Waves In You - O projeto que vê o surf como passaporte para a integração social de crianças migrantes e refugiadas
Através do surf, estas crianças superam traumas e "fazem as pazes com o oceano".
O WAVES IN YOU é um projeto de surf therapy destinado a crianças migrantes e refugiadas, com o objetivo de promover o seu bem-estar psicológico e a inclusão social. O projeto combina estratégias de educação não formal e estratégias de ensino formal da prática de surf. As sessões são dinamizadas por uma equipa composta pelo instrutor de surf João Soares e a psicóloga Mariana Barbosa, aliando o apoio técnico ao apoio emocional.
A Surftotal conversou com João Soares e Mariana Barbosa para conhecer melhor a origem, o trabalho e o impacto do WAVES IN YOU nos seus participantes e na sua comunidade.
Como começou o projeto?
Mariana: Tudo começou numa conversa durante uma surf trip da FISH SURF SCHOOL. Nesta conversa, após umas ondas em Peniche, percebeu-se que havia vontade por parte dos donos da escola de surf (João Soares e Michele Costa) de criar um projeto de cariz social, e havia vontade de uma aluna da Fish (Mariana Barbosa) psicóloga e investigadora da Universidade Católica Portuguesa, de fazer chegar aos outros o impacto que sentia da prática de surf no seu próprio bem-estar físico e psicológico.
Seguiu-se um encontro no qual se juntou Luís Fernandes, investigador do Instituto Universitário de Ciências da Saúde e advogado, e deu-se início ao planeamento da intervenção e avaliação do programa WAVES IN YOU. O estudo piloto do projeto arrancou em parceria com a MEERU Aproxima (associação de apoio a comunidades migrantes e refugiadas), junto de cinco crianças provenientes do Afeganistão e de Marrocos.
"Um dos desafios foi, desde logo, chegar às crianças que mais pudessem beneficiar dos propósitos do projecto."
Quando começaram a trabalhar com os beneficiários, quais foram os primeiros desafios que surgiram? Como foram solucionados?
Mariana: Um dos desafios foi, desde logo, chegar às crianças que mais pudessem beneficiar dos propósitos do projeto, do ponto de vista dos potenciais benefícios terapêuticos e da promoção da inclusão social. A parceria com a MEERU Aproxima foi essencial, uma vez que pudemos contar a coordenação desta entidade para a identificação de potenciais beneficiários. Os voluntários da MEERU Aproxima tiveram um papel crucial durante todo o projeto, agindo como interlocutores privilegiados junto das famílias das crianças, pela proximidade afetiva e relacional com as mesmas. Os voluntários destas equipas disponibilizaram-se também para ajudarem na logística associada ao transporte e acompanhamento das crianças antes, durante e no final das sessões.
"o surf pode constituir uma ferramenta terapêutica eficaz na intervenção em problemas como o stress pós-traumático, a ansiedade ou a depressão."
Já se fala bastante em Surf therapy como uma ferramenta útil para vários grupos fragilizados. No caso específico do trabalho com crianças migrantes e refugiadas, como é que o surf pode ser útil?
João: Desde logo, pelo contacto com o mar, dando oportunidade de ‘fazer as pazes’ com o oceano e superar possíveis traumas decorrentes das dramáticas travessias marítimas feitas por quem procura proteção internacional na União Europeia. Mas mesmo para aqueles que não passaram por essa experiência potencialmente traumática, são imensas as adversidades, muitas vezes associadas a experiências de vitimação múltipla, quer no país de origem, quer nos contextos de transição, como sejam os campos de refugiados. Existem evidências científicas de que o surf pode constituir uma ferramenta terapêutica eficaz na intervenção em problemas como o stress pós-traumático, a ansiedade ou a depressão.
Mariana: É também reconhecido o impacto da modalidade na melhoria da qualidade de vida e na inclusão social. As crianças beneficiárias do WAVES IN YOU são de famílias que se encontram em processo de integração no nosso país. Para além dos desafios que são comuns a muitos cidadãos portugueses, como a precaridade económica, e o desemprego, estas crianças e as suas famílias deparam-se com desafios acrescidos, como é o caso da aprendizagem da língua portuguesa, da falta de uma rede de suporte familiar e social, e consequente isolamento social.
Na primeira fase do projeto, as crianças beneficiárias integraram a turma ‘WAVES IN YOU’, beneficiando de sessões planeadas em função das especificidades e necessidades do grupo-alvo. Foram também momentos promotores da interação entre pais e filhos (e.g. os pais vieram assistir às sessões e na última sessão também fizeram aula de surf, juntamente com os filhos), da relação com as equipas de proximidade, e da relação entre as crianças e as famílias beneficiárias do projeto. Na segunda fase do projeto, que está a arrancar agora, as crianças vão integrar turmas regulares de surf, com o objetivo de promover a sua autonomia e inclusão social.
A avaliação do impacto do projeto está a ser conduzida pelo Centro de Investigação para a Desenvolvimento Humano da Universidade Católica Portuguesa e pelo Centro de Investigação 1H-ToxRun do Instituto Universitário de Ciências da Saúde - CESPU.
"O desafio atual do projeto é a mobilização de entidades parceiras com vista ao seu crescimento."
Quais são os maiores desafios deste projeto?
João: As aulas de surf do projeto piloto foram totalmente suportadas pela Fish Surf School, no âmbito da responsabilidade social da empresa e um dos desafios que tínhamos foi desde logo superado pela generosidade de empresas e particulares: não sabíamos se as crianças que participaram no piloto iriam querer continuar a praticar surf, mas claro que tínhamos que lhes dar oportunidade de continuarem se assim o quisessem. Felizmente foi fácil encontrar patrocinadores para os nossos surfistas WAVES IN YOU, através do apoio da Coverflex, da Clínica Dentária Dra. Sónia Pombo, e um donativo particular, da Marta Ferraz Barbosa, que garante a continuidade da prática de surf das crianças do primeiro grupo.
O desafio atual do projeto é a mobilização de entidades parceiras com vista ao seu crescimento, de forma a que possa chegar a um maior número possível de crianças migrantes e refugiadas.
O mais gratificante?
Mariana: É difícil escolher o mais gratificante no meio de tantas dimensões incríveis que esta experiência piloto tem proporcionado: sobretudo às crianças, mas também às suas famílias e a cada um dos envolvidos, dos instrutores de surf aos voluntários, à equipa promotora do projeto.
Da oportunidade dada à Mahdia, de 7 anos, natural do Afeganistão, de aprender a surfar, numa altura em que no seu país são negados os mais básicos direitos às meninas, incluindo o direito à educação. Da oportunidade de ela e o seu irmão se habituarem ao Oceano, esse ilustre desconhecido no Afeganistão que motivou a família a descer toda a Avenida da Boavista a pé, assim que chegaram ao Porto, para poderem, pela primeira vez nas suas vidas, ver o mar. Do ar carrancudo do Omar, afegão de 6 anos de idade, quando chegou pela primeira vez à Fish Surf School, resmungando com tudo, do vestir o fato ao ter de transportar a prancha para a praia; como passou de berrar ‘ajuda-me!!!’, na primeira sessão, para pedir ‘ajudas-me, por favor?’ na segunda sessão, para na terceira sessão já apanhar ondas sozinho!
Mas, sobretudo, do relato comovido dos voluntários da MEERU de testemunharem o mar e o surf a colocarem um sorriso na cara do Omar. Ao ponto de numa atividade, quando lhe perguntaram qual era o sonho dele, respondeu que era ‘vir à praia todos os dias’.
"Talvez o surf seja o passaporte para a integração social."
Quais são os próximos passos para o projeto?
João: O projeto apresenta várias frentes dinâmicas, as quais não se ficam apenas pelo contacto dos participantes com a Surf Therapy, ou com o desporto em si, a vertente científica e a vertente social são preponderantes. A manutenção e a continuidade de todas elas são prioridade e pilares do projeto.
A longo prazo qual é o impacto que o projeto espera ter?
Mariana: A perceção de que talvez o surf seja o passaporte para a integração em Portugal.
João: Ajudar a criar sensibilidade social e um mundo mais humanitário.
Prende-se com os Objetivos da Agenda 2030, objetivos tão simples e que em 2023 por vezes parecem tão difíceis de alcançar. Da Agenda 2030, destacámos a interligação simbiótica com os objetivos “3ª Saúde de Qualidade”; “4ª Educação de Qualidade”; “5º Igualdade de Género”; que intrinsecamente se irão repercutir no “8º Trabalho Digno e Crescimento Económico”; “16º Paz, Justiça e Instituições Eficazes” e o conceito de “One Health”, segundo o qual a saúde dos seres humanos, animais, plantas e ambiente está interconectada e é interdependente.