“O surf adaptado é um excelente veículo de integração social” - Entrevista com Teresa Abraços sobre a SURFaddict
Teresa Abraços é a vice-presidente da SURFaddict.
A Surftotal organizou uma série de reportagens com ativistas que usam o surf como meio de gerar mudança em várias camadas da sociedade. Uma das figuras escolhidas para esta reportagem foi Teresa Abraços, uma das pioneiras do surf feminino em Portugal e vice-presidente da SURFaddict – Associação Portuguesa de Surf Adaptado. A SURFaddict foi precisamente o foco da nossa conversa.
Enquanto surfista mulher e pioneira no país, Teresa Abraços vê semelhanças no percurso do surf feminino e do surf adaptado. “Quando comecei a surfar, há quase 40 anos atrás, havia apenas umas 3 ou 4 raparigas no país todo”, conta. “Éramos vistas como aves raras. Aos poucos, sobretudo nos últimos 10 anos, a situação foi-se alterando e actualmente já é encarado com normalidade uma rapariga surfar. Já não há aqueles olhares intrusivos, misto de curiosidade e preconceito. É justamente nisto que vejo semelhanças com o surf adaptado”. Não é então de espantar que a surfista tenha escolhido empatizar e lutar por esta causa através do seu envolvimento na SURFaddict.
Mas o que é a SURFaddict exactamente?
O trabalho realizado por esta Associação está explicado de forma simples no seu lema: “Não queremos saber se é difícil, apenas se é possível”. Elaborando um pouco mais, “é uma associação sem fins lucrativos, que proporciona a prática do surf, de forma totalmente gratuita, a pessoas com qualquer tipo de limitação, seja ela motora, visual ou cognitiva.
Mas engana-se quem acredita que a sua missão resume-se ao surf. A prática deste desporto acaba por ser um veículo para atingir outros fins. “A ideia é fazer estas pessoas saírem de casa, socializarem e praticarem uma actividade física, acabando por desenvolver muitas outras competências”, explica Teresa.
Além dos benefícios pessoais para os praticantes, a existência de um espaço como este num local público e movimentado tem efeitos a nível da sociedade: “ajudamos a desmistificar a questão da deficiência, quebrando vários preconceitos”, ao mesmo tempo que “acabamos também por sensibilizar as autarquias e o público em geral, para a importância das acessibilidades. Por exemplo, lugares de estacionamento para pessoas com mobilidade reduzida, WCs adaptados, passadeiras e cadeiras anfíbias para acederem ao mar”, são apenas alguns exemplos enumerados por Teresa.
“Estas pessoas têm as mesmas necessidades que qualquer um de nós”
“É muito importante que se perceba que, apesar das limitações físicas ou cognitivas, estas pessoas têm as mesmas necessidades de qualquer um de nós – a vontade de socializar, de estar ao ar livre, de praticar uma actividade física, de se divertirem”, sublinha a surfista. O isolamento em casa ou em instituições “é péssimo para a sua saúde física e mental”, e a SURFaddict trabalha para que “tenham uma vida o mais completa possível, com momentos de lazer e interação social”. É uma responsabilidade que a SURFAddict assumiu, mas que Teresa encara como uma missão de toda a sociedade.
Com uma década de existência, a SURFaddict nunca se desviou da sua missão, mas Teresa reconhece uma maior consciência agora em relação à importância desta causa em comparação com o passado, pois agora tem uma visão mais clara das vidas que já foram mudadas – tanto dos participantes e as suas famílias como dos voluntários – através da Associação.
Ao longo destes 10 anos, a SURFaddict tem verificado “enormes benefícios”, principalmente “pela aquisição ou desenvolvimento substancial de inúmeras competências, tais como, autonomia, força, equilíbrio, perda de peso nalguns casos em que é importante, mobilidade, sentimento de pertença a um grupo”, entre outros factores, às vezes indizíveis. Todas estas melhorias de vida levam “geralmente a um aumento da autoestima, com todos os benefícios que daí advêm para a vida diária destas pessoas e das suas famílias”.
Com um trabalho bem feito, o aumento da responsabilidade
E quanto melhores os resultados do trabalho realizado pela SURFaddict, mais aumenta o sentido de responsabilidade. “Cada vez mais as pessoas conhecem e apreciam o nosso trabalho, por isso, até certo ponto, também esperam de nós mais respostas para as suas aspirações, já que reconhecem os benefícios no âmbito do surf adaptado recreativo, do surf terapêutico e até do surf adaptado de competição, que são precisamente as três vertentes da SURFaddict.”
via SURFaddict (Facebook)
O trabalho bem conseguido desperta interesse de cidadãos que pretendem contribuir enquanto voluntários, embora surjam também muitas dúvidas: “é muito comum terem dúvidas se o poderão ser, se não forem surfistas”, repara Teresa, além de demonstrarem “por vezes algum receio pela inexperiência em lidar com pessoas com diversos tipos de limitações, sobretudo numa atividade mais desafiante, como é o surf”.
