O crescimento das escolas de surf em análise com a AESDP
Com o tempo quente a chegar é imperial debater as problemas e eventuais soluções…
Conforme prometido aquando da publicação da entrevista com João Aranha, presidente da Federação Portuguesa de Surf, relativamente o crescimento das escolas de surf, que está acessível aqui; eis que nesta quarta-feira de maio aproveitamos para partilhar uma segunda entrevista sobre o mesmo tópico, desta vez com Afonso Teixeira, diretor executivo da Associação de Escolas de Surf de Portugal (AESDP) que foi formada em dezembro do ano passado.
O crescimento das escolas de surf tem sido enorme e está em consonância com o aumento do turismo em Portugal. No entanto, algumas praias e spots começam a ficar lotados. Como se lida com esta situação?
De facto, as escolas de surf têm crescido a um ritmo estonteante ao longo da última década, o que está diretamente relacionado com a crescente procura turística nesta área e com a imagem de Portugal como destino de surf que tem vindo a ser promovida. Naturalmente, há algumas praias que têm vindo a sentir mais este crescimento do que outras, por diversas razões, e onde a questão da sobrelotação das mesmas é cada vez mais pertinente. Contudo, não se pode dizer que haja uma solução universal que se aplique a todos estes locais, uma vez que todas as praias têm diferentes características e dinâmicas. Na realidade, a complexidade destas questões foi a razão que nos levou à criação da Associação de Escolas de Surf de Portugal (AESDP), por acreditarmos que a solução passa pelo envolvimento e consulta dos diversos utilizadores das praias, de forma a garantir a satisfação de todos. Neste sentido, o nosso papel tem passado por defender a implementação de uma série de medidas nos locais onde este problema é mais evidente, tais como a definição de critérios mais claros e transparentes para a criação de escolas de surf – dando garantias de segurança e qualidade dos serviços prestados –, o cálculo das capacidades de carga das diferentes praias e dos diferentes tipos de utilização das mesmas, a educação passiva e ativa dos surfistas visitantes, além de mecanismos que garantam um bom relacionamento entre as escolas a operar em determinada praia.
Quem é a entidade responsável por passar licenças às escolas de surf?
A nível legal, as escolas de surf enquadram-se em dois domínios destintos: o desporto e a animação turística. Neste sentido, uma “escola” de surf deverá estar registada na Federação Portuguesa de Surf, por desenvolver uma atividade de formação de surfistas, o que se enquadra no âmbito federativo. Por outro lado, uma grande percentagem dos alunos destas empresas é composta por estrangeiros à procura de experiências de iniciação ao surf, razão pela qual esta atividade foi incluída no domínio da animação turística. Na verdade, este panorama legal é um dos principais motivos de discordância entre os operadores de ensino de surf, uma vez que a definição de uma atividade de animação turística de surf não está devidamente definida, dando oportunidade à exploração deste “vazio” legal. Além disso, as Capitanias são responsáveis pelo licenciamento dos operadores de ensino de surf nas praias da sua jurisdição, sendo entidades regulatórias independentes e, portanto, estabelecendo critérios de licenciamento muito variáveis. Contudo, ao nível das Capitanias falta ainda um enquadramento mais adequado da atividade, sendo que ainda não está considerado pela Autoridade Marítima Nacional o licenciamento de escolas de surf, pelo que as Capitanias se vêm obrigadas a recorrer a outro tipo de licenciamento (por ex.: licença de eventos desportivos) para emitirem às escolas de surf. Isto faz com que cada Capitão tenha que decidir qual a forma de licenciamento que considera mais adequada, o que faz com que as taxas pagas pelo licenciamento sejam também variáveis por todo o país, podendo ir de 30 a mais de 300 euros trimestrais.
"(...) o nosso papel tem passado por defender a implementação
de uma série de medidas nos locais onde este problema é mais evidente"
De que forma se está a pensar na sustentabilidade deste setor?
Neste momento, penso que todas as entidades envolvidas na gestão e regulamentação deste sector estão já sensibilizadas para os problemas que existem nas nossas praias e dispostas a encontrar soluções sustentáveis para os mesmos. Nós temos vindo a defender a criação de um grupo de trabalho, composto por elementos das diversas entidades relevantes, que se reúna periodicamente para encontrar soluções práticas eficazes. Acreditamos que a criação desse grupo de trabalho é algo cada vez mais urgente e vamos continuar a lutar para que isso aconteça. Além disso, pretendemos trabalhar em cooperação com a Federação Portuguesa de Surf, com quem já efetuámos diversos contactos e de quem estamos à espera de respostas concretas no sentido de um trabalho conjunto, por podermos contribuir com os resultados de um trabalho constante de auscultação dos operadores de ensino em território nacional, podendo comunicar e proteger os seus interesses, algo absolutamente determinante para que se caminhe em direção à sustentabilidade.
