Compreender o Surf, as lesões e os seus métodos de treino
Estudos ajudam a perceber a causa-efeito das lesões mais frequentes e a premente urgência de treinos aplicados ao surf...
Beatriz Minghelli, docente, investigadora e também fisioterapeuta, levou a cabo três estudos de forma a encontrar as respostas que há muito se pedem na área do Surf. O objetivo? Dar a conhecer os resultados não só à comunidade científica, mas também informar os surfistas e treinadores, pois alguns dos dados apurados podem ajudar numa reflexão sobre o treino que têm vindo a aplicar.
Qual a razão que levou a estes estudos?
Sou investigadora da Research in Education and Community Intervention (RECI), Instituto Piaget, com Doutoramento na área da Saúde Pública, Especialidade em Epidemiologia, pela Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP, UNL). Desde que me dediquei à investigação, a minha área de pesquisa tem-se focado em estudos epidemiológicos, envolvendo estudos na área da saúde escolar e no desporto. Dentre as modalidades que me surgiram como tema de investigação, o interesse pelo surf surgiu por influência dos meus filhos que começaram a praticar a modalidade. O interesse surgiu justamente por querer obter mais conhecimento sobre este desporto, e se ter pouca publicação na área.
"Os tipos de lesões mais frequentes são as lacerações,
lesões articulares, lesões musculares e lombalgias"
- Alex Botelho no Guincho. Foto: Pedro Mestre/ANSurfistas
Qual o seu enquadramento?
Primeiro, surge a questão de investigação: “Será que as lesões músculo-esqueléticas são comuns no surf? Por que abordar somente a área das músculo-esqueléticas?" Por que sou Fisioterapeuta e esta é minha área de intervenção, inicialmente optei por criar um instrumento de recolha de dados (questionário) numa amostra mais reduzida, aplicando-o nos surfistas que participavam em campeonatos regionais. Entre as perguntas formuladas no questionário, deparei com a questão se a realização de algum tipo de treino preventivo/treino funcional teria alguma efetividade na redução de lesões nos atletas.
Surge então o estudo intitulado “Preventive Physiotherapy Applied to Portuguese Surf Athletes: Association in Improving Performance and Reducing the Number of Injuries” (ver mais aqui). Neste estudo participaram 101 atletas portugueses federados, com idades entre os 10 e 44 anos, que participaram do Circuito Regional de Surf do Sul e de Lisboa no ano de 2015. Os resultados obtidos neste estudo revelaram que 57% dos surfistas referiram ter sofrido alguma lesão ao longo de toda a sua prática de surf. Apenas 12% dos surfistas realizavam algum tipo de treino preventivo. Os fatores de risco associados à estas lesões foram a idade mais avançada (≥ 20 anos) e o facto de não realizar um treino preventivo, no qual os atletas que não realizavam nenhum tipo de treino preventivo tiveram 10 vezes mais chances de vir a ter lesões, comparados com os atletas que o realizavam.
Após os dados obtidos neste estudo, optei por desenvolver um outro estudo a nível nacional com representatividade do país, uma vez que apenas são conhecidos dois tipos de estudos nacionais na área da prevalência de lesões com algumas limitações metodológicas a nível de representatividade da amostra. O estudo intitulado “Injuries in recreational and competitive surfers: a nationwide study in Portugal” (ver mais aqui) envolveu uma amostra de 1016 surfistas portugueses quer a nível competitivo ou apenas recreativo (free surfers), com idades entre os 8 e 64 anos. A recolha de dados foi realizada em duas etapas de cada Circuito Regional de Surf de todas as regiões, com exceção dos Açores, no ano de 2016.
Os dados obtidos revelaram que 30% dos surfistas referiram ter sofrido alguma lesão músculo-esquelética nos últimos 12 meses, totalizando quase 400 lesões em toda a amostra. Uma vez que diversos estudos indicaram a laceração como uma lesão frequente no surf, esta também foi incluída no meu estudo. Os tipos de lesões mais frequentes referidas neste estudo incluíram as lacerações, lesões articulares (lesões meniscais, ligamentares, da cartilagem, entorses e luxações), lesões musculares (ruturas e contusões) e lombalgias.
"Surfistas com menor tempo de prática e que treinam menos
estão mais propensos a vir a desenvolver lesões"
- Gabriel Medina em Pipe. Foto: WSL
Quais as lesões mais frequentes?
Os locais mais frequentes de lesões foram os joelhos, ombros e coluna lombar. O impacto com a prancha e o movimento de remada foram considerados os mecanismos de lesão mais prevalentes. Relativamente aos fatores de risco, os surfistas que participam de competições, os que tem menor tempo de prática de surf (menos de 5 anos) e os surfistas que treinam menos de 3 vezes por semana, estão mais propensos a vir a desenvolver lesões no surf. Uma vez que as lesões no surf são comuns, torna-se necessário implementar estratégias de prevenção, tendo em consideração os mecanismos de lesões mais frequentes e as articulações mais afetadas.
“O surf consiste numa atividade intermitente,
caracterizada por uma grande variabilidade entre cada atividade"
- João Kopke em pleno heat na última etapa da Liga MEO. Foto: Pedro Mestre/ANSurfistas
As causas destas lesões?
As lesões nos joelhos podem ocorrer pela realização de manobras aéreas, e pela própria posição adotada durante a realização das manobras, onde o joelho assume uma posição de flexão e valgismo, aumentando o stress no ligamento lateral interno.
O movimento da remada no surf, pode ocasionar lesões nos ombros por esforço repetitivo, associado à instabilidade escapular, desequilíbrio muscular e má performance biomecânica associada ao movimento.
As lesões na coluna lombar também podem estar associadas ao movimento da remada onde há uma extensão do tronco mantida por alguns períodos de tempo e de forma repetida. Além disso, durante a realização de algumas manobras, o surfista realiza movimentos de rotação da coluna, que pode levar à degeneração dos discos intervertebrais a longo prazo, levando às algias.
Além de perceber os mecanismos de lesões mais frequentes e os locais do corpo mais afetados, é preciso perceber qual a duração de cada atividade realizada no surf e o metabolismo envolvido especificamente para o atleta em questão, uma vez que o surf está dependente de fatores extrínsecos como as correntes, orientação do vento, tamanho e período das ondas, entre outros, que podem afetar a duração da realização de cada atividade, assim como a sua intensidade.
Para responder essas questões, foi realizado um estudo preliminar intitulado “Time-Motion Analysis of Young Competitive Surfers: Southern Portugal” (ver mais aqui), onde foram filmados 42 atletas que participaram de uma etapa de surf do Desporto Escolar em maio de 2017, na praia da Arrifana, Algarve. Cada surfista foi filmado individualmente durante a realização do heat. Os resultados obtidos revelaram que naquele campeonato o tempo despendido com o movimento de remada correspondeu a 58% do tempo total do heat; em 42% do tempo total os surfistas estiveram parados, a remada para apanhar a onda correspondeu a 3.8%,e o ato de surfar a onda apenas 3.1% do tempo total. Estes resultados indicam que o surf consiste numa atividade intermitente, caracterizada por uma grande variabilidade entre cada atividade.
A análise da duração de cada atividade deveria fazer parte integral de um processo de treino para atletas de competição para auxiliar na prescrição de programas de treino, de forma a maximizar o desempenho do atleta.
Uma vez que o campeonato do Desporto Escolar envolve uma amostra de surfistas muito específica (adolescentes), fomos reproduzir o mesmo tipo de estudo (análise da duração do movimento) em profissionais (adultos) no campeonato da Liga MEO realizado na Figueira da Foz em junho deste ano, onde mais de 50% dos heats foram filmados para posterior análise. Os dados recolhidos ainda estão em processo de análise.
"Torna-se necessário cada vez mais investigação no surf
para melhor prescrição de um programa de treino"
- Keanu Asing em Haleiwa, durante o Hawaiian Pro. Foto: WSL
Que conclusões se retiram dos estudos efetuados?
Torna-se necessário cada vez mais investigação no surf para melhor prescrição de um programa de treino, e dar formação aos professores/instrutores de surf para a implementação destes programas com objetivo de prevenção de lesões e também de melhoria do desempenho do atleta. O questionário utilizado nos estudos foi aplicado sobre a forma de entrevista e quando perguntava ao surfista se ele realizava algum tipo de treino preventivo/funcional, uma grande parte respondia que sim, mas quando solicitado para descrever que tipo de treino realizava a maioria respondia “ando de skate” e “faço natação”. Estas atividades poderiam ser incluídas num programa de treino aplicado ao surf, mas há muito mais para se fazer.
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AF