"O importante não é ganhar, é ter as bases do surf bem fundamentadas" - Kikas fala sobre Legasea Tour e missão de dar de volta às novas gerações
"São crianças com o mesmo sonho que nós, a mesma paixão".
No final do passado mês de Novembro deu-se por terminada a edição inicial do Legasea Tour, um projeto concebido por Frederico Morais e que consistiu num conjunto de eventos competitivos para as camadas mais jovens de surfistas, num formato inovador que permite que os surfistas possam aproveitar ao máximo o tempo na água, consolidando as suas bases no desporto e criando momentos de ligação entre atletas e pais, fundamentais para o desenvolvimento das suas carreiras.
Terminado o Ano Zero do Legasea Tour, que teve um feedback muito positivo, a Surftotal conversou com Kikas, que fez um balanço do projeto e partilhou as suas opiniões sobre os aspectos fundamentais no desenvolvimento de jovens atletas e nas suas relações com os pais, os aspectos do seu próprio percurso que moldaram o surfista que é hoje, e os planos para o futuro deste projecto que acaba agora de nascer.
"É o que eu tenho vindo a aprender com a minha carreira. Não temos que ser campeões agora quando somos mais novos.
Temos é de construir uma base sólida para estarmos preparados para quando quisermos arrancar com a carreira profissional...."
Muitos parabéns por esta iniciativa. Consideras importante uma proximidade cada vez maior entre os surfistas profissionais de elite com as jovens promessas nacionais?
Considero que sim. Ao fim do dia são crianças com o mesmo sonho que nós, com a mesma paixão. Com esta proximidade, com estes eventos, nós conseguimos ajudar com qualquer conselho que seja para a carreira deles no surf, ou mesmo fora do surf, e isso já é um orgulho enorme para nós. Pelo menos falo por mim, são fins-de-semana que eu adoro e momentos que guardo com muito carinho. Eu lembro-me de ter a idade deles, de ter esta paixão, do sonho que eu tinha, do quanto eu queria, lembro-me de como era bom quando tinha alguma proximidade com um surfista profissional, quando via alguém de quem eu gostava muito. Por isso se eu de alguma forma conseguir contribuir para a formação deles é uma vitória e só por isso o Legasea é um é um projeto vitorioso para mim.
Sabemos também que, com a tua agenda super preenchida, não deve ser fácil de gerir o tempo para este tipo de iniciativas, ainda por cima sendo que voltaste à elite mundial. Como consegues gerir tudo e ainda ter tempo para ajudar os mais novos?
Claro que a logística é complicada, mas acho que para aquelas coisas que nós gostamos e para aquilo que para nós faz sentido, uma pessoa arranja sempre um tempo. Eu tenho a sorte de ter uma equipa incrível que me deixa super descansado e que me ajuda a organizar tudo direitinho, e isso sem dúvida alguma que é uma mais-valia gigante. Tivemos dois eventos este ano na Costa da Caparica e no Porto, e acho que em ambos o feedback foi super positivo. Toda a gente adorou. Sinto que também para mim como pessoa, dá-me muito, e isso é super importante. Ver os miúdos todos a surfar, tudo bem disposto, ver os pais presentes a querer ajudar e a vivenciar aquilo com os filhos… Traz-me muitas memórias boas da minha infância e da minha carreira quando eu era mais novo. O tempo não há de ser um problema, conseguiremos sempre arranjar um fim-de-semana aqui ou ali para fazer isto.
"Os surfistas no Norte têm muita raça."
Sobre esta acção no Porto no fim-de-semana que passou, encontraste uma comunidade forte e com potencial?
Sim, encontrei uma comunidade cheia de potencial, com muito apoio dos pais, que é uma coisa que eu adoro ver. Vivem muito o sonho dos filhos, querem ajudar, estão presentes de uma forma saudável. O Marcelo da Onda Pura ajuda muito nestas iniciativas e é uma mais-valia gigante. Tivemos lá muitos atletas do Sebastião Furtado, que é um grande amigo meu, com quem competi durante muito tempo, com uma grande experiência. Cada vez mais começa a surgir uma nova geração no Norte com muito potencial. Eles têm boas ondas, têm muita raça e acho que é só uma questão de tempo até aparecer alguém a dar cartas.
"Para mim faz todo o sentido dar de volta às gerações mais novas."
Qual é o balanço das acções deste ano da Lega Sea Tour? Sabemos que em tempos tiveste uma escola de surf. Podes fazer uma comparação destas duas experiências?
