Joana Andrade é a super-mulher que abriu caminho para o surf feminino de ondas gigantes
A propósito do Mês da Mulher, conversámos com a big wave rider portuguesa, Joana Andrade.
A propósito do Mês da Mulher, a Surftotal conversou com algumas mulheres que têm lugar de destaque no panorama do surf nacional. Passámos a palavra à big wave rider portuguesa, Joana Andrade, para ficarmos a par dos progressos no mundo do surf feminino e da experiência enquanto uma das únicas surfistas portuguesas de ondas gigantes.
Antes de o surf se tornar uma paixão para Joana Andrade, tornou-se imperativo que ela começasse a fazer desporto. Joana recorda os seus tempos de criança, e conta que era irrequieta, “não conseguia estar parada muito tempo”, e precisava de alguma actividade onde pudesse depositar essa energia. Esta é possivelmente a história de origem de muitos atletas que por aí andam, ainda que talvez seja menos comum acontecer com raparigas do que com rapazes, principalmente na geração de Joana. Cresceu numa altura em que “a mulher não podia fazer tanto desporto”, em comparação com os homens. Para os pais de Joana, isso não foi impedimento, e tentaram colocá-la “em todos os desportos possíveis e imaginários”. Menos no surf. Quanto ao surf, disseram, “Não vás”.
“Quando eu comecei a surfar, éramos pouquíssimas. Éramos umas quatro ou cinco”
É que o surf pode ter atingido o estatuto de modalidade olímpica no ano passado, mas a história nem sempre foi essa. “Estamos a falar de há 30 anos atrás”, lembra Joana. “O surf era considerado um desporto para marginais.” Sem a estrutura, a visibilidade e as escolas de surf que hoje existem, e sem o material adequado, “não foi fácil” para Joana “conquistar as primeiras pegadas no mundo do surf”. A surfista lembra-se de ter demorado quase três meses a pôr-se de pé – mas foi um take-off que mudou tudo para ela: “Quando me pus em pé, pensei ‘uau, é mesmo isto que eu quero fazer para o resto da minha vida’”.
Joana Andrade em São Tomé e Príncipe em 2020
Mas se a vontade de fazer surf já vinha por si só atrelada a uma série de dificuldades, mais obstáculos ainda se colocavam no caminho se a pessoa com essa vontade fosse uma mulher. Joana consegue contar pelos dedos quantas outras surfistas partilhavam com ela o line-up: “Quando eu comecei a surfar, éramos pouquíssimas. Éramos umas quatro ou cinco. Estava com a Patrícia Lopes, a Filipa Leandro, a Teresa Abraços, a Joana Rocha.” Apesar de entender que esta é uma situação que se verifica em vários desportos e em vários cantos do mundo, a surfista olha para o seu contexto social e histórico para encontrar uma possível explicação para o caso do surf em Portugal: “Não foi assim há tanto tempo que saímos de uma ditadura. A mulher não tinha tanto poder”. Esta transição, aos olhos de Joana, é um processo que ainda está em curso: “Ainda estamos a sair de uma ditadura”. A contrastar com isso, vinha a sensação que Joana descobriu através do surf: “Para mim foi uma libertação. Não sei explicar, era onde me sentia bem, era no mar”.
O encanto pelas montanhas nazarenas
Acontece que Joana Andrade não é “só” surfista, é também big rider. O surf de ondas grandes é uma variação do desporto ainda mais assustadora, e ainda mais dominada por homens. Joana conhece os motivos: “O mundo do surf de ondas grandes é ainda muito masculino, porque a verdade é que é um desporto que não é fácil. É preciso muita força, muita disciplina e uma equipa muito grande à volta”. Mais uma vez, conta pelos dedos o número de mulheres com quem se cruza na Praia do Norte: “Somos poucas aqui em Portugal e na Nazaré, somos quatro mulheres.”
“Quando estamos dentro de água não há masculino e feminino. Somos pessoas com os mesmos medos e os mesmos objectivos”
Ainda assim, acredita que, ao enfrentar as monstruosas ondas da Nazaré, o género faz muito pouca diferença: “Quando estamos dentro de água não há masculino e feminino. Somos pessoas com os mesmos medos e os mesmos objectivos”. Para ela “ser mulher não faz diferença na forma como encaramos o mar”, e para o mar fará ainda menos – a força da onda será a mesma.
Joana Andrade na Nazaré
A família que os big wave riders formam
Mas e para os outros? Os surfistas que a rodeiam, o público que assiste, como encaram eles uma presença feminina entre as montanhas nazarenas? Joana considera que as mulheres nesta modalidade têm a seu favor o facto de estes atletas serem como “uma família”, com um grande sentido de união, o que reduz o risco de ofensas entre si, sejam elas em forma de machismo, ou de outra natureza. Não que o machismo esteja completamente fora da equação, mas a surfista identifica-o mais como uma intenção de proteger. Recorda o episódio de Maya Gabeira, do seu wipeout quase fatal na Nazaré, e das críticas que recebeu em função disso. “Toda a gente começou a mandar bocas e a dizer que ela não estava preparada” lembra Joana. “Mas eu penso que não foi o caso”. Aqui, volta a fazer zoom out para olhar para o contexto: “Penso que o acidente que a Maya teve foi porque não havia a estrutura e segurança adequadas para ajudá-la. Foi no começo deste desporto novo. Se repararmos, só há oito ou nove anos é que este desporto nasceu em Portugal”.
Joana tem estado ausente da Nazaré porque está a recuperar de uma lesão grave, mas repara que há cada vez mais surfistas a congestionar o trânsito local, e, consequentemente, vai desaparecendo a tal ideia de família unida. Mesmo assim, no que toca à desigualdade de géneros, a atleta afirma: “Já houve mais, mas agora não há tanto.”
Joana Andrade na Nazaré
Surf feminino: Passado vs Futuro
Passaram anos desde que Joana Andrade começou a surfar, e o panorama do surf feminino mudou muito desde então. Hoje, se quisesse contar pelos dedos o número de surfistas portuguesas, já não conseguiria. E esta presença crescente de mulheres na água não só é um marcador importante do progresso do surf feminino, como também é um incentivo cada vez maior para as mais jovens, que se sentem mais motivadas a ir surfar. Joana sabe bem disso porque observa-o na sua escola, a Progress Surf School: “Quando há um grupo de raparigas, elas apoiam-se mais umas às outras e sentem muito mais confiança quando vão com um grupo de raparigas, porque a verdade é que quando vão com mais rapazes sentem-se um pouco inferiores e pensam ‘não vou conseguir surfar tão bem como eles’. É bom haver um grupo de raparigas e grupos mistos”.
“Até os próprios filmes já têm uma super-mulher em vez de um super-homem.”
O lugar da mulher no surf “começou a mudar bastante principalmente agora”, e para Joana, este é só o começo: “Acho que agora é que está a nascer a nossa era”. Há “cada vez mais mulheres a iniciar o desporto” e, mais uma vez, Joana vê este progresso como parte de um todo: “Hoje em dia eu acho que as mulheres estão a conquistar cada vez mais não só no mundo do surf mas em tudo, e se uma pessoa reparar, até os próprios filmes já têm uma super-mulher em vez de um super-homem.”
Com a sua escola de surf, e com o facto de ser pioneira, e a única big rider portuguesa, Joana não ignora o papel que ela própria tem nessa mudança, ainda que tenha sido surpreendente para ela aperceber-se disso: “Não estava à espera. Quando comecei nas ondas da Nazaré e nas ondas grandes foi porque tinha uma paixão, gosto de me desafiar e de puxar pelos meios limites. Mas claro que é sempre um orgulho ser a primeira e única mulher portuguesa, e espero abrir portas para a nova geração, porque já estou a ficar velhinha para isto.”
Joana Andrade protagoniza o documentário Big vs Small, realizado por Minna Dufton. Talvez seja ela própria a tal super-mulher dos filmes que tanto poder tem para inspirar as gerações futuras.
Por Maria Kopke