NÃO EXISTE NENHUMA CRISE, SÓ SE FOR CRISE RELACIONADA COM A FALTA DE FISCALIZAÇÃO
Entrevista sobre a crise no ensino do Surf em Portugal ...
Com o director da Formação de Treinadores de Surf Grau I e Grau II no Instituto de Treino Desportivo da Universidade Lusófona, Sandro Maximiliano.
A Surftotal tem aproveitado esta fase em que há mais tempo para reflectirmos, sobre nós mesmos e importantes assuntos que nos rodeiam, para colocar em debate temas do interesse comum na realidade do Surf Nacional e Internacional. Esta entrevista com Sandro Maximiliano vem no decorrer de um debate activo sobre o presente e o futuro do sector do ensino do Surf em Portugal que representa, quer queiramos quer não, a base da pirâmide do Surf !
“A questão não é termos escolas a mais ou regulamentação a menos, mas sim haver mecanismos de
fiscalização que possam contribuir para o controle e ordenação da actividade, principalmente em algumas
zonas do país em que as coisas continuam muito descontroladas.”
Tu como agente de formação que já formaste mais de 600 treinadores de surf em Portugal, podes fazer um ponto de situação? Qual a tua visão e perspectiva sobre a situação do sector?
A minha visão é boa, trata-se de um sector com uma curva ascendente muito grande desde 2014, altura em que o novo Plano Nacional de Formação de Treinadores entrou em vigor e permitiu que outras entidades pudessem formar treinadores para além das federações desportivas. Desde essa altura que nós dirigimos, de certa forma, este processo em Portugal, com o maior número de treinadores formados por ano (cerca de 100), privilegiando sempre uma proximidade muito grande com os surfistas e treinadores. Neste momento penso que o Grau I estabilizou um pouco, em 2019 já não houve tanta procura, até porque já estão várias centenas de treinadores formados no exterior. Por outro lado, ao começarmos a leccionar o Grau II também permitiu uma inevitável distribuição dos treinadores por ambas as formações.
Como tem sido dar formação a formadores do ensino do surf? Podemos traçar diferentes perfis de pessoas que procuram os cursos?
As turmas são altamente heterogéneas. Temos miúdos desde os 18 e 19 anos, até alunos com mais de 50 anos. Temos gente pouco diferenciada em termos académicos, com 7ºano ou menos, até gente formada no ensino superior, com licenciaturas e mestrados. Temos praticantes com pouca experiência, alguns com um ano de surf e ainda com níveis fracos e médios de prática, até surfistas com 30 anos de prática e vários competidores. Temos de tudo um pouco e esta enorme diversidade dentro de cada turma gera uma riqueza de partilha de informação e experiências muito interessante durante a formação. Talvez o único ponto em comum entre quase todos eles, cerca de 95% deste universo, é o facto de quererem todos trabalhar no surf recreativo, darem aulas de iniciação. Portanto, este nível básico de desenvolvimento do praticante está muito bem servido actualmente.
“As turmas são altamente heterogéneas.
Temos praticantes com pouca experiência, alguns com um ano de surf e ainda com níveis fracos e
médios de prática, até surfistas com 30 anos de prática e vários competidores.”
Quantos treinadores de Nível 1 e Nível 2 existem em Portugal? Formados pela Lusófona?
A contar com as turmas deste ano, no Grau I são 582 em Lisboa, 105 no Porto e 59 no Algarve, dá um total de 746 treinadores no terreno. Existe uma percentagem muito pequena, cerca de 1% que tem o curso por acabar. Para além destes, mais uns 15 treinadores formados através da nossa licenciatura em educação física, com a especialização em surf. No que diz respeito ao Grau II, que apenas iniciou em 2019, são 42 treinadores ainda em formação, a maior parte em Lisboa, mas também alguns do norte e do sul do país e 2 casos através da licenciatura. Uma nota a registar tem a ver com um número substancialmente menor no Grau I do Algarve, porque durante estes últimos anos, talvez devido a uma diferente fiscalização no sul do país, foi permitido trabalharem localmente sem cédula profissional e por esse motivo as pessoas não se inscreviam no curso. Essa realidade já melhorou, mas ainda acontece. Aliás, a falta de fiscalização persiste no país inteiro, embora com maior controle no Porto e em Lisboa. Mesmo perto de Lisboa, em Peniche por exemplo, a falta de fiscalização continua a ser uma realidade.