O balanço foi super positivo. Para mim faz todo o sentido de certa forma dar de volta às gerações mais novas aquilo que o surf me deu durante muito tempo e continua a dar. É uma forma de passar uma mensagem aos mais novos, contar as minhas histórias, criar ali bons momentos em que eles possam surfar livres da pressão. Mesmo sendo um campeonato, todos têm igual oportunidade. Temos um momento que para mim é dos melhores, é o momento do tag-team com os pais. Uma pessoa vê ali momentos super especiais em família. Eu tive uma escola, e acho que são ações completamente diferentes. Infelizmente já não tenho a escola, apanhámos ali momentos complicados no início do covid. Como eu sempre gostei de estar ligado às gerações mais novas, acho que esta foi uma ótima iniciativa que eu criei com o Frederico Teixeira, que é o meu agente, que me tem vindo a ajudar a desenvolver este este projeto para que possamos crescer e fazer mais em mais lugares e com mais frequência. Este foi o ano zero. Tivemos estes dois eventos, e para o ano o objetivo é continuar e melhorar.
créditos: Tó Mané
Uma questão inevitável: O papel dos pais no sucesso da carreira de um surfista profissional pode ser fundamental?
Eu acho que sem dúvida alguma os pais têm um papel fundamental. Falo por experiência própria. Tenho uma grande sorte e acho que os pais podem facilitar muita coisa. São alguém que está ali para ouvir, para dar um abraço quando estamos mais tristes, para nos ajudar a ter a certeza que estamos no caminho certo, para nos motivar, e também quando é preciso para puxar-nos as orelhas e fazer-nos trabalhar mais. Não diria que é por isso que vão ser profissionais melhores ou piores, mas acredito que os pais podem facilitar muito, este é o meu ponto de vista.
Quais as características que consideras mais importantes na relação entre pais e atletas?
Eu acho que é importante haver aquele bonding entre eles, aquela confiança. Quando uma pessoa perde o pai estar lá para dizer “está tudo ok, acredita, continua no teu caminho, continua a surfar, isto é o que tu gostas, não são derrotas que vão definir aquilo que tu vais ser, seja como surfista seja como pessoa”. Porque às vezes para os mais novos é complicado, e foi isso que nós quisermos retirar do Legasea, que é uma competição um bocado diferente das outras que este jovens apanham no ano inteiro. Ninguém perde. Foram três rondas, surfam todos entre si e depois no final há um vencedor mas todos têm igual oportunidade. Nós queremos que eles foquem no surf dentro da água. E ter este tag-team com os pais serve também para os pais perceberem o quão rápido vinte minutos ou meia hora podem passar dentro de água. Porque às vezes nós queremos fazer o melhor mas é complicado, precisamos da ajuda do mar, precisamos daquele bocadinho de sorte, e quando estamos sob pressão não é fácil de lidar. E é importante os pais perceberem e sentirem isso. É normal, às vezes uma pessoa mete mais pressão nos filhos, mas esquecemo-nos de que já o próprio jovem está com muita pressão dele mesmo, já está nervoso do campeonato. Foi isso que nós quisemos explorar, e passar num bocado da minha experiência e do meu pai.
"O meu pai era e é o meu ídolo."
A tua família tem vindo a representar um papel importante na fluidez da tua carreira? Em que sentido? E o teu pai em particular, consideras que foi o teu primeiro mentor?
Claro. Eu tive uma sorte enorme na minha família, muito ligada ao desporto. Sempre fui muito bem encaminhado felizmente. E claro que sim, o meu pai sem dúvida alguma foi o meu primeiro mentor. Sem ele seria muito complicado estar onde eu estou. Acreditou muito em mim, tanto ele como a minha mãe e a minha irmã abdicaram de muitas coisas para eu poder seguir este sonho de ser de surfista profissional. Fazíamos viagens sempre baseadas em destinos de surf para eu poder a evoluir melhorar. O meu pai tentou-me sempre passar a melhor mensagem, o melhor feedback, mas mais do que o feedback em termos de surf foi o que ele me passou como pessoa: trabalhar, o espírito de sacrifício, nunca existirmos, acreditarmos. Esta resiliência que o meu pai me passou hoje em dia é uma das minhas grandes mais-valias para me ter tornado profissional. Da parte dos filhos, às vezes uma pessoa tende a discordar dos pais e estar contra, mas acho que também nos cabe ouvir e tentar adquirir essa sabedoria que os mais velhos têm. Nem sempre é fácil, não queremos ouvir, mas é importante termos atenção e isso. Foi isso que o meu pai me passou, não só pelo que me dizia mas também pelas atitudes dele. Ele era e é o meu ídolo, foi ele basicamente que me deu esta carreira. Continua a ser um mentor. Durante muito tempo foi pai-treinador, hoje em dia é só pai. Mas foi uma viagem preenchida de altos e baixos enquanto Júnior, que não trocava por nada. Foi isso que me deu a força para continuar a trabalhar e tornar-me no surfista que me tornei.
