Pedras no caminho? Jéjé Vidal guarda todas
Um atleta que sorri para a vida, mesmo quando ela não sorri de volta.
Edmilson da Cruz Camblé, ou Jéjé Vidal, como é conhecido, nasceu em 1998 em São Tomé e Príncipe. Em 2017 mudou-se para Portugal, com o sonho de seguir uma carreira profissional como surfista. A Surftotal conversou com ele para saber mais um pouco sobre como tem sido a sua vida desde que chegou a Portugal, quais têm sido os seus obstáculos e objectivos, e, no fundo, o que define Jéjé Vidal.
Foto: Manel Geada (@manelgeada)
“Tirei um pedaço de tábua de madeira da minha cama e fui aventurar-me ao mar.”
Jéjé preenche a sua história com detalhes que nos fazem sentir como se estivéssemos a ver um filme. Foi “numa manhã ensolarada”, conta ele, que nasceu o seu amor pelo surf. “Estava eu sentado à beira-mar, quando vi na água um português a surfar, era o Pedro Almeida”. Sem sequer saber que desporto era aquele, Jéjé já estava lançado para experimentar. “Fui para casa, tirei um pedaço de tábua de madeira da minha cama e fui aventurar-me ao mar”. A partir daí, estar na água começou a ser-lhe tão natural como beber água. “Não conseguia parar de pensar no surf. Era algo que me fazia feliz inconscientemente e que me dava uma energia muito positiva. Sempre que entrava no mar acalmava-me e esquecia-me de todos os problemas.”
A ideia de “largar tudo em São Tomé” e vir para Portugal surgiu quando, em 2017, Miguel Ribeiro, Paulo Pichel e Xenico Vidal “perceberam que havia uma vaga numa escola da Ericeira” que poderia ser interessante para Jéjé. “Não só o curso estava ligado ao mar, como a Ericeira é um local incrível de ondas”, e como o surf a esta altura já era um aspecto central da sua vida, a proposta foi feita. “Eu aceitei e embarquei nesta aventura.” Miguel e Paulo moravam em São Tomé e Xenico estava em Portugal, e cada um ajudou como pôde, de onde estava, para concretizar este plano.
Jéjé Vidal a elevar a bandeira de São Tomé aos céus
Pedras no caminho?...
…Guardo todas, um dia vou construir um castelo – uma frase erroneamente atribuída a Fernando Pessoa, mas que na verdade é de Nemo Nox, e que, apesar de ser um cliché, acaba por descrever bem a atitude de Jéjé perante a vida. Ao mudar-se para Portugal, deparou-se com os obstáculos típicos de quem chega sozinho a um novo país. “A comida é diferente, faz muito frio, a família está longe”. Uma das principais diferenças que percebeu tem a ver com o estilo de vida português: “O pessoal é muito fechado em comparação com o meu país e o ritmo de vida é todo mais intenso”. Não há, ao contrário de em São Tomé, a forma ‘leve-leve’ de estar no mundo. Mas Jéjé não tarda a enumerar também as coisas de que gosta em Portugal. Apesar de diferente, “a gastronomia é incrível”, e o país “é muito seguro”, algo que tem em comum com São Tomé.
“Em São Tomé, cada oportunidade que nos é dada,
agarramos e corremos atrás dela.”
Quanto à sua carreira enquanto surfista, também é este é um caminho cheio de pedras. Não passam despercebidas as diferenças de oportunidade entre atletas portugueses e atletas são-tomenses. Além de Portugal ser um país “muito mais constante a nível de swell”, com “altas ondas”, os surfistas de cá têm também “acesso a melhores equipamentos de surf; os mais novos têm muito mais ajuda e apoio dos seus pais”. Ao mesmo tempo, o atleta acredita que o seu país lhe deu uma vantagem no que toca à força de vontade. “Em São Tomé, cada oportunidade que nos é dada, agarramos e corremos atrás dela. Sinto que em Portugal dá-se menos valor às coisas que a vida nos dá. Nem sempre existe tanta vontade de correr atrás dos desafios.”
O seu castelo é feito dos objectivos que tem traçados para si, entre eles o de conquistar vários prémios no surf a nível mundial, focar-se nas Qualifying Series da WSL, e competir na Liga MEO Surf. Também tem objectivos que ultrapassam a sua carreira, como o de criar meios para ajudar as crianças em São Tomé.
Entre as pedras, uma rocha
Mas para se construir um castelo, há que parar de recolher pedras em algum momento e começar de facto a erguê-lo, o que pode ser complicado para Jéjé quando as pedras não param de rolar para os seus pés. Entre todas elas, surge uma rocha que não quer sair do lugar. Deu com ela pela primeira vez quando se viu impossibilitado de se inscrever na Federação Portuguesa de Surf. “Quando cheguei a Portugal, foi-me dito pela FPS que não poderia inscrever-me na federação, por ser são-tomense, mesmo tendo o título de residência em Portugal.” Com a ajuda do Sporting CP, que o patrocina, conseguiu resolver essa situação, e agora já é um atleta federado. Contudo, até ter nacionalidade portuguesa, continua sem poder competir na Liga MEO, situação da qual Jéjé é crítico.
“Um alemão ou um francês é mais português que um são-tomense ou um angolano?”
Foto: Juliano Cersossimo (@juliano.photo)
O regulamento da Associação Nacional de Surf constata que apenas cidadãos pertencentes à União Europeia, ou que tenham adquirido igualdade de direitos de cidadania portuguesa (estatuto reservado apenas a cidadãos brasileiros) podem competir na Liga Pro Surf. Jéjé pergunta-se: “Um alemão ou um francês é menos internacional ou mais português que um são-tomense ou um angolano?”
Jéjé Vidal está numa idade em que muitas vezes se definem as carreiras dos atletas, e como tal, a sua impossibilidade de competir no circuito mais importante do país onde mora causa-lhe dificuldades. “Esta situação tem afetado muito a minha carreira no surf”, explica. “Vim para Portugal com 18 anos e quase 5 anos depois, continuo com muito poucas oportunidades para poder evoluir na competição”. Pode competir no QS europeu, como aliás é um dos seus objectivos, mas aponta para as desvantagens de fazê-lo sem competir primeiro a nível nacional: “É como começar a competir na Liga Europa, em futebol, sem antes ter feito um jogo da primeira liga.”
“Porque havemos de ter medo de evoluir
e trazer um panorama muito melhor à liga?”
Jéjé já ouviu argumentos que explicam o porquê de não poder competir na Liga MEO, que se prendem com um receio de que esta se torne demasiado internacional. Mas Jéjé discorda: “Uma competição mais aberta irá aumentar a competitividade e elevar o nível do surf em Portugal e consequentemente o surf português. Por que havemos de ter medo de evoluir e trazer um panorama muito melhor à liga?”
Quem é, então, Jéjé Vidal?
O que define este atleta? São as pedras que se colocam no seu caminho? São os castelos que constrói com elas?
Responder a esta pergunta pode ser tão difícil como encontrar a origem de uma citação sobre pedras e castelos num universo tão efémero como o da internet. Ou, ao contrário, pode ser bastante simples, e o próprio vai respondendo ao longo desta entrevista.
“Apostar no meu trabalho é apostar num sonho.”
Jéjé Vidal é alguém que se esforça pelos seus objectivos, que não se deixa desmotivar, e que não dá um passo sem agradecer àqueles que o acompanham e ajudam na sua jornada. É uma pessoa que acredita que para mudar o mundo é preciso olharmos primeiro para nós próprios. Alguém que se quer superar, mas cujos sonhos vão além da sua autorrealização. Como ele mesmo diz: “Apostar no meu trabalho é apostar num sonho que deixa de ser só meu, para ser partilhado. Sozinhos vamos longe, mas em conjunto ultrapassamos limites.”
As pedras, as rochas, essas continuarão no caminho, e lidar com elas é uma tarefa mais fácil quando partilhada, como um sonho. De qualquer forma, Jéjé vai adiante, contorna-as, escala-as, ou guarda-as, sempre de olhos postos no castelo.
Jéjé Vidal quer aproveitar para deixar um agradecimento à família Macedo, à família Teixeira, ao Nicolau Von Rupp, e a todos aqueles que o têm ajudado nos seus objectivos.
Foto: Hugo Vidal (@hugoavidal)
Por Maria Kopke