Tens lido as entrevistas na Surftotal sobre a crise no ensino do surf? Nota-se que há um certo diferendo entre a FPS e as Escolas de Surf em Portugal, nomeadamente aquelas que são representadas pelas AEP. Qual a tua opinião?
Não existe nenhuma crise, só se for crise relacionada com a falta de fiscalização. Trata-se de um sector que nos últimos anos tem dado dinheiro a muita gente: treinadores, escolas, surfcamps, hostels, até a animação turística que nunca deu importância nenhuma ao surf, agora descobriu uma óptima fonte de rendimento e ficaram muito interessados em participar. Todos têm ganho bastante dinheiro com o ensino do surf e a prova disso é a procura pelos cursos de treinadores. São quase 800 treinadores formados por nós desde 2014, mais os treinadores formados na federação e em outras entidades formadoras mais pequenas. Não identifico aqui nenhuma crise.
Tenho acompanhado com distanciamento esse diferendo, não é bem com as escolas directamente, mas sim com a direcção da associação que levantou algumas questões junto da FPS e não teve a atenção que pretendia ou merecia. Penso que um dos problemas levantados tem a ver com a centralização da direcção técnica da FPS numa única pessoa e isto gera inquietações e insatisfações. Aparentemente existe pouca abertura nessa direcção técnica para receber sugestões ou recomendações por parte de quem está no terreno, por exemplo responsáveis de escolas mais antigas e em diferentes zonas do país ou treinadores mais experientes. Os contactos realizados são fundamentalmente com intervenientes institucionais. Sabemos que a falta de recursos é um problema transversal, mas por exemplo, na minha opinião, seria muito interessante haver na FPS uma equipa composta por quatro ou cinco pessoas na direcção técnica, com conhecimentos diversos das actividades, desde o recreativo ao treino avançado, e que pudessem trabalhar em conjunto nas várias decisões a tomar no que diz respeito à formação, regulamentação, fiscalização e também de uma forma consertada nos contactos efectuados institucionalmente. Nós por exemplo, que somos a maior entidade formadora de treinadores de surf em Portugal e também temos uma escola de surf em funcionamento há quase 20 anos, nunca somos consultados. Por exemplo, para a construção do próximo programa referencial de formação específica, que vai orientar os cursos de treinadores para os próximos anos, seria muito interessante podermos colaborar, e não somos sequer consultados ou solicitados para participar. Mas apesar de tudo, acho que a FPS deve ser sempre respeitada. Tirar força à nossa federação não deverá ser nunca uma solução, porque significa tirar força e identidade ao surf e isso pode contribuir para que outras forças exteriores venham interferir na nossa modalidade. Se não preservarmos esta força corremos o risco de criar vulnerabilidades que nos podem colocar no mesmo saco de outras actividades que nada têm a ver com a nossa essência. Por exemplo, percebi que existem cerca de 300 escolas de surf inscritas na FPS e mais de 500 empresas de animação turística com actividade no surf, mas não inscritas na FPS. Isto para mim é tirar força à nossa federação. Afinal estas empresas não precisam do certificado FPS para obterem as licenças? Quer dizer que as regras não são iguais para todos na praia? Porque as escolas de surf também são obrigadas a pagar um registo na animação turística (rnaat). Enfim, penso que tudo isto merece a nossa atenção e havendo uma associação de escolas que pretende representar as escolas, estas posições devem ser exploradas sempre numa perspectiva proteccionista e de fortalecimento do surf.
“Tirar força à nossa federação não deverá ser nunca uma solução, porque significa tirar força e identidade ao
surf e isso pode contribuir para que outras forças exteriores venham interferir na nossa modalidade.”
Poderá a AEP ser uma solução para representar as Escolas de Surf em Portugal e defender junto da FPS assim como outras entidades, os deveres, direitos e regulamentação do ensino do Surf em Portugal? Um pouco à imagem do que a ANS faz com o surf profissional em Portugal?
