Pai ensina filha a surfar - um gesto de altruismo e amor Pai ensina filha a surfar - um gesto de altruismo e amor domingo, 02 outubro 2016 17:32

SOMOS EGOÍSTAS?

 “Isso do surf é desporto de egoístas!”.

 

Tinha eu 13 anos, num dia de verão no Guincho , resolvi ir surfar e fiquei na água mais de 3 horas, sem a noção do tempo…  a minha mãe desesperada sem saber onde estava …quando saí da água ouvi o desabafo em altos decibéis: “Isso do surf é desporto de egoístas!”. Foi a primeira farpa de muitas repetidas ao longo dos anos: ”Vocês são uns egoístas”…
A típica expressão de mãe: “Só pensas em surf”. Quem nunca ouviu?
O surf, a meu ver, não é egoísta mas pode potênciar o egoísmo , o que são coisas distintas. Haverá  sempre os ressabiados de mal com a vida , agressivos sem educação, que exteriorizam no mar toda a sua frustração…. Isso sim, é o egoísmo no pior sentido “descarregado de forma exponencial na água”.
Há uma ligação estreita entre o ego e o surfista? Sim, sem dúvida, mas o ego provém da condição humana e não de ser surfista. Muitas vezes sentimos no line up a presença do ego inflamado, curiosamente não só em jovens cheios de afirmação própria da idade, mas também nos surfistas mais velhos, onde um ego tão inchado já não faz muito sentido.O peso da idade permite num dia de crowd aos surfistas mais antigos, que já não  têm a energia e o espirito vitaminado dos mais jovens, esperarem com sabedoria pela melhor onda do set…gerando uma certa satisfação natural que por vezes se torna exagerada…
Por outro lado, é curiosa a sensibilidade do surfista que sempre sobrevaloriza a sua prestação  ( os vídeos podem ser um balde de água fria sobre essa realidade )seja de que nível for. Somos demasiado sensíveis às criticas e muitas vezes não suportamos que digam mal da forma como surfamos. E, ás vezes, pior ainda, que critiquem os surfistas que mais admiramos. Mesmo os que estão a aprender buscam no imediato valorizar as suas performances e essas sensibilidades vão até aos melhores surfistas do mundo. Recordo-me de uma entrevista em Portugal, em 2014, de Jeremy Flores, muito incomodado com o jornalista australiano Ben Mondy depois de este criticar publicamente o seu surf por Jeremy cair muitas vezes nos seus heats…

                                                                 Um mar sem classes sociais

 Para além disto, no mar não há avaliações sociais sejam elas quais forem. Se um assassino fizer um cut back na água, o que fica na água é o cut back.  A avaliação social não existe, o que existe é a paixão,esse sentimento louco e efémero, mas que o surfista, ao contrário das pessoas comuns,  vive de forma contínua. A única coisa que interessa é a próxima onda.Essa insaciabilidade não acaba e perdemos a noção do tempo, gerando a aparência de egoísmo..
O egoísta é subtil, parece interessado nos outros, enquanto no surf não há subtileza, o que interessa são as  ondas e estar “cada um na sua”.O surfista é um individualista que aprende a conviver consigo mesmo, o egoísta, por sua vez,  só pensa em si mesmo. O surfista pensa em muita gente, mas todos em separado e, de preferência, sem compromissos..Já dizia  Fernando Pessoa : ”Não gosto que me peguem no braço, quero ser sozinho, já disse que sou sozinho” . O interesseiro egoísta quererá sempre o braço para seu benefício, ao contrário do surfista que vê no braço estar preso na sua liberdade.
O” lifestyle”do surf requer equilíbrio, desde logo, no mar.É um processo de antecipação às mudanças e de ajustamento a elas. Um bom surfista aprende isto depressa, e nas relações humanas esses equilibrios não são muito diferentes. Temos de nos adaptar aos outros, e quanto mais rápido o fizermos melhor integração teremos.
O egoísta, pelo contrário, não se integra, força a que os outros se adaptem a ele.Mas o nosso “lifestyle” só fica completo e verdadeiramente equilibrado quando ensinamos aos mais novos o que aprendemos, ou melhor, quando os mais novos escolhem o que aprenderam com os mais velhos.
 As escolas de surf que muita gente critica, são um excelente contributo.Os seus responsáveis e instrutores, na esmagadora maioria, não ficam ricos, mas são um enorme exemplo do maior significado que o surf pode ter:partilhar a sua paixão com os outros.
Aliás, estou convencido com o passar de geração em geração, tal como na Austrália, o lado mais individualista no surf será diluído por esta partilha natural dos mais velhos com os mais novos deste extraordinário estilo de vida.

                                                                    O surfista altruísta

O surfista altruísta começa a aparecer no momento em que várias gerações através do tempo vão experienciando  a modalidade. Começando pelos pais que, inevitavelmente, procuram partilhar e ensinar os valores que aprenderam no surf com os seus filhos, surgindo então o altruísmo geracional no surf
Gonçalo Ruivo habita já há muitos anos no paraíso da Indonésia, proporcionando a muitos surfistas portugueses com o mais variado nível técnico de surf, a possibilidade de surfarem as melhores ondas do planeta. Tive o privilégio de passar com ele e mais nove amigos  os meus anos no Mikumba Boat e aí  deparei-me com o surfista altruísta…aquele que primeiro conhece a cultura local, dá formação aos portugueses  acabados de chegar,não só dos costumes indonésios  mas  como devem comportar-se na água, procurando sempre o equilíbrio dos surfistas mais avançados para os menos experientes.A diferença no barco é diluída logo á partida,a isso se chama não só altruísmo mas  integridade e educação. A preocupação não está centrada nele, mas no seu grupo de viagem e na sua harmonia. Isso só é possível devido à sua vasta experiência como surfista que conviveu com várias gerações ao longo dos anos. Aqui está um bom exemplo do altruísmo geracional.
Com o tempo vamos tirando ilações… haverá sempre o surfista centrado nele próprio e, de certa forma, egoísta.Todos nós já vivemos um pouco isso de uma maneira mais ou menos intensa. Mas quando não damos tanta importância a nós próprios e ao nosso surf , quando aceitamos as condições do mar e as nossas limitações como surfista de forma natural ( que todos temos, excepto o Kelly ) , estaremos mais integrados com o que nos rodeia , mais relaxados , a forma como encaramos o surf torna-se mais interessante e a nossa vontade de partilhar com os outros o que vivemos como surfista  será, não só mais rica e natural ,mas um exemplo para as novas gerações.

 

Por Bernardo(Giló) Seabra    

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