Wave by Wave: Quando o surf é mais do que só surfar
A Surftotal organizou uma série de reportagens com ativistas que usam o surf como meio de gerar mudança em várias camadas da sociedade. Desta vez com a Wave by Wave.
Há realidades que não se contam, mostram-se para embatermos nelas. Esta foi uma das conclusões de Zé Ferreira, cuja vida competitiva o conduziu a uma viagem na África do Sul e mudou-lhe o rumo de vida em geral.
O surf não se cingia só a deslizar nas ondas, a apanhar aviões para explorar novos picos e a correr atrás dos melhores scores. Apercebeu-se disso quando passou uns dias com o fundador do projeto “Surfers Not Street Children”, considerado por si ainda hoje “a grande referência a nível de Surf Therapy no mundo”. Afinal o surf também acolhe, resgata, dá sentido de pertença e empurra copiosamente para o caminho certo.
O resultado? Os olhos com que foi, não foram os mesmos com aterrou em solo português. “Mostraram-me a realidade de Durban. Uma realidade muito dura no que toca a crianças sem abrigo. Incluíram-me no processo de reabilitação de alguns destes jovens através do surf. Eles tinham um programa em que os miúdos vinham da rua e, progressivamente, eram incluídos numa estrutura que tinha desde dormida a escola, porque estas crianças dormem na rua. Mas o grande catalisador para que os jovens começassem a ter uma estrutura saudável de vida era o surf. Começaram a querer substituir hábitos de adição como o álcool, por hábitos saudáveis”.
Créditos de imagem: Wave by Wave
Não há espaço para promessas vagas: da teoria à prática
Para além do material que já carregava consigo, trouxe ainda a ideia para Portugal e quando se predispôs a olhar para estas questões dentro de casa, denotou que também havia com o que trabalhar e essa foi “a maior surpresa”.
Embora a realidade seja diferente, aquando comparada à África do Sul, os problemas sociais têm a mesma vivacidade e, sobretudo, carecem de resposta. “Não tem tanto a ver com as necessidades básicas, mas do foro emocional, ao nível da saúde mental. Em Portugal, muitas crianças e jovens em situação de acolhimento, que são retirados das famílias, não têm as respostas necessárias, nem eficientes que os ajudem na sua reabilitação psicológica. Diz na Constituição Portuguesa que os jovens devem ter estes tipos de direitos e não de verifica na medida do necessário”
Mas aquilo que possa parecer um problema dos vários jovens e crianças que, por força do azar viram-se nestas circunstâncias, para as quais não existem soluções, como apoiar o seu desenvolvimento saudável, acaba por ter um custo social geral, direta ou indiretamente, pago por todos.
Essa foi a consciência que levou Zé Ferreira, aos 25 anos, a celebrar o passo seguinte: fazer nascer uma solução atendendo às circunstâncias portuguesas e levá-la a cabo. Hoje, tem consigo jovens com quem trabalha e acompanha há 6 anos.
Créditos de imagem: Wave by Wave
A junção do surf e da terapia ao serviço da saúde mental
“O mar e o surf são efetivamente dos mediadores mais poderosos que existem. Se fizeres isto com xadrez não vai ter tanto impacto.”
O mar e o surf são o meio para atingir o fim. Estes servem de ponte representando um anzol para quebrar o gelo e fazer nascer uma relação positiva, já que, segundo Zé, é através da relação de continuidade que os jovens são reabilitados. “Se meteres um miúdo no mar e no surf, ele vai gostar imenso mas não vai evoluir ao nível das competências sociais. Mas se meteres um jovem no mar comigo e com mais outro miúdo, aí ao longo do tempo já se pode falar de promoção de competências socio-emocionais e de melhoria de padrões de relacionamento”.