"Nós temos que adorar aquilo que fazemos, senão a competição pode-nos tirar a paixão pelo surf."
O elemento diversão no surf de competição deve ser também preponderante?
Eu acho que o elemento de diversão tem que estar sempre relacionado com o surf. Nós temos de adorar aquilo que nós fazemos, adorar passar muito tempo dentro de água. Na competição temos de arranjar uma forma de nos divertirmos ao fazer aquilo, não ser apenas um sacrifício, senão a competição pode ser dura e pode-nos tirar essa paixão pelo surf. Por isso acho que sim, especialmente nestas idades mais tenras onde o importante não é nós ganhamos campeonatos, mas sim termos as bases do surf bem fundamentadas. É muito importante irmos para um campeonato fazermos amigos, passamos muito tempo dentro da água, muitas horas a surfar mas também sempre com o bichinho para querermos a ganhar – não ganhar o campeonato mas ganharmos a nós próprios, em cada heat fazer uma nota melhor, tentar manobras novas. É importante alimentar isso. Foi o que nós quisemos passar no Legasea. Com este formato os jovens podiam estar mais relaxados para haver essa diversão dentro de água. Não era só o sentir “eu tenho que passar o heat senão só surfei vinte minutos e vou para casa”. Nós queremos que eles possam entrar na água com calma, apanhar as melhores ondas e fazer o melhor surf. Nestas idades para mim isso é o fundamental. É o que eu tenho vindo a aprender com a minha carreira. Não temos que ser campeões agora quando somos mais novos. Temos é de construir uma base sólida para estarmos preparados para quando quisermos arrancar com a carreira profissional.
"A fórmula mágica é a resiliência."
Como ultrapassar a componente da menor motivação, quando as ondas não estão como gostamos mais, mas sabemos que temos de ir lá para dentro para evoluir e ganhar ritmo, ou até competir?
Eu acho que a motivação no surf é quase igual a qualquer outro trabalho. Eu duvido muito que haja pessoas que acordem de manhã cheias de motivação para ir para o trânsito para depois irem para o escritório. Há dias em que temos sorte, há sol e ondas incríveis, como há outros dias em que em que está chuva, vento, frio e pequenino. Obviamente a motivação não vai ser a mesma, mas eu acho que há um treino em tudo em qualquer condição. Muitas vezes não é o surf em si, não é aquela hora que nós lá estivemos que nos vai fazer melhores surfistas, mas pelo menos vai-nos dar aquela resiliência e vai-nos dar a consciência de que estamos a trabalhar mais que os outros. Quando chegamos àqueles momentos decisivos isso pode ser essencial na nossa cabeça. Pode-nos fazer acreditar mais, ser mais serenos e tomar as melhores decisões, porque sabemos que nós trabalhámos para estar naquele momento. Não há uma fórmula mágica que nos faça acordar e ter a motivação todos os dias. Eu ainda estou para descobrir isso, eu também tenho muitos dias que me dá imensa preguiça. A fórmula mágica é a resiliência, e gostarmos daquilo que nós fazemos. O mar às vezes está grande, uma pessoa tem medo – ok, vamos combater o medo. Não temos que descer as ondas todas, mas pouco a pouco uma pessoa perde o medo, é mais uma batalha ganha. Ou mar está pequeno, temos mais dificuldades, somos surfistas mais pesados, não andamos tão bem – ok, então vamos treinar isso, vamos perceber como é que podemos melhorar isso. No fim do dia a resiliência ajuda muito em tudo. Claro que vamos ter sempre momentos em que não nos vai apetecer, e às vezes também é bom descansar. Mas acho que é importante não nos esquecermos que a paixão é aquilo que nos move. E se somos apaixonados pelo surf arranjamos uma vontadezinha para surfar em qualquer mar.