Filipe Jervis: “Porque é que haveremos de ter um afastamento entre os juízes e os surfistas?” Jorge Matreno/ANS sexta-feira, 01 abril 2022 14:58

Filipe Jervis: “Porque é que haveremos de ter um afastamento entre os juízes e os surfistas?”

Entrevista exclusiva com Filipe Jervis após desistir da Liga Meo

 

Filipe Jervis declarou na passada quinta-feira que não iria competir mais na principal competição nacional, a Liga Meo. Na sua página de Instagram apresentou as causas mas a SurfTotal conversou com o atleta para ir mais a fundo na sua decisão e perceber quais são os problemas e quais as possíveis soluções.

Na primeira pessoa, Filipe Jervis começou por contar que não quis sujeitar mais a paixão do surf ao julgamento considerado por ele desatualizado pela “falta de capacidade de os juízes analisarem os pormenores técnicos”. “Dá ideia que pararam no tempo e que continuam com um julgamento igual ao dos anos 2000”, disse. Além de que para o surfista não há uma aproximidade entre atletas e juízes para se chegar a um alinhamento bem como perceberem-se os critérios de julgamento que acabam, segundo ele, por ser um tiro no escuro, contrariamente ao que acontece no Circuito Mundial.

No entanto, esta decisão de abandono não foi tomada do dia para a noite. Levou tempo, tempo esse que usou para “protestar” e procurar melhorar mas a falta de interesse do Conselho de Arbitragem, apontada por ele, falou mais alto.

Para Filipe Jervis, há o “burburinho” e os entre-olhares na competição, sintomas de algo não está bem mas não há pressão geral pelo “receio dos surfistas e treinadores expressarem publicamente os seus pensamentos com medo de isso vir a ter consequências a nível de julgamento ou de resultados.”

No final das contas, “obter uma resposta acabou por se tornar a maior dificuldade" e desistiu. De hoje em diante, Filipe Jervis irá dedicar-se a projectos como o Dakine Expedition 22 e Jervis Surf Experience, onde neste último “o objectivo máximo é dar formação aos miúdos do que é realmente o surf”. “Nem toda gente precisa de competir para ser surfista.”

Mostrou-se ainda aberto para “ajudar a melhorar o entendimento técnico de certas manobras”.

 

Filipe Jervis em Marrocos | Créditos de imagem: Pedro Mestre

 

 

P: Há quanto tempo começaste a reflectir sobre a hipótese de não competires na Liga MEO, e que dúvidas surgiram pelo caminho?

R: Quem me conhece sabe que nunca consegui ter a relação desejada com a competição, mas por motivos contratuais com patrocinadores e também porque sei que faz parte da evolução de um surfista, competi durante mais de 14 anos. Comecei por questionar se tinha a motivação para me dedicar a sério aos treinos e com o meu projecto da Jervis Surf Experience acabei também por não ter o tempo desejado para essa dedicação. Para além disso, desde o inicio do meu trajecto competitivo fui tendo, com alguma frequência,  “problemas” com o julgamento e sempre manifestei o meu desagrado à federação. No entanto, nos últimos anos, a situação geral do julgamento foi-se deteriorando e começou a haver cada vez mais polémica durante os campeonatos, e eu fiz parte de muita dessa polémica, e o ano passado na ultima etapa em Peniche, foi a gota de água e achei que era o momento para pôr um ponto final na minha participação na Liga Meo. Recentemente fiz parte de uma expedição a Marrocos, onde o objetivo era fotografar e filmar para uma das marcas que me patrocina, a Dakine, e confirmei de uma vez por todas que o que me dá realmente prazer no surf é viajar, fotografar e filmar. Por isso, quando cheguei a Portugal, falei com os meus patrocinadores e apresentei-lhes a ideia de deixar a competição e a resposta não poderia ter sido mais positiva. E assim foi, este conjunto de factores foram essenciais para tomar esta decisão.

 

 

"Gostava, primeiro de tudo, de deixar bem claro que não tenho nada pessoal contra os nossos juízes"

 

 

P: Na tua publicação, escreves que "a FPS e o seu conselho de arbitragem não têm conseguido acompanhar o nível de surf em Portugal" – Podes explicar o que queres dizer com isto?

R: Gostava, primeiro de tudo, de deixar bem claro que não tenho nada pessoal contra os nossos juízes, antes pelo contrário, até tenho relações bastante boas com todos eles e respeito muito o que fazem, e sei o quão difícil é o seu trabalho. No entanto, tenho que voltar a dizer que acho que não estão a conseguir acompanhar o nível de surf em Portugal. O nível está cada vez mais alto, há cada vez melhores surfistas em Portugal e estamos numa fase em que todos os pormenores contam nas decisões dos heats. A meu ver, a maior falha está na falta de capacidade dos juízes de analisar os pormenores técnicos de cada manobra e eu, que sempre fui um surfista muito mais técnico do que power surfar, fui bastante afectado com essa falha ao longo do anos. Não sei qual é a formação que a FPS dá aos nossos juizes, mas sinto que não estão (a maior parte dos juízes) preparados para o grande nível de surf que temos em Portugal. Dá ideia que pararam no tempo e que continuam com um julgamento igual ao dos anos 2000.

 

P: Encaras isto como uma situação de declínio, ou pensas que a FPS sempre teve estes problemas?

R: Não acho que seja uma situação de declínio, a meu ver passa mais por ser um julgamento de altos e baixos. Lembro-me que há uns anos, numa etapa no Porto, antes do campeonato começar, fizemos uma reunião entre surfistas e juízes, onde discutimos ideias e opiniões numa conversa aberta e honesta. Depois disso, tivemos grandes melhorias a nível de julgamento e pareceu-nos que a situação iria estabilizar, mas ao fim de 2/3 etapas, começámos a ver que a coisa estava a “descambar” outra vez. Cada campeonato é um campeonato e haverá sempre situações complicadas de julgar, mas quando começa a haver demasiado burburinho na praia, percebes que alguma coisa não está bem. Toda gente erra, todos os juizes cometem erros, mas o problema para mim, é a consistência com que esses erros acontecem e a dificuldade que é resolvê-los. Ao longo da minha vida escrevi muitos protestos, protestos estes que nunca deram em nada. Nunca houve uma alteração de resultados, nunca houve uma repetição de heats, e isso faz-te questionar: então para que é que me hei de estar a chatear e escrever protestos?. Mesmo quando, muitas vezes, em conversas com o chefe de juizes, eles admitem o erro. Parece que há um problema estrutural que vêm das instruções que eles têm da parte do Conselho de Arbitragem.

 

 

Filipe Jervis a competir na Liga Meo | Créditos de imagem: Jorge Matreno/ANS

 

 

"Em várias conversas com o presidente da ANS, o Francisco Rodrigues, tivemos a ideia de ter briefings com os juízes"

 

P: Falas em teres tido ideias em conjunto com a ANS para aproximar os surfistas e treinadores de juízes. Podes falar um pouco sobre elas?

R: Em 2021 o descontentamento com o julgamento era geral e por isso, sendo eu representante dos surfistas, senti que tínhamos que fazer alguma coisa para mudar. E foi aí que em várias conversas com o presidente da ANS, o Francisco Rodrigues, tivemos a ideia de ter briefings com os juizes. Houve inclusive uma reunião a meio do circuito do ano passado, com alguns treinadores, surfistas, o presidente da ANS e o presidente do conselho de arbitragem, para tentar fazer alguma coisa. No entanto, ao longo da reunião fomos percebendo que estávamos a ter aquela reunião para tudo menos para falar do julgamento. Houve inclusive surfistas que saíram da reunião a meio porque sentiram que nada estavam a fazer ali. Acabámos por ter uma reunião de 3 horas onde se falou acima de tudo de burocracias e de termos quase políticos, e onde nos apercebemos que o Conselho de Arbitragem tinha tudo menos vontade de aproximar os surfistas do juízes. Mesmo assim, não desistimos, esperámos até o circuito acabar para voltar a tentar reunir com os juízes. O objetivo inicial era fazer três briefings anuais, um antes do circuito começar para estarmos todos alinhados, um durante o circuito para ter a certeza que estava tudo a correr bem e um no final para fazer um apanhado dos pontos positivos e negativos do julgamento ao longo do ano. A ideia era demasiado ambiciosa, e devíamos ter tido noção disso. Para terem uma noção, em quase todos os desportos há um alinhamento entre os juizes/árbitros e os atletas. Pratiquei e acompanho demasiados desportos para saber que isto é verdade, ainda agora vi uma notícia a dizer que a liga de futebol inglesa (a maior do mundo) está a pensar pôr os árbitros a treinar e a arbitrar treinos de todos os clubes da liga para melhorar as relações entre jogadores e árbitros. Por que razão o surf há-de ser diferente? Porque é que haveremos de ter um afastamento entre os juizes e os surfistas? Resumindo, apesar da vontade dos juízes em ter esses briefings, com a falta de resposta do Conselho de Arbitragem, baixámos as expectativas e propusemos uma só reunião entre surfistas, treinadores e juízes. Obter uma resposta acabou por se tornar a nossa maior dificuldade, e acabámos por desistir quando percebemos que não havia realmente vontade do Conselho de Arbitragem em fazer qualquer tipo de reunião ou briefing.

 

P: O que achas que causa este afastamento?

R: Honestamente não consigo compreender. Como mencionei acima, os próprios juizes estavam dispostos a ter essas reuniões com os surfistas e treinadores, por isso não consigo mesmo compreender o porquê do Conselho de Arbitragem não querer essa aproximação. Eles certamente saberão, talvez a melhor opção seja perguntarem-lhes.

 

"Todos os protestos e emails que escrevi à federação ao longo dos anos foram com uma visão construtiva e nunca com intenção de criticar ou de mandar abaixo o trabalho feito pela federação"

 

 

Filipe Jervis em Marrocos | Créditos de imagem: Pedro Mestre

 

P: Ficámos a saber que no ano passado deveria ter havido uma reunião entre a FPS e a ANS sobre esta questão, que nunca se chegou a realizar. Sabes o porquê?

R: Como mencionei acima, a ANS fez de tudo para proteger os surfistas e tentar mudar alguma coisa, uma vez que o maior papel deles é a organização do circuito e não o julgamento, sendo esse um papel da Federação. Nunca soube o porquê dessa reunião não ter acontecido, mas sei que não foi por falta de tentativa da ANS.

 

P: Para além das situações que aconteceram contigo, tens exemplos de situações que tenham ocorrido com outros atletas, ou a nível geral da organização das etapas, que consideres errados ou injustos?

R: Quando há muito burburinho e pessoas a olharem umas para as outras com certas situações ao longo dos campeonatos, percebes que ocasionalmente há um descontentamento geral… Não sei se é publico e se temos acesso, mas basta olhar para o número de protestos que se fazem ao longo do ano. E na minha opinião não se fazem mais porque não alteram nada e por isso os surfistas e treinadores sentem que nem vale a pena sequer escrever um protesto. Desde que comecei a competir, os meus pais sempre me incutiram que tinha que exprimir o meu descontentamento independentemente das consequências, porque só assim é que as coisas podem mudar. Todos os protestos e emails que escrevi à federação ao longo dos anos foram com uma visão construtiva e nunca com intenção de criticar ou de mandar abaixo o trabalho feito pela federação. Desde que compito, sinto que há um receio geral dos surfistas e treinadores em expressarem publicamente os seus pensamentos com medo de isso vir a ter consequências a nível de julgamento ou de resultados.

 

"Há que ter a humildade de procurar ajuda e informação noutros lados, noutros países, noutros juízes para conseguir melhorar."

 

P: Como é que a Liga MEO e os critérios de julgamento aqui diferem de outros contextos (a WSL talvez seja a referência mais fácil, mas podes falar de outros contextos)?

R: Penso que a WSL faz um esforço para se actualizar a nível da parte técnica do surf. O nível do CT está tão alto que há uma necessidade deles se manterem a par das manobras progressivas. Os critérios são iguais em ambos os circuitos, mas a verdade é que os juizes internacionais dão mais prioridade aos detalhes e à parte técnica do que os nossos. O surf não é só surfar rápido e deitar água… Sim a velocidade e o power fazem parte do critério, mas a este nível há muito mais por onde explorar porque as condições são sempre diferentes de heat para heat e os critérios têm que ser ajustados consoante as condições do mar. Por exemplo, todas as manhãs antes de haver CT, os surfistas recebem uma mensagem do chefe de juizes com o critério para aquele dia em específico, a explicar o que é que vai contar mais e onde é que os surfistas podem potenciar os seus scores. Aqui estamos estagnados nos mesmos critérios há anos e acaba por ser difícil de heat para heat perceber o que é que os juízes querem. Nuns heats parecem dar notas altas a certo tipo de ondas e manobras mas noutros heats o critério parece diferente, e isso torna a vida dos treinadores e dos surfistas muito complicada porque acabam por se perder na falta de coerência de heat para heat.

 

 

P: O que achas que pode ser feito para melhorar o julgamento daqui para a frente?

R: Eu acredito muito na aproximação entre juízes, surfistas e treinadores, até porque já vimos, no passado, que resulta. Não posso falar muito porque não tirei o curso de juíz, mas dá-me ideia que podiam actualizar um bocado mais os juizes no que toca a manobras progressivas e à parte técnica do surf porque parecendo que não, é extremamente importante. Faz parte do trabalho do Conselho de Arbitragem arranjar pessoas que ajudem nestes campos, pessoas que dão esse tipo de manobras, que podem explicar aos juizes o quão difícil é de executá-las. Há que ter a humildade de procurar ajuda e informação noutros lados, noutros países, noutros juízes para conseguir melhorar. Os surfistas também o fazem, também procuram informação em treinadores de outros países e viajam para poderem comparar-se com o que se passa lá fora, por que razão os juizes não podem fazer o mesmo? Tudo o que é preciso é a federação investir em melhores formações, em procurar melhorar a formação dos nossos juízes com outras visões.

 

 

"Nunca me passou pela cabeça perseguir uma carreira enquanto juiz, mas se precisarem de mim estarei sempre disponível"

 

P: Agora que te vais afastar da competição, como são os teus planos para o futuro? Em algum momento da tua vida pensas que terias interesse numa carreira como juíz?

R: Neste momento vou-me dedicar ao meu projecto, a Jervis Surf Experience, onde o objectivo máximo é dar formação aos miúdos do que é realmente o surf. Nem toda gente precisa de competir para ser surfista. Mas é preciso ensinar algumas coisas que se estão a perder, como respeito e comportamento na água, e também incutir-lhes um pouco da historia do surf e quem foram e são os surfistas de referência mundial, desde competidores a freesurfers até longboarders e lendas locais de vários países. Esta massificação do surf fez com que a educação de surf, que eu tive quando comecei em 2000, se perdesse por completo. Para além disso, vou-me dedicar também a projectos como o Dakine Expedition 22, onde o objectivo é experienciar o máximo de aventuras possíveis de maneira a nunca perder a essência do surf. Desde que me tornei profissional, sabia que era esse o meu propósito no surf, mas também sei que graças à competição também tive acesso a viagens incríveis e a momentos fenomenais. Felizmente tenho o apoio total dos meus patrocinadores para perseguir o sonho de filmar e fotografar, sempre com o objectivo de dar o máximo retorno possível às marcas que estão comigo. Nunca me passou pela cabeça perseguir uma carreira enquanto juiz, mas se precisarem de mim para ajudar a melhorar o entendimento técnico de certas manobras, estarei sempre disponível.

 

Créditos de Imagem: Mauro Motty

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