Mas se existem vários ingredientes para que a intervenção possa resultar, Zé Ferreira também precisa de mãos extra, uma delas chama-se Ema Evangelista e é a co-fundadora e psicóloga com quem organiza os programas, desde as aulas de surf, auxíliadas por mais intrutores, até às sessões de terapia. Estes acontecem sempre aos mesmos dias e às mesmas horas, para que haja a ideia de previsibilidade, da continuidade e da consistência, “a base para a criação de um lugar seguro”.
Créditos de imagem: Wave by Wave
No entanto, até a sessão de surf é trabalhada e pensada em conformidade. “Temos um primeiro momento de dinâmica em equipa que tem como objetivo estimular diferentes competencias emocionais, depois temos um momento de surf e existe a ideia de ter na sessão simultâneamente momentos individuais e em grupo. Posteriormente saem da água e na segunda dinâmica geralmente falamos sobre esse dia e acontecimentos relevantes para o grupo, se houve por exemplo ofensas ou alguém elogiou outro, lancham e vão embora”.
"Não estamos só a fazer uma intervenção terapêutica baseada no surf, estamos em constante contacto com os educadores e encarregados de educação destes miúdos"
Aquilo que começou como sendo um campo de verão nas casas de acolhimento teve um impacto tão positivo, sendo que os jovens estavam mais calmos, haviam reduzido os comportamentos de risco e aumentado os empáticos, que assistiu-se à expansão num piscar de olhos. A intervenção, agora anual, foi replicada para o Norte, em Vila Nova de Gaia, com jovens que estão em agrupamentos TEIP (Programa Territórios Educativos de Intervenção Prioritária), geralmente ao lado de bairros sociais e os resultados foram igualmente sorridentes.
Créditos de imagem: Wave by Wave
Os desafios caminham lado a lado mas não erguem muros
Mas, entre as preocupações de inclusão e planos de integração também se encontram desafios pelo meio, nomeadamente quando os grupos são muito diversos entre si. A dinâmica de um grupo coeso e a ambição de se criar um ambiente de confiança por vezes encontra entraves, com tentativas de destruição por parte dos jovens. Acrescem ainda as situações que atingem diretamente o coração. “Às vezes chamam-te nomes e nós, como adultos, sentimos essas coisas porque nos envolvemos e é verdadeira aquela relação que está ali a acontecer. Por isso às vezes é muito duro emocionalmente lidar com estes desafios, tendo em conta que cada sessão tem 5 horas”.
"O processo de acolhimento em si é um processo traumático, retiram-te da tua família e retiram-te a tua autonomia. Esses jovens precisam de apoio constante e, portanto, estarem 5 anos na Wave by Wave é uma coisa que faz todo o sentido."
Créditos de imagem: Wave by Wave
Há um passado onde Zé reconhece que “enquanto competidor via o surf como algo menos virado para a parte do impacto”, inclusive considera que os competidores, na sua maioria, acham que o surf é mais limitado. Além disso acredita também “que há muita gente que apanha lixo sempre que sai da água, e isso é um contributo cívico, mas ao nível emocional, como por exemplo levar uma criança que queira fazer surf e tenha menos possibilidade, é uma coisa que se vê menos. Mas não é porque não há vontade, às vezes é porque não há conhecimento ou há falta de tempo e a vida acontece.”
Mas agora quando põe os olhos no futuro diz que a lista de desejos, pode dividir-se em 3 eixos: Ao nível político, para que exista mais vontade política de modo a atender as questões das crianças e jovens em risco em Portugal. Ao nível cívico para que a Wave by Wave sirva de chamada de atenção para os problemas da saúde mental e “principalmente” que o percurso daqueles que passaram pela Wave by Wave se revirta em melhorias nas relações pessoais, familiares, académicas e profissionais. “Se todos aqueles que passem por nós levarem alguma coisa, isso já é aquela pinga no oceano que gratifica”.
E caminha-se nesse sentido. Estes são os frutos que quer que nasçam na árvore que criou e cujas raízes se estabelecem cada vez mais profundas e duradouras. Afinal, esse é o melhor score que se pode obter porque é inquantificável.
Créditos de imagem: Wave by Wave