Qual o critério para passar uma licença a uma escola? Vamos imaginar que, por exemplo, na Praia de Carcavelos, onde já existem muitas escolas a operar, eram solicitadas mais 10 licenças. Não fazendo sentido, isso é possível?
Os critérios de licenciamento definidos pelas diferentes Capitanias são, em alguns casos, muito variáveis entre si. De uma forma geral, verifica-se que todas as Capitanias exigem comprovativos do Registo Nacional de Agentes de Animação Turística e de seguros de responsabilidade civil e acidentes pessoais. Além destes requisitos, a maioria das Capitanias exige ainda que os treinadores das escolas tenham formação certificada pelo Instituto Português do Desporto e Juventude, plano de emergência e kit de primeiros socorros. Já um número menor de Capitanias exige comprovativos de situação regularizada perante as Finanças e a Segurança Social e de registo da escola na Federação Portuguesa de Surf. Cumprindo com todos os critérios definidos pela Capitania da jurisdição onde pretende operar, um agente de ensino de surf estará elegível a obter licenciamento, dentro do número máximo de licenças definido por essa Capitania, caso se aplique. No exemplo referido, da Praia de Carcavelos, a Capitania do Porto de Cascais definiu um número máximo de 40 licenças, que estão já atribuídas na totalidade para a época balnear de 2018, pelo que não será possível o licenciamento de novas escolas para esta praia. É de destacar que o caso mais preocupante a nível nacional é o de Peniche, uma vez que, apesar da grande concentração de operadores de ensino de surf, não foram ainda definidos limites de licenciamento, pelo que todos os operadores que cumpram com os critérios básicos estabelecidos conseguem obter licença para operar nas praias do concelho. Importa que se crie o modelo de licenciamento de escolas de surf para ser utilizado pelas Capitanias, de forma a que se estabeleçam critérios uniformes e transversais em todo o país para a obtenção de licença para operar, cujas taxas sejam também uniformes independente das praias para as quais seja emitido o licenciamento.
Existe um estudo ou sabe-se qual a capacidade de cada zona do país? Ou a análise é feita "a olho”?
Neste momento, as capacidades de carga oficiais das diferentes praias para a prática de surf são definidas pelas respetivas Capitanias, em editais próprios. Esta prática foi iniciada pela Capitania do Porto de Lagos, que em 2014, junto da Associação de Escolas de Surf da Costa Vicentina, definiu o número limite de escolas de surf que poderiam operar simultaneamente em segurança. Rapidamente, outras Capitanias aperceberam-se dos benefícios que esta forma de gestão dos espaços representa e, atualmente, existe um total de 6 Capitanias (num universo de 28) que limitam o licenciamento a operadores de ensino de surf com base nas capacidades de carga das praias da sua jurisdição. O processo de definição destas capacidades de carga tem sido feito sob consulta dos operadores locais, não havendo uma metodologia aceite universalmente. Na verdade, alguns estudos nacionais e internacionais têm apresentado sugestões de cálculo das capacidades das praias para a prática de surf, não se podendo, contudo, aceitar nenhuma delas como sendo consensual, por se basearem na sua maioria em pressupostos tipicamente utilizados em meios estáticos, sem considerar a dinâmica e variabilidade do meio marítimo. Idealmente, a gestão e delimitação destes espaços deverá ser feita de uma forma diária e em consonância entre operadores de ensino de surf e nadadores salvadores, de forma a salvaguardar a segurança e qualidade da experiência dos banhistas, surfistas e demais utilizadores das praias, consoante as condições verificadas e as alterações das mesmas ao nível das marés, ondulação, vento e correntes.
"(...) o caso mais preocupante a nível nacional é o de Peniche, uma vez que,
apesar da grande concentração de operadores de ensino de surf,
não foram ainda definidos limites de licenciamento"
- No início do ano, a AESDP promoveu várias sessões de esclarecimento pelo país.
A quem corresponde a responsabilidade de fiscalizar no local se estas têm tudo em ordem para operar, se estão a cumprir as regras, etc.?
Existem diversas entidades com poder para fiscalizar as escolas de surf, dependendo do domínio de atuação que se considere. Cabe à Polícia Marítima fiscalizar, na praia, o cumprimento da regulamentação e gestão dos espaços definidos em edital pelas Capitanias. Por outro lado, a ASAE encarrega-se de fiscalizar as atividades económicas do sector turístico e, portanto, aplica-se também a estes agentes, a autoridade tributária poderá fiscalizar o cumprimento ao nível fiscal e a segurança social poderá intervir no domínio dos contratos celebrados com os trabalhadores, tal como em qualquer outra empresa. Já a Federação Portuguesa de Surf tem poder para fiscalizar se a formação dos treinadores está de acordo com a legislação, ou seja, se esta é acreditada pelo Instituto Português do Desporto e Juventude, de acordo com a Lei nº 40/2012 e o Decreto-Lei nº 248-A/2008.
Pelas características de alguns spots, não deveriam as aulas de surf ser interditas em algumas zonas?
Naturalmente, existem spots de surf que, na maioria dos dias, não apresentam condições para a realização de aulas de surf em qualidade e segurança. Contudo, não é nesses locais que o problema de sobrelotação de escolas de surf se tem tornado relevante, uma vez que, de uma forma geral, os operadores de ensino de surf são também eles surfistas e, portanto, sensíveis aos riscos que algumas praias podem representar. Contudo, torna-se cada vez mais importante a preservação de determinados spots para o uso de free surfers, de forma a garantir a satisfação dos surfistas locais e a qualidade da experiência dos mesmos. De uma forma geral, deve-se considerar a interdição de aulas de surf em alguns spots de elevado valor para a comunidade surfista local, algo que a grande maioria das próprias escolas de surf compreende e defende. Existe já um bom exemplo neste sentido, nas praias da jurisdição da Capitania de Lagos, que sob consulta da Associação de Escolas de Surf da Costa Vicentina, definiu 18 praias nas quais não deverão ser conduzidas aulas de surf durante a época balnear, não emitindo licenças para o efeito.
"De uma forma geral, deve-se considerar a interdição de aulas de surf
em alguns spots de elevado valor para a comunidade surfista local"
Vamos imaginar, por exemplo, um outro cenário: um surfista entra numa praia super lotada com escolas de surf, algo típico no período de verão, e leva com uma prancha de um aluno ficando gravemente ferido ou podendo até morrer. De quem é a culpa? Que medidas estão previstas neste caso?
No caso de uma escola de surf que esteja a operar cumprindo todas as regras definidas por lei e em edital, num espaço definido para atividades de ensino de surf, dificilmente se poderá culpabilizar a escola por um acidente dessa natureza. Uma vez que as escolas estão obrigadas a deter seguros, essa situação poderia eventualmente ser coberta pela seguradora. Contudo, não havendo regras de comportamento definidas para a utilização do espaço marítimo em atividades de surfing, como existe por exemplo um código da estrada, será difícil atribuir culpas num cenário de acidente dessa natureza. Portanto, não é fácil responder a esta questão, não estando estabelecidos mecanismos para dar resposta a tal situação, o que levaria a que se tornasse um caso de justiça, cuja definição de culpabilidade e de medidas a tomar estariam dependentes das características do caso em si e da análise judicial feita ao mesmo. Temo que uma situação destas possa vir a acontecer num futuro breve, que desperte uma grande atenção mediática e exponha as fragilidades do sistema atual de gestão e regulamentação das escolas de surf, correndo-se o risco de serem tomadas medidas drásticas de forma repentina, sem a devida consulta dos operadores. Contudo, havendo uma formação adequada dos instrutores e treinadores, que realizem as suas aulas recorrendo a práticas de ensino e utilização de material adequado ao nível dos diferentes alunos, esse cenário tornar-se-á menos provável, tanto nos momentos de aulas de surf como quando esses alunos se aventurarem em momentos de free surf por conta própria.
Uma última questão. Quantas escolas no geral, oficiais e não oficiais, existem em Portugal?
Essa é uma questão que não tem uma resposta fácil, uma vez que não existe ainda nenhum mecanismo eficaz de contabilização de todos os operadores de ensino de surf em Portugal. Apesar disso, se se considerarem como escolas oficiais aquelas que estão registadas na Federação Portuguesa de Surf, existem atualmente 239 escolas de surf. Em contraste, na época balnear do ano de 2017 haviam mais de 700 operadores registados no Registo Nacional de Agentes de Animação Turística para o exercício de atividades de surfing, apesar de não se poder considerar que todos esses agentes executavam, na prática, atividades de ensino de surf. Pelo conhecimento alargado que temos desta área, podemos com um elevado grau de certeza afirmar que o número total de operadores de ensino de surf em Portugal se encontra atualmente algures entre os 500 e os 600.
Aproveita e lê aqui a primeira entrevista sobre o tema, realizada com o presidente da Federação Portuguesa de Surf.
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AF