempo, esforço e dinheiro, e que requer de nós uma entrega e um altruísmo que nos tempos que correm fica difícil de justificar.

 

 

"O desporto é cultura, é corpo, mas também é pensamento."

 

 

O livro do surf faz parte desse processo que desenvolvi na última década, mas também faz parte da minha tentativa de contribuição para a sistematização e estabilização da filosofia do desporto em Portugal e na Língua Portuguesa. Existem várias pessoas com muita qualidade nesta área, o mais famoso será certamente o Professor Manuel Sérgio, e que não têm o reconhecimento público e académico merecido. Tenho tentado construir uma plataforma, em particular com a Professora Luísa Ávila da Costa da FADEUP, que seja capaz de quebrar o ciclo vicioso do pequeno feudo egóico, muitas vezes paranóico e destrutivo, na academia lusitana, e que pense nas gerações que nos sucederão, dando-lhes possibilidades, nacionais e internacionais, de se posicionarem e evoluírem no mundo do desporto.

 

 

"Eu queria homenagear o mar, o surf e os surfistas, a coragem."

 

 

 

O desporto é cultura, é corpo, mas também é pensamento. A filosofia não pode ser ostracizada e apagada da história como muitos gostariam. Por relação ao surf muito em concreto, para lá do meu gosto pessoal, era vergonhoso um país com a nossa importância mundial nesse sector não ter uma produção intelectual na matéria. Penso que actualmente o surf é vital para uma imagem moderna de Portugal, mesmo com todos os problemas gravíssimos que o país atravessa. O surf é um reforço dessa esperança que somos capazes de muito melhor enquanto povo do atlântico norte. Quando o Cristiano Ronaldo pendurar as botas, na Tailândia vão começar a dizer “Nazaré”.

Num país tantas vezes obcecado com a mesquinhez faz falta agradecer ou homenagear. Eu queria homenagear o mar, o surf e os surfistas, a coragem. Existe em mim um respeito profundo pelo mar. E vejo no surf também uma paixão por ele. Apesar de eu estar mais próximo dos pescadores que misturam coragem, medo, respeito e admiração reverencial pelo mar. Vejo a morte nas ondas, não vejo só diversão. E por isso tenho uma enorme admiração pelo surf de ondas grandes. Fica uma auto-citação sobre isso: “ In this sense, there is also an old logic of the sacrificial: offer your body to the ocean, offer your fragile body to fate, offer your body to death. Nudity and vulnerability, openness and surrender. Despite the violence of the sea, of the roar of the waves. It’s more than flirting with death, it’s a sacrificial athletic religious experience”.

 

 

Quando e porque razão decidiste materializar o projecto?

 

Por existir essa lacuna na filosofia do desporto. Sendo Portugal e o Brasil os países que mais escrevem e pensam, por enquanto, nesta área de estudos, era bastante estranho que sendo ambos países berço de uma paixão enorme pelo surf não existisse um livro que reflectisse sobre isso mesmo. Mas acho que não houve uma grande razão e momento para a coisa. Tenho uma série de livros na cabeça, como já tive filmes, e gostaria de materializar o que puder, dentro das condições que consiga, antes de morrer. É tão simples como isso. É uma questão de trabalho e de tempo de vida. A vida é breve.

 

 

 

 

 

 

 

 

"Tenho um amor enorme e profundo pela Ericeira."

 

 

 

O que mais te inspirou para o fazeres?

 

A Ericeira. Tenho um amor enorme e profundo por aquele lugar. Algumas das melhores partes de mim estão por lá espalhadas. Fica aqui um pouco daquilo que as palavras permitem mostrar num poema que escrevi para ela:

 

A saudade é

Uma coisa concreta

Real.

É o cheiro

Das rochas da Ericeira

Embrulhado no laranja

Da areia e mar

De um fim de dia

Que começa

A resfriar.

Limos por todo o lado.

 

E a maré

Mostra o fundo

De algas poças e segredos

De quem sabe

Da maré baixa

E dos caminhos

E paisagens

Que existem

Escondidos pela superfície

Infinita.

 

É o chilrear das andorinhas

Misturado com o das ondas

Que celebram juntos

As saudades de voltar.

As gaivotas reclamam

Ciumentas.

 

E o teu sorriso

nasce puro

E rasga a dureza da tua cara

Vergada ao tempo.

 

O poeta é o mais corajoso.

Num tempo de cobardes,

vendidos ou escondidos,

parece que fala uma língua morta.

O poeta é o mais corajoso.

Equilibra meia dúzia

de palavras ao vento

e à fome do tempo.

 

Arrisca tudo.

 

 

 

 

 

 

 

Como surgiu o título? E como foram pensados e selecionados os conteúdos do livro?

 

O título faz parte de uma série de livros que tenho pensado sobre alguns tópicos e categorias filosóficas que me interessam. Os capítulos do livro surgem por consequência da conferência sobre surf que organizei em Lisboa em 2023. Faltam alguns autores, mas o tempo não espera por ninguém.

 

 

 

 Queres descrever resumidamente o livro? É o primeiro do género que surge?

 

 

O livro é bastante único. Existem alguns livros mais teóricos sobre surf, mas como este não. É uma obra bastante transversal e agrega perspectivas muito heterogéneas. E era isso mesmo que eu tinha em mente quando fiz o projecto e arquitectei o livro. Isto não se deve exclusivamente a mim, mas aos autores que responderam ao meu desafio, e também ao facto de que o surf é provavelmente um dos desportos que mais cresce no mundo, talvez porque o surf não seja apenas um desporto ou uma atividade física. Trata-se de uma cultura, de uma tribo recém-nascida e de uma identidade colectiva que prospera com a força de uma comunidade global ao ar livre.

Este sentimento de pertença é reforçado por pressupostos filosóficos, para além de uma evidência política e económica: o oceano é liberdade, e o mar é o último lugar livre do planeta. Pode-se ir à praia e a única coisa de que se precisa é uma prancha. Este facto implica, e assenta, noutras determinações significativas de dimensão fenomenológica e espiritual. Este livro reflecte um conjunto vasto e heterogéneo de ensaios que proporcionará ao leitor um vasto leque de perspectivas que partem da Filosofia do Desporto e se alargam também a perspectivas culturais, antropológicas, médicas, poéticas e existenciais.

 

 

"Seria excelente ter a oportunidade e as condições para voltar a fazer esta homenagem ao mar, ao sal e ao sol, à alegria de viver."

 

 

Sabemos que tinhas a ambição de incluir ainda mais conteúdos, mais pessoas ligadas ao surf internacional e nacional. Poderá ser o mote para uma segunda edição?

 

Isso seria excelente. Adorava fazer uma segunda edição da conferência. Mas, como já referi, a vida é breve. E como em Portugal muitas das coisas se realizam por amor à camisola, esquecemo-nos que essa substância tem um limite real. Veja-se o caso do atletismo desde o desaparecimento do Mestre Moniz Pereira, e poderia dar inúmeros exemplos. Ao aproximar-me do meu meio século de vida começo a sentir que não tenho a mesma força para remar contra a maré. Estou um pouco desiludido com a recepção do trabalho dentro da comunidade académica e filosófica, onde o desprezo, ressentimento e invejas muitas vezes se traduzem em silêncio. Em Portugal parece que deixou de existir crítica e atenção aos que estão fora do circuito óbvio.

É um processo de afunilamento e que seca tudo. O empobrecimento é geral. Parece que só existem alguns tipos de livros, e são todos geniais. Ironias da vida à parte, neste momento tenho que concentrar a minha energia e focar mais num recolhimento obrigatório que a escrita exige, mas que a solidão ensombra. Tudo tem um preço. Há que estar à altura de o pagar. Mas claro, seria excelente ter a oportunidade e as condições para voltar a fazer esta homenagem ao mar, ao sal e ao sol, à alegria de viver.

 

 

Algo mais a dizer?

 

No final só nos resta agradecer. A gratidão é fundamental para uma vida feliz e um passo decisivo para a paz. Assim, gostaria de começar por agradecer o vasto trabalho que tenho realizado em parceria com a Professora Luísa Ávila da Costa. Temos feito um caminho de serviço à comunidade científica ligada ao desporto e à filosofia, na produção de vários artigos, mas também na relação com a sociedade civil e no retorno e ligação a um público mais alargado e não-especialista (como por exemplo no podcast que criámos sobre filosofia do desporto: Desporto Vivido, Desporto Pensado). A Professora Luísa Ávila da Costa é alguém com um futuro muito promissor à sua frente, em termos nacionais e internacionais, e será certamente decisiva no futuro desta abertura do desporto ao pensamento e reflexão, na universidade e na sociedade portuguesa.

Nesse sentido, as pessoas são o que de mais valioso temos nas nossas vidas. Foi nessa conferência de surf que também conheci o Doutor Rui Rego e a Doutora Susana Alves-Jesus com quem tenho colaborado mais de perto no último ano. O apoio deles tem sido vital para dar continuidade ao meu trabalho no âmbito filosófico mais alargado. E dado que ainda tenho muito por fazer, o jogo está apenas a começar, estou no aquecimento. Ou como dizia um grande filósofo: ainda não começámos. Isto porque ao contrário dos atletas, na escrita, nas artes ou no pensamento em geral, o amadurecimento dá-se mais tarde. As coisas boas são as tardias. A máxima potência vem já perto do fim. E estamos sempre e continuamente a despedir-nos das pessoas, nunca sabendo quando chegará a nossa hora de embarcar. A humildade é uma forma superior de agradecimento. Espero honestamente que este livro possa ser um humilde contributo para o desenvolvimento desta modalidade.

Por fim, gostaria de terminar com agradecimentos à AOP pelo apoio logístico e humano à conferência que se realizou em Lisboa 2023. Uma palavra de agradecimento à Teresa Abraços, misto de recolhimento e abertura, uma daquelas pessoas que por serem muito e em profundidade nos deixam sempre à beira do abismo entre a admiração, a curiosidade e a descrença pela sua raridade nos dias de hoje. A generosidade, a bondade e a partilha começam a ser hoje uma lembrança vaga de algo que era cultivado no passado, como um gesto museológico. Há pessoas que têm uma luz tão grande dentro de si, que se surpreendem a si e aos outros, quando descobrem que o bem pode ser uma coisa contagiosa. Elas encarnam a eterna luta entre a luz e as sombras. Elas são os nossos faróis nas noites de desespero. Talvez um fardo pesado de carregar por vezes. Esperemos que o seu sorriso nunca morra.

Nesse mesmo sentido, agradecer ao Doutor João Moraes Rocha pela elegância antiga, pela gentileza e educação. Foi um encontro de salvação para mim saber que ainda existem em Portugal pessoas com este calibre e carácter. Como dizia Wittgenstein: ainda há tempo. E, claro, agradecer-lhe a si Pedro, por esta entrevista e pela nossa recente amizade que vamos construindo aos poucos. Um amigo novo é sempre um tesouro. Obrigado. Penso que a revista que dirige e todo o seu trabalho ligado ao surf tem sido uma valiosa ferramenta de desenvolvimento. Obrigado por isso também.

 

 

 

 

 

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