Apesar de serem preocupações válidas, a SURFaddict trata de desmistificá-las. “É óbvio que precisamos de voluntários surfistas, mas também são muito válidos os voluntários mais leigos nesta área, seja para ajudar a vestir um fato, empurrar um participante na cadeira anfíbia até ao mar, ou até ficar na receção à beira-mar, para ajudar a segurar na prancha ou no surfista, depois do deslize na onda”.
A Associação tem o cuidado de constituir as equipas de forma a que os voluntários mais novos possam ter o apoio dos mais experientes, para que “o tal receio inicial que possa existir se vá dissipando”. “Gradualmente”, diz Teresa, “vão aprendendo a lidar com os diferentes participantes, traduzindo-se num momento extremamente agradável, tanto para os nossos surfistas, como para os próprios voluntários. Todos ficam viciados!”
Apesar de ter a base em Carcavelos, a SURFaddict esforça-se para levar o seu trabalho por todo o país. Uma vez por mês, de Abril a Outubro, levam o surf adaptado a diferentes praias do continente e às vezes das ilhas. Assim, a Associação expôs várias zonas do país ao surf adaptado e inspirou outras associações e clubes a desenvolver trabalhos semelhantes.
O resultado disto é a gradual normalização de pessoas com deficiência em espaços públicos, na água, a praticar desporto e actividades de lazer. “Aos poucos noto que a população em geral já começa a saber o que é e a encarar com alguma normalidade a nossa presença com pessoas diferentes nas praias”, nota Teresa, algo que considera “extremamente positivo”. Tendo ainda em conta o percurso da surfista, é para ela “muito gratificante, sentir que quebrei inúmeros preconceitos em relação a ser mulher e surfista, e agora contribuo também, juntamente com todos os nossos voluntários, para desmistificar a deficiência”.
Um trabalho gratificante, mas exigente
Apesar de gratificante, não deixa de ser um trabalho longo e complexo. O surf adaptado requer, por parte de quem com ele se envolve, um maior “sentido de responsabilidade, sensibilidade e empatia”, além de uma capacidade de adaptação e flexibilidade em aspectos como os horários, que podem ser difíceis de cumprir devido às logísticas e “ritmos diferentes de cada um”. Também as sessões de surf têm que ser planeadas ao pormenor. “Por vezes não é fácil coordenar a disponibilidade dos nossos surfistas, com a dos voluntários, as condições atmosféricas, mar e maré incluídos”.
“O confinamento foi extremamente penalizante”
É um trabalho com as suas especificidades, e também os efeitos da pandemia tiverem consequências específicas para a Associação. “Um dos pontos mais importantes que trabalhamos é precisamente a interação social, algo que ficou amplamente comprometido” durante os períodos de confinamento, que Teresa descreve como “extremamente penalizantes”. “Fomos tentando manter o contacto com alguns dos nossos surfistas, por vídeo chamada, embora não seja a mesma coisa. Não há nada como o contacto e toque reais”.
Também a paragem da actividade física “foi muito prejudicial”. “O sedentarismo é péssimo para qualquer pessoa”, explica a surfista, “ainda mais neste tipo de população com diferentes limitações, resultando muitas vezes num sério agravamento de determinadas patologias que já possam ter”.
Como tornar o mar e as praias em lugares mais inclusivos?
No que toca ao lugar da SURFaddict dentro da comunidade surfista, Teresa descreve uma reacção “bastante cordial” por parte dos surfistas quando a Associação está na água. “Geralmente incentivam e mesmo quando alguns destes surfistas lhes ‘estragam’ alguma onda, são bastante compreensivos”.
Mesmo assim, Teresa não deixa de desejar que a comunidade estivesse mais envolvida e comprometida com o surf adaptado “nomeadamente dedicando uma pequena parte do seu tempo livre a ajudar estes surfistas com diferentes limitações a surfarem. Nada melhor do que pormos a nossa paixão pelo surf ao serviço de outros que, caso contrário, com as suas dificuldades motoras e/ou cognitivas, não teriam acesso a este desporto”.
Mas acima de tudo, no que toca a atribuir responsabilidade, Teresa aponta para cima, para as autarquias, por exemplo, como as entidades que deveriam garantir maior inclusão, criando “as condições necessárias para que estas pessoas possam ter acesso às praias e ao surf". Teresa volta a salientar algumas das condições de acesso necessárias e que deveriam estar asseguradas nas praias: "lugares de estacionamento dedicados, casas de banho adaptadas, rampas de acesso ao areal, esteiras na areia para cadeiras de rodas e cadeiras anfíbias para levar estas pessoas para o mar”.
“O surf é um meio de integração social por excelência”
Estas são responsabilidades morais que podem ser assumidas em qualquer área de uma sociedade, mas Teresa Abraços vê no surf um pouco mais do que isso. O surf adaptado deve ser viabilizado não apenas por ser moralmente correcto fazê-lo, mas também por ser útil. “O surf adaptado é um excelente veículo de integração social”, clarifica. “Basta pensarmos que ao desafiarmos estas pessoas para virem surfar, fazemo-las sair de casa, conviverem e quebrarem inúmeros preconceitos que infelizmente ainda existem. Não há dúvida que o surf é um meio de integração social por excelência.”
Toda a informação sobre a SURFaddict pode ser encontrada aqui.
*Por Maria Kopke