A situação conflitual que gerou a criação da ANS é completamente diferente, não pode ser comparada com esta, nem vamos entrar por aí. Sobre a pretensão desta associação, é preciso tempo. Não é possível chegarem de repente com soluções para todos os problemas de todas as escolas. É preciso tempo para ganharem a confiança das pessoas e para todos nós percebermos quais são as reais convicções e orientações da organização. Porque o representar escolas pode não ser tão linear como parece. Por exemplo, representar escolas não é a mesma coisa que representar os treinadores, pode parecer igual, mas não é. Também é preciso tempo para conseguirem atrair um número ainda mais significativo de escolas associadas. Mas sei que têm boas ideias e bom conhecimento da actividade, têm estabelecido contacto com uma grande diversidade de escolas e treinadores, para além de contactos institucionais. Penso que podem contribuir para melhorar o trabalho que tem sido feito pela FPS, acrescentando elementos positivos às propostas já existentes ou mesmo apresentando coisas novas. Mas acrescento o seguinte: é fundamental que definam muito bem quais são os seus objectivos. Porque uma coisa são os interesses das escolas que lidam com turismo ou mesmo os interesses das empresas de animação turística que estão no surf, outra coisa são os interesses dos treinadores já qualificados e outra coisa ainda mais distinta, é organizar e promover formação de treinadores. Trata-se de orientações e ambições diferentes e uma dispersão de objectivos por parte da associação, caso exista, não beneficia em nada a pretensão de representar as escolas, muito pelo contrário, vai criar conflitos com outras entidades. Por exemplo, em meu entender, em nenhuma circunstância a associação se deve envolver na promoção e organização de formações de treinadores, na medida em que essa é uma competência exclusiva das entidades formadoras. Outro exemplo, no que diz respeito aos interesses dos treinadores qualificados, não podemos em nenhuma circunstância fragilizar ou ameaçar a figura e a profissão do treinador, porque pode haver a tendência de algumas escolas ou a própria animação turística procurarem mão-de-obra mais barata e menos qualificada para actividades de surf recreativas aparentemente menos exigentes. Em suma, estas realidades não se podem atropelar umas às outras e temos que perceber muito bem qual vai ser a interferência e os reais posicionamentos da associação relativamente a tudo isto. Embora possa haver também uma necessidade de rentabilizar a iniciativa da associação, mas o seu papel só fará sentido se tudo funcionar em harmonia conforme o velho ditado, cada macaco no seu galho.
Há por vezes queixas sobre a qualidade do ensino do Surf por algumas escolas e operadores (mais na altura do verão)? Na formação dada por ti e pela tua equipa há algum livro de regras e boas práticas (da FPS) que obriga estes operadores do ensino a seguirem, garantindo a qualidade do ensino?
As escolas que não trabalham com qualidade vão fechar portas ou então vão ter que melhorar substancialmente as suas metodologias e os seus recursos. Não temos lugar para quem presta um mau serviço, designadamente quem não tem treinadores qualificados, quem não cumpre com licenciamentos, quem não tem noção de como estruturar a actividade, entre outras obrigações. Eu costumo dizer nos cursos de treinadores que os alunos das escolas de surf são cada vez mais exigentes e cada vez mais sabem diferenciar um bom e um mau serviço. Dou o exemplo dos estrangeiros sem nenhuma experiência com o surf mas que vêm dos desportos de inverno, as estâncias de ski e snowboard estão bem estruturadas nas suas escolas e no seu ensino. Esses alunos entendem o que é trabalhar bem, podem ser enganados uma vez, mas já não vão ser enganados a segunda vez, mesmo no caso de terem apenas uma má experiência, é uma péssima imagem para nós. Honestamente penso que as escolas sem noção de qualidade já são muito poucas, porque já houve muita formação, há gente muito boa no terreno e também os bons acabam por afastar os maus. Sobre a qualidade do ensino nós temos documentos de apoio com diversas orientações não só técnicas, mas também de boas condutas durante o processo. Podem replicar, afixar nas escolas, promover como entenderem. Recentemente, até fizemos um poster sobre 10 regras de segurança na prática do surf, foram impressos mais de 500 exemplares na faculdade e fomos distribuindo pelos vários alunos e escolas parceiras. Coloco em anexo nesta entrevista.
És da opinião que devia ser obrigatório afixar essas regras nas escolas de surf, de forma a que os iniciantes (clientes) percebam que estão a entrar numa escola própria com as condições de ensino próprias?
Acho que já é tempo de criarmos normas de diferenciação das escolas por tipo de actividade desenvolvida (ensino/treino) e dentro de cada um destes grupos serem também diferenciadas com selos de qualidade. Vou deixar aqui duas propostas: Em primeiro lugar, catalogar as escolas de acordo com o tipo de serviço que prestam. Primeiro grupo, escolas que trabalham exclusivamente no surf recreativo, surf adaptado incluído; Segundo grupo, escolas que apenas treinam surfistas intermédios e avançados e competição; Terceiro grupo as escolas que desempenham ambas as dimensões de trabalho. Não concordo em criar uma divisão à parte para a animação turística, eles devem encaixar-se na nossa estrutura e neste caso enquadram o primeiro grupo. Em segundo lugar, dentro de cada um destes grupos podemos definir entre três a cinco selos de qualidade, com cores e níveis diferentes na classificação das diferentes escolas. Essa atribuição seria feita de acordo com vários critérios a definir: currículo global da escola, quantos praticantes/atletas já ensinou/treinou, quais os níveis de sucesso alcançado, qual a qualificação dos seus treinadores responsáveis e dos seus treinadores contratados, os anos de funcionamento, condições da estrutura física da escola, número de acidentes ocorridos, entre outros critérios a ponderar. Esta proposta é de fácil resolução e rapidamente todo este universo ficaria bem organizado e bem estruturado não só para nós, mas também e fundamentalmente para o exterior. Por outro lado, fazer a mesma coisa aos treinadores. Já apresentei esta proposta recentemente numa conferência na faculdade. O próprio IPDJ não tem solução para esta fragilidade, as cédulas de treinador são todas iguais, não diferenciam em nada os treinadores bons, dos médios e dos mais fracos, no que diz respeito ao aproveitamento obtido na formação curricular e nos estágios. Tanto faz um aluno ter média final no curso e no estágio de 19 valores, ou outro aluno com média final de 11 valores, ambos obtêm exactamente a mesma cédula de treinador, sem nada discriminado ou diferenciado. O único documento que discrimina é o diploma de qualificação do curso, passado pela entidade formadora, mas que fica guardado numa gaveta e nunca mais ninguém olha para ele. Para mim é fácil resolver isto, atribuir também selos de qualidade aos treinadores, neste caso em função do aproveitamento obtido no curso (notas finais curriculares e estágio). Este selo dem qualidade é atribuído pela própria entidade formadora. Mais tarde, na revalidação da cédula profissional após cinco anos, através de formação contínua e com a experiência entretanto obtida no terreno, esse selo seria revisto e se comprovado, elevar o selo de qualidade do treinador. São propostas simples, mas que podem ser soluções fantásticas para ordenar a nossa actividade e fazer justiça para quem verdadeiramente tem valor e tem qualidade. Por exemplo, para mim a criação de plataformas apenas com os contactos dos treinadores para poderem ser contratados, é um fiasco, não resolvem nada. Mais uma vez, estão todos no mesmo saco e não temos nenhuma possibilidade de diferenciá-los em nenhuma perspectiva.
“Honestamente penso que as escolas sem noção de qualidade já são muito poucas, porque já houve muita
formação, há gente muito boa no terreno e também os bons acabam por afastar os maus.”
Na tua opinião há escolas a mais em Portugal? Há regulamentação suficiente? a mais? a menos? o que precisa de ser feito, na tua opinião, para que haja um ensino do surf de qualidade e organizado no nosso País?
A questão não é termos escolas a mais ou regulamentação a menos, mas sim haver mecanismos de fiscalização que possam contribuir para o controle e ordenação da actividade, principalmente em algumas zonas do país em que as coisas continuam muito descontroladas. As nossas ambições de controlar o ensino do surf em Portugal ficam comprometidas quando leccionamos matérias sobre regulamentos e licenciamentos e apregoamos a necessidade e a obrigatoriedade da qualificação dos treinadores, mas depois em várias zonas do país continua a não existir fiscalização e continuamos a ver escolas, por exemplo dirigidas por estrangeiros, a funcionarem como se estivessem na terra de ninguém. Penso que apenas os mecanismos de fiscalização podem melhorar esta realidade, porque nós não podemos ser formadores e fiscais ao mesmo tempo. Naturalmente que esta também é uma preocupação da FPS que deverá persistir e pressionar no sentido de criar condições para melhorar este aspecto. Aliás, penso que uma das questões levantadas pela associação de escolas é justamente esta. Algumas zonas sensíveis como o Algarve, as praias da Costa Alentejana, toda a zona de Peniche e várias outras zonas no norte do país, precisam urgentemente de um maior controle. Para acabar, digo apenas que as minhas opiniões valem o que valem, não são verdades absolutas e não pretendo em nenhuma circunstância fragilizar ninguém, apenas tentar contribuir para que possamos dentro da nossa esfera e com o mínimo de interferência exterior possível, controlar e ordenar o que